Biopolítica do Coronavírus (Parte I) – A Lição de Michel Foucault

No enfrentamento com a pandemia do novo coronavírus diferentes países tem recorrido a diferentes medidas. Alguns tem agido de maneira tíbia, lenta, preocupados mais com os lucros de empresários. Outros tem imposto medidas extremamente duras e restritivas. Há ainda aqueles que aproveitam para impôr medidas de vigilância aptas a controlar quase todos os aspectos da vida humana. Enquanto isso, a mídia aborda o tema como se estivéssemos diante do Apocalipse, do Juízo Final. Como explicar o pavor em relação ao novo coronavírus? Qual é seu fundamento? De onde ele vem? Para lidar com este e outros temas é útil o conceito foucaultiano de “biopolítica” e “biopoder”, que serve como base para a nova série de artigos que iniciamos agora.

Tudo o que se diz hoje sobre coronavírus é biopolítico, no sentido que Michel Foucault deu ao termo. A biopolítica é como a prosa de acordo com este bom senhor Jourdain. Todos a praticam sem mesmo saber, mesmo os conspiracionistas, mesmo quando pensam descobrir o segredo das pirâmides ou encontrar alienígenas assintomáticos no Snapchat. Ninguém sabe se algum dia encontraremos uma vacina contra o coronavírus, mas se pudéssemos encontrar uma contra os conspiracionistas, ah felicidade! A Covid-19 acendeu como nunca as luzes e os iluminou. Eles estão com febre de 42 graus, e ninguém para os colocar no respirador. Impossível ligar o computador sem se deparar com eles. Eles cospem em você, sem máscara para contornar. É uma superpandemia de conspirações-corona. Quando não é para nos encher sobre chips eletrônicos, é porque estão tentando nos impor o 5G. Uma coisa é certa, na escala Richter das idiotices, o conspiracionista não é o 5G. Ele quebra o teto, ele flutua em magnitudes estratosféricas, naquelas regiões orbitais onde Audiard geolocalizou as idiotices.

Quem é o conspiracionista? É alguém que é intelectualmente preguiçoso, já que ele nem percebe que seu conspiracionismo é uma homenagem involuntária à inteligência presumida de seu adversário. Em outras palavras, ele mesmo admite que é suficientemente medíocre a ponto de ter sido mistificado por alguém mais astuto do que ele – e então ele explica o porquê, ora merda! Pior ainda, mais redibitório, mais imperdoável: o conspiracionismo está fadado a nos prender ao fracasso, pois equivale a conferir aos nossos adversários superpoderes contra os quais nada podemos fazer, para além de explicá-los após o fato. Mais uma vez, vemos o quanto o conspiracionismo substituiu a crença na mão do diabo. Isto é o que Leon Poliakov uma vez chamou de “causalidade diabólica”. Diabolus ex machina! Vamos esquecer isso. Vamos nos concentrar nas causalidades primárias, não no ruído de fundo que emana das redes sociais e no mingau de paranóia superaquecida a histeria que ele gera, tudo contagioso, tudo a banda larga.

O Valor da Vida Humana

Então sim, por que todo esse alvoroço sobre o covid-19, se ele não mata muito mais do que a gripe, o que é verdade no momento, mas com três ou quatro bilhões de humanos confinados de qualquer forma. Me dirão que esta é uma variável que não entra na equação mental conspiracionista. Mas afinal isso não importa. A questão do conspiracionista é: por que nos enchem os ouvidos com o Covid, e não com a crise opióide nos Estados Unidos, por exemplo, que mata mais pessoas do que as armas de fogo? Por que estamos fechando lojas pelo Covid, e não o Walmart ou o fast food pela pandemia da obesidade? Hã, sim, por quê?

A resposta está na pergunta. O Covid é como a loteria – qualquer um pode pegar. O que não é o caso da obesidade, todos concordamos. Ele atinge indiscriminadamente, indiferentemente, ressuscitando medos irracionais e arcaicos inscritos nas profundezas da psique humana. Já se viu alguém desinfectar as mãos depois de tocar em uma pessoa obesa? Não, mas a desinfecção não é apenas uma operação de higiene, é também uma operação de exorcismo. Estamos afugentando o agente infeccioso diabólico.

Temos vergonha de nos lembrar disso: o medo é dinâmico, é uma força motriz poderosa, até chega a escrever a história, especialmente quando a ameaça é invisível. O historiador italiano Guglielmo Ferrero tem páginas suntuosas sobre o assunto. Não diremos, como ele, que o medo explica tudo, mas o mínimo que podemos dizer é que ele está profundamente enterrado no fundo do inconsciente, o inconsciente do conspiracionista inclusive, que febrilmente limpa sua tela tátil com gel hidroalcoólico.

