Uma breve história do caos: da Grécia à pós-modernidade. Parte 2

Continuando sua reflexão sobre a natureza e história do caos, desde de sua concepção na Grécia antiga, Alexander Dugin o relaciona com as noções fundamentais do Estado, da geopolítica, pós-modernidade e a Operação Militar Especial.

Um conflito entre duas ordens mundiais

Parece que a OME está falando de um conflito entre duas ordens mundiais — uma unipolar, representada pelo Ocidente coletivo e a Ucrânia, e uma multipolar, defendida pela Rússia e aqueles que de alguma forma estão do seu lado (principalmente China, Irã, Coréia do Norte, alguns estados islâmicos, em parte Índia, Turquia, mas também países da América Ibérica e África). Este é de fato o caso, mas analisemos o problema de uma perspectiva que nos interessa e descubramos qual é o papel do caos.

Salientemos imediatamente que o termo ordem mundial apela claramente para uma estrutura explícita, ou seja, é a antítese do caos. Estamos tratando portanto de dois modelos do cosmos: unipolar e multipolar. Se assim for, estamos lidando com uma colisão entre mundos, entre ordens, estruturas, e o caos não tem nada a ver com isso.

O Ocidente oferece sua versão: um centro e uma periferia, onde o centro é ele mesmo e seu sistema de valores. A Rússia e (mais freqüentemente, passivamente) os países que a sustentam seriam um cosmos alternativo: muitas civilizações, muitos mundos. Uma hierarquia contra várias hierarquias, organizadas em princípios autônomos. Na maioria das vezes em uma base histórico-religiosa. Foi exatamente assim que Huntington imaginou o futuro.

O choque de civilizações é uma competição de mundos, de ordens. Há um modelo centrado no Ocidente e um modelo pluralista.

Neste contexto, a OME aparece como algo bastante lógico e racional. O mundo unipolar, quase consolidado após o colapso do modelo bipolar desde 1991, não quer abrir mão de sua posição de liderança. Os novos centros de poder lutam para se libertar do poder de um hegemon em decadência. Mesmo a Rússia pode ter pressa em desafiá-lo diretamente, mas nunca se sabe o quão fraco (ou forte) ele realmente é até que se tente. Em todo caso, é bastante claro: existem dois modelos de cosmos em luta, um com um centro claro e outro com vários.

Em todo caso, não há caos, e se encontramos algo assim, é apenas como uma situação de transição de fase. Isto explicaria em parte a situação na Ucrânia, onde o caos está em pleno andamento. Mas o problema também tem outras dimensões.

O caos hobbesiano: o estado natural e o Leviatã

Vejamos mais de perto o que constitui uma ordem mundial unipolar, centrada no Ocidente. Não é apenas o domínio político-militar dos Estados Unidos e de seus Estados vassalos, especialmente a OTAN. É também a implementação de um projeto ideológico. Este projeto ideológico corresponde a uma democracia progressista. O significado de democracia progressista é que deve haver cada vez mais democracia e que o modelo vertical de sociedade deve ser substituído por um modelo horizontal — no caso extremo, um modelo em rede, rizomático.

O fundador da ciência política ocidental, Thomas Hobbes, imaginou a história da sociedade da seguinte forma. Na primeira fase, as pessoas vivem em um estado de natureza. Aqui, o ‘homem é o lobo do homem’ (homo homini lupus est). É um caos social inicial agressivo, baseado no egoísmo, na crueldade e no poder. Daí o princípio da guerra de todos contra todos. De acordo com Hobbes, esta é a natureza do homem, porque o homem é inerentemente maligno. Maligno, mas também inteligente.

A inteligência do homem lhe disse que se ele continuasse a permanecer em seu estado natural, mais cedo ou mais tarde as pessoas se matariam umas às outras. Decidiu-se, portanto, criar um ídolo terrível criado pelo homem, o Leviatã, que imporia as regras e as leis e garantiria que todos as seguissem. Desta forma, a humanidade resolveu o problema da coexistência dos lobos. O Leviatã é um super lobo, certamente mais forte e mais cruel do que qualquer homem. O Leviatã é um Estado.

