Biopolítica do Coronavírus (Parte II) – O Paciente Zero é a Globalização

Sem a globalização, é o vírus que estaria confinado, não a humanidade. Afinal, o surgimento de vírus é inevitável, mas de pandemias não. Elas só são possíveis graças à mobilidade dos seus hospedeiros. Nesse sentido, a filosofia liberal que sustenta ideologicamente a globalização, que teve sua expressão máxima em Karl Popper, deve ser repudiada como responsável pelos centenas de milhares que já morreram, além dos milhões de desempregados.

Os jornalistas têm se tagarelado muito sobre o paciente zero, o homem por cuja causa tudo aconteceu, Homo Wuhan, o homem de Wuhan. O Adão contaminado e o sujeito contaminante. Se algum dia ele for encontrado, ele terá seus 15 minutos warholianos de fama – póstumos ou não. Mas este paciente zero só existe para a pequena história jornalística, ele é contingente, não essencial, como Sartre poderia ter dito. O paciente zero, o primeiro agente infeccioso, o real, o único, o supercontaminador, é a globalização, é o sujeito globalizado, é a “Totalidade Global”. A livre circulação de todas as coisas, sem mediação, nem mesmo o mercado, sem medicação, sem salvaguardas ou barreiras, nem mesmo barreiras sanitárias. Todos os migrantes! As pessoas, os capitais, os produtos – e os vírus que neles circulam. Eles terão sido para a globalização das trocas o que o efeito borboleta é para o clima, criando uma imensa zona desestabilizadora, não mais ciclônica, mas clínica, em escala global.

O Covid-19 é o princípio ativo. É o passageiro clandestino das sociedades abertas. Ele circula em navios porta-contêineres ou navios de cruzeiro, a bordo do Aquarius ou no Airbus, através das rotas migratórias, turísticas e comerciais. A globalização é seu biótopo, e o nomadismo seu modo de propagação. Ele precisa do comerciante e do migrante, do turista e do cosmopolita. Ele se chama indiferentemente George Soros, Daniel Cohn-Bendit, Bill Gates, Karl Popper, à frente da World Virus Tour Incorporated, sociedade anônima. Quando a sociedade civil é aberta, as sociedades comerciais são fechadas.

As sociedades abertas assim revelam seu segredo, não protegem nada e ninguém, exceto aqueles que, tendo-as aberto, têm meios de se proteger de seus efeitos destrutivos – a elite econômica e cultural. Parece que o famoso mote de Lacordaire se aplica sobretudo a eles. Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servo, é a abertura que oprime e clausura que liberta. Sem ela, não há abrigo, não há refúgio para aqueles que estão expostos aos maus ventos da globalização. Era preciso abrir-se, essa era a palavra de ordem, mas se abrir é se descobrir. E se descobrir é correr o risco de pegar o coronavírus.

O Vírus da Globalização

A globalização vende um modelo único de contaminação, sem máscaras de proteção, sem luvas, sem fronteiras. Sua lógica é pandêmica e viral. A Terra está destinada a ser colonizada, a ser transformada em zona franca, em caldeirão (e rascunho) de cultura, a retornar ao seu estado inicial de sopa primordial em uma espécie de apoteose da troca generalizada – o livre comércio. Hibridização e mistura (nada melhor para cultivar vírus e promover suas mutações). “De todos os tipos de bagagem, o homem é a mais difícil de transportar”, lamentou Adam Smith no final do século XVIII. As coisas mudaram muito desde então. De 1800 até hoje, a mobilidade epidêmica aumentou no mesmo ritmo que a mobilidade humana e da intensificação das trocas: ela está indo mais de mil vezes mais rápido. O “lá” está agora “aqui”. Como resultado, a aceleração comprime as distâncias. Wuhan está a apenas dez horas de vôo de Paris. As epidemias nunca viajaram tão confortavelmente. Onde a gripe espanhola levou quase três anos para percorrer a Terra, o coronavírus viajou em apenas três meses.