Mas há algo mais. E é aqui que a biopolítica de Michel Foucault se mostra fascinante. A biopolítica não é apenas uma palavra oca e enfática. É um projeto político. Para Foucault, a biopolítica é a consideração do valor da vida humana – aqui e agora, neste momento. Essa, nos diz ele, é a marca da modernidade, a certidão de nascimento do indivíduo. Em épocas anteriores dominadas pela religião, o que era importante era cultivar a vida espiritual, a riqueza da vida espiritual, se preparar para a santidade, dar a si mesmo os meios para alcançar o paraíso cristão. Com a modernidade, uma inversão de perspectiva: a cidade terrestre prevalecerá sobre a cidade celestial. É neste contexto que nasce a biopolítica, a partir do rebaixamento da cidade de Deus. Aos poucos, os indivíduos vão aspirar a preservar o que lhes é mais precioso: sua vida – aí, aqui, agora, não em outro lugar povoado por anjos e condenados. Fazer de tudo para otimizar a vida, chegando ao mito contemporâneo da saúde perfeita, da morte da morte. A vida aqui na Terra será, portanto, objeto de nova atenção. A partir de agora, terá que ser protegida, preservada e maximizada. Assim, os desafios da saúde prevalecerão sobre o imperativo da salvação da própria alma. Assim, os deveres exigidos pela honra darão gradualmente lugar ao direito à felicidade.

Fazer Viver, Deixar Morrer

Foucault distinguiu duas eras na história das doenças infecciosas. Primeiro a lepra, depois a peste bubônica. Na Idade Média, a lepra era tratada pela exclusão do leproso. Ele não era confinado, mas literalmente expulso, às portas da cidade, colocado fora da comunidade. Será diferente com a peste. O confinamento se dará dentro da comunidade. É uma quarentena no coração das cidades. Foucault data a invenção da vigilância moderna e das sociedades disciplinares a partir desse deslocamento. A peste estava confinada ao chinês, por assim dizer. Proibido de sair, encarregado de entregar a chave para os inspetores que os verificavam diariamente. Eram alimentados por meio de todo um sistema logístico, com sistemas de polias. Cuidado, não se engane aqui: se eram vigiados, não era pelo prazer sádico de vigiar e punir, como teria dito (e querido) Foucault, mas porque nascia um novo ideal, o do indivíduo, de sua expectativa de vida, de sua saúde, logo de seu florescimento, estava nascendo. Mudança radical. Em épocas anteriores, o poder permitia que as pessoas vivessem como bem entendiam, o que ela cuidava, a que se dedicava, era com fazê-las morrer bem, ou seja, cristãmente. Ninguém se importava se as pessoas tinham colesterol ou não, se bebiam dois copos ou duas garrafas por refeição. Um só objetivo, uma só missão, uma só obsessão: preparar-se para o Juízo Final. O biopoder moderno é exatamente o oposto. Deixa as pessoas morrerem como acharem conveniente, em pecado ou não, por eutanásia ou não. Seu propósito está em outro lugar. Não é mais fazer as pessoas morrerem de uma maneira específica, mas fazê-las viver o máximo de tempo possível nas melhores condições físicas e sanitárias.

O Mito da Saúde Perfeita

Eis porque que estamos fazendo muito em relação ao Covid. Porque estamos condenados a exagerar. Porque colocamos um preço na vida humana que ela nunca antes conheceu. Por isso desenvolvemos uma reação de fobia ao perigo, uma intolerância ao risco, uma negação da morte. Todo o nosso arsenal jurídico e regulamentar invasivo está condicionado em grande parte por este medo do risco. Zero mortes, zero defeitos, zero avarias, novo imperativo categórico. O que estamos tentando exorcizar através disso não é apenas a visibilidade da morte, mas a sua possibilidade. Em seu trabalho sobre a morte, o grande historiador Philippe Ariès mostrou como a morte se tornou para nós proibida, até mesmo escandalosa. Ela não deve mais perturbar a felicidade dos vivos. Em um mundo lúdico, não há mais espaço para o trágico. Como interpretar o recurso cada vez maior à cremação (veja-se os números apresentados por Jérôme Fourquet)? Através da cremação, é como se a morte mesma evaporasse, espalhando suas cinzas. A verdade é que estamos despreparados para o fracasso dos corpos, despreparados para a morte prematura banal, que é o que é a morte viral. No mundo antigo, a morte viral, a morte bacteriana, sem glória, era banal, comum. Não havia separação entre mortos e vivos, especialmente no mundo cristão, onde os cemitérios estavam localizados no interior das cidades. Visitando a Europa, o Buda não estaria fora de lugar, ele teria encontrado velhice, doença e morte em todos os lugares. Hoje não. De tanto que foram medicalizadas. A medicalização funciona como uma garantia, no sentido comercial do termo, à maneira dos eletrodomésticos. Nossas máquinas de lavar são garantidas, embora por um tempo cada vez mais curto, de acordo com o princípio da obsolescência programada. Exatamente o contrário de nossas vidas. Elas são garantidas por 79 anos para os homens e 85 anos para as mulheres. Nós programamos a obsolescência em todos os lugares, exceto em nós. Nossa obsolescência é desprogramada o máximo de tempo possível. Se morremos antes dos limiares de garantia, é porque houve uma falha técnica. Foi com isso que o Covid-19 colidiu com força.

Esta é a primeira parte de uma série. Clique aqui para a segunda parte.

Fonte: Éléments

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François Bousquet

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