A tradição do realismo político — antes de tudo nas relações internacionais — termina aqui. Há apenas o estado natural e o Leviatã. Se você não quer um, você tem o outro.

Caos em relações internacionais na tradição do realismo

Este modelo é bastante materialista. O estado natural corresponde ao caos agressivo, à inimizade (νεῖκος) — a alternativa de Empédocles ao amor/amizade. A introdução do Leviatã reequilibra a inimizade ao impor regras e regulamentos a todos os “lobos”, que eles não ousam violar sob pena de punição e, no limite, de morte. Daí a fórmula proposta muito mais tarde por Max Weber: “o Estado é o único sujeito de violência legítima”. O Leviatã é conscientemente mais forte e mais terrível que qualquer predador e, portanto, é capaz de deter uma série de agressões irreversíveis. Mas o Leviatã não é amor, não é Eros, não é psiquismo. É apenas uma nova expressão de inimizade, uma inimizade total elevada a um grau superior.

Daí o direito de qualquer Estado soberano (e o Leviatã é soberano e esta é sua principal característica) de iniciar uma guerra com outro Estado. Tendo pacificado a inimizade interna, o Leviatã é livre para travar a guerra externamente.

É este direito de ir à guerra que se torna a base do caos nas relações internacionais, de acordo com a escola do realismo. As relações internacionais são um caos precisamente porque não pode haver autoridade suprema entre os diferentes leviatãs. Elas estão no nível macro repetindo o estado natural: o estado é egoísta e mau porque egoísta e mau é o homem que o fundou. O caos interno é congelado para se revelar na guerra entre estados.

O realismo político não foi completamente superado mesmo nas democracias e é considerado um ponto de vista legítimo nas relações internacionais.

A ordem de Locke

Mas Isto não é tudo. Hobbes foi seguido por outro importante pensador, John Locke, que formulou uma escola diferente de pensamento político, o liberalismo. Locke sustentava que o próprio homem não era mau, mas sim eticamente neutro, uma tabula rasa. Se o Leviatã é mau, seus cidadãos também serão maus; mas se o Leviatã mudar seu caráter e sua orientação, ele será capaz de transformar a natureza das pessoas. As pessoas em si não são nada; elas podem ser transformadas em lobos e ovelhas. Tudo gira em torno da elite governante.

Se Hobbes pensa no estado antes do Estado e predetermina seu caráter monstruoso (daí o caos Hobbesiano) e o compara ao Estado, Locke examina o Estado já existente e o que poderia seguir se o próprio Estado deixasse de ser um monstro maligno e se tornasse uma fonte de moralidade e educação, para depois desaparecer por completo, transferindo a iniciativa para cidadãos reeducados — iluminados. Hobbes pensa em termos de passado/presente. Locke pensa em termos de presente/futuro. No presente, o Estado é mau, egoísta e cruel (daí as guerras e o caos nas relações internacionais). No futuro, no entanto, está destinado a se tornar bom, portanto, seus cidadãos deixarão de ser lobos e as guerras cessarão porque a compreensão mútua prevalecerá nas relações internacionais. Em outras palavras, Hobbes propõe uma dialética de caos e sua relativa remoção no Leviatã (com uma nova invasão das relações inter-estatais), enquanto Locke propõe resolver a natureza violenta do Estado refazendo (reeducando, iluminando) seus cidadãos e abolindo a guerra entre nações; mas a inimizade inerente a Hobbes, Locke propõe substituir não por amor e ordem, mas por comércio, intercâmbio, especulação. O comerciante (e não o profeta, padre ou poeta) substitui o guerreiro. Ao mesmo tempo, o comércio é chamado de douce commerce, ‘comércio gentil’. É suave comparado com a brutal apreensão do saque pelo guerreiro após a conquista da cidade. Mas sua brutalidade é demonstrada pelo Mercador de Veneza, de Shakespeare.