O Covid-19 já é um acelerador, grande destruidor de mitos, as sociedades abertas são as primeiras a sofrer as consequências. Foi Karl Popper – uma espécie de Julien Benda austríaco, tão sinistro quanto o original, adorado por Bertrand Russell, desprezado por Wittgenstein, superado (trespassado, como teria dito o autor do Tractatus) pela epistemologia, produto puro da seita de Mont Pèlerin – que lhe deu o seu significado atual em seu livro emblemático, bíblia da globalização para os manequins, A Sociedade Aberta e seus Inimigos (1945). A pobreza conceitual de seu ensaio, que sofre para alinhar mais de duas ou três idéias em 500 páginas, nunca deixa de surpreender. Popper ataca o pensamento totalitário e sistemático (Platão e Hegel), mas para elaborar, por sua vez, um sistema. Ele critica o pensamento mágico, mas para reproduzir suas fórmulas incantatórias. Por um raciocínio tautológico (a sociedade aberta é aberta), o autor é incapaz de dar um sentido positivo ao seu conceito. É apenas um slogan; e um meio de designar o inimigo.

As sociedades fechadas (mágicas ou tribais, segundo o léxico popperiano) são muito precisamente, elas e apenas elas, sociedades – “comunidades”, como diria Ferdinand Tönnies – porque são orgânicas, viventess, embutidas, como organismos adaptados ao seu ecossistema. Saudáveis, elas resistem aos patógenos; malsãs e privadas de imunidade grupal, elas desaparecem. É o que ocorre com as “sociedades” abertas, que não existem de acordo com as palavras memoráveis de Margaret Thatcher. São apenas “sociedades” em relação aos riscos que assumem e externalizam, no sentido que Ulrich Beck (A Sociedade do Risco, 1986) deu à palavra. Segundo ele, os riscos, que são cada vez mais invisíveis (poluições múltiplas, radiações, vírus), são como os danos colaterais induzidos por nossas atividades, transferências negativas, se preferirmos, sobre os vivos, sobre as populações.

O Confinamento Planetário

Toda sociedade implica um fechamento dentro do qual ela se estrutura e se reforça, se desdobra e se dobra, se desenvolve e se protege, seguindo os mecanismos respiratórios típicos dos corpos sociais. Não a sociedade aberta, que protege apenas o indivíduo – que ironicamente não é capaz de se proteger sozinho. Não é nada além de uma anti-sociedade que nos condena ao confinamento planetário, para falar como o falecido e onipresente André Lebeau. Uma prisão sem um exterior. Um mundo dominado pelo que Carl Schmitt chamou de espírito talassocrático que a tudo submerge – a sociedade líquida offshore. Fluxo e refluxo. Sem dique, sem ponto de ancoragem, a sociedade aberta é literalmente uma sociedade de náufragos. Um mundo desterritorializado, com as patologias específicas dos cultivos sem solo, como a asfixia radicular, uma doença barresiana dos vegetais. O poderoso instinto territorial cultivado por Carl Schmitt era oposto a isso, assim como o poderoso instinto paternal segundo Freud. Esses dois instintos nos protegem do “sentimento oceânico” da vida que assombrava o pai da psicanálise – a ameaça da fusão no Grande Todo globalizado.

Popper não nos ensina nada sobre a globalização dos vírus. É melhor mergulhar no trabalho de Ilya Prigogine sobre “estruturas dissipativas”. As estruturas dissipativas são a única legitimação admissível de crescimento indefinido em um mundo finito; e a única base científica para a eficiência das sociedades abertas. Mas por mais brilhante que fosse Prigogine, ele só adiava a inevitabilidade dos processos entrópicos, oferecendo-nos um sursis, nada mais. No entanto, são esses processos dissipativos, produtores de entropia, que regem a globalização das trocas. Nascem da desordem, do desequilíbrio, da excrescência de mercados e populações, da abertura incondicional das fronteiras, da rejeição por estados estacionários. A única coisa que é estacionária aqui é a instabilidade do sistema, a economia-mundo, ao risco de sua sobrevivência – e da nossa.

A Lei de Ferro da Entropia

Vamos resumir. A entropia é a flecha do tempo (a decomposição dos corpos, a ferrugem que come o ferro, a velocidade que cai, etc.). Ela mede o grau de desordem em um sistema, que é o que são as sociedades abertas e os vírus que circulam nelas. Ela segue as leis da termodinâmica. Estas leis nos ensinam dois princípios fundamentais. Primeiro, que em qualquer processo físico, a energia não pode ser criada nem destruída, mas apenas transferida. Portanto, o sistema sempre retorna ao seu estado inicial. Esta é a lei da conservação da energia (nada se perde, nada se cria, tudo se transforma).

O segundo princípio é a entropia, que descreve uma transformação irrevogável da energia devido a fenômenos dissipativos (os mesmos que Prigogine quer organizar). Quanto mais a entropia do sistema cresce, mais seus elementos se dissolvem e desintegram. A energia está sempre lá, mas ela gera instabilidade no sistema, que está destinado a se tornar caótico. Não importa que o estoque de energia permaneça quantitativamente o mesmo, ele se degrada qualitativamente de maneira irreversível. A reversibilidade só é concebível em escalas de tempo literalmente inumanas. A entropia só pode ser desacelerada. Nós, pelo contrário, optamos por amplificá-la.

Para entender a entropia, não há nada como o exemplo apresentado por Stephen Hawking. Imagine uma xícara de café sobre uma mesa. Ela está em uma configuração de ordem elevada (portanto, seu nível de entropia é baixo). Mas se a taça cai no chão e quebra, a entropia aumenta repentinamente. De uma situação para outra, passamos de um estado ordeiro para um estado desordenado. Diz-se que este fenômeno é irreversível porque a taça quebrada nunca mais voltará ao seu estado anterior. Isto é entropia!

O Caos Mundial

A entropia tem gerado muitas controvérsias que levariam muito tempo para serem discutidas. As objeções mais sérias emanam do trabalho da Escola de Bruxelas de Ilya Prigogine. Elas dizem respeito à auto-organização dos sistemas através do que Prigogine chama de estruturas dissipativas. Problema: como as estruturas podem ser dissipativas sem ao mesmo tempo deixarem de ser estruturas? Este é o paradoxo da globalização: fazer surgir uma ordem a partir da desordem global. Na verdade, diz Prigogine, a crescente complexidade das estruturas dissipativas permite que os sistemas evoluam para estados cada vez mais elaborados, artificiais e complexos, que por sua arquitetura dificultam a lei da desordem (entropia).

Para ter uma idéia concreta disso, pense nos Big Data que gerenciam fluxos de dados exponenciais ou nos nós tentaculares de estradas que se espalham em torno das megacidades. É um emaranhado de fitas e junções que parecem inextricáveis, mas criam uma ordem: o trânsito. O mesmo se aplica à livre circulação em nível global: ela opera através de procedimentos cada vez mais sofisticados que mantêm em equilíbrio um sistema cada vez mais saturado e frágil, que um vírus terá sido suficiente para fazer oscilar, simplesmente porque lhe foi permitido circular sem obstáculos. No final, podemos dizer que a demonstração do Prigogine é linda, magnífica até mesmo, mas apenas no papel, não na realidade. Não se cria ordem dando a si mesmo a ilusão de organizar a desordem. A verdade é que Prigogine só nos ensina a maximizar a dissipação de energia, não a detê-la. A lei do ferro da entropia se resume a isso: consumir é consumar; se deslocar é se dispersar. Quanto mais o tempo passa, mais inexoravelmente rápido ele acelera e mais rapidamente a entropia aumenta. Como resultado”, comentou o grande Nicholas Georgescu-Roegen, pai putativo do decrescimento, “o destino final do universo não é a ‘morte térmica’ (como se acreditava inicialmente), mas um estado mais desesperador: o Caos”. Ele acrescenta: “Sem dúvida este pensamento não é satisfatório para o espírito”. Queremos crer nisso.

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Fonte: Éléments

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François Bousquet

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