É importante notar que Locke pensa na pura ordem comercial pós-estatal como algo que sucede à era dos estados. Isto significa que a mente coletiva hipostática no Leviatã não é de modo algum abolida, apenas baixada a um nível inferior. Um cidadão reeducado e esclarecido (ex-lobo) é agora ele mesmo um Leviatã, mas apenas novo. Ao reeducar seus súditos, o monarca iluminado (sinônimo do estado iluminado) reeduca-se a si mesmo.

O governo mundial como projeto Iluminista

Daí a teoria da democracia política. O Estado educa seus cidadãos, erradica a agressão e o egoísmo e se torna altruísta e pacifista. Daí a principal lei das relações internacionais: as democracias não lutam umas contra as outras. E novamente: se os Estados não são mais egoístas (soberanos), eles são capazes de estabelecer democraticamente um governo mundial com autoridade supranacional; isso garantirá que todas as sociedades sejam boas, que apenas negociem umas com as outras e que nunca façam guerra umas contra as outras. Gradualmente, os Estados serão abolidos e um Mundo Único, uma sociedade civil global, nascerá.

Economia: o caos de Locke

Parece que em Locke e na tradição subseqüente do liberalismo que retoma suas ideias, o caos foi eliminado. Mas este não é o caso. Não existe o caos militar, mas existe o caos econômico. Portanto, não há agressão, mas existe o caos. Sim, a agressão e a hostilidade permanecem, mas adquirem um caráter diferente, ou seja, aquele imposto à sociedade pelo Estado comercial (capitalista). Especificamente, o estado da Europa Ocidental da Nova Era.

Que o mercado deve ser livre e a economia desregulamentada é a tese central do liberalismo, isto é, da democracia moderna. O caos é assim reintroduzido, mas apenas com uma aparência diferente, com a agressão cortada e o egoísmo dirigido. O Leviatã é identificado com a razão (foi fundado sobre sua base), e a razão é pensada como algo universal. Daí Kant, seu raciocínio transcendental e seus apelos à paz universal. Este raciocínio não é abolido (juntamente com a superação do Leviatã), mas transformado, suavizado, coletivizado (o Leviatã é coletivo) e depois atomizado em muitas unidades, escritas sobre folhas em branco de indivíduos atômicos. O homem pós-estatal difere do homem pré-estatal na medida em que a mente é doravante seu domínio individual. Foi assim que Hegel entendeu a sociedade civil. Nela, a racionalidade comum da velha monarquia é transmitida à multidão de cidadãos — a burguesia, os habitantes da cidade.

Portanto, na teoria liberal, como o Leviatã é racionalidade, a distribuição da racionalidade a todos os indivíduos elimina a necessidade da mesma. A sociedade será pacífica como é (como previsto pelo Leviatã acima), e realizará suas tendências selvagens na forma retirada — através da competição comercial. O teórico liberal racista social-darwinista Spencer diz a mesma coisa de uma forma dura.

O comércio gentil, o comércio douce, é um caos gentil, um caos no contexto da democracia liberal.

A nova democracia e governança: o caos gentil da dissipação

No Ocidente, há um equilíbrio entre Hobbes e Locke, uma concepção pessimista e retrospectiva do estado (e da própria natureza humana) e uma concepção otimista e progressista. A primeira é denominada realismo, a segunda liberalismo. Ambas as teorias modernas, centradas no ocidente e modernistas coincidem em geral, mas diferem em particularidades. Em primeiro lugar, na interpretação do caos. Para os realistas, o caos é inerentemente mau e agressivo, e foi para combatê-lo que o Estado — o Leviatã — foi criado; mas o caos não desapareceu e de interno se tornou externo. Daí a interpretação da natureza da guerra no realismo.

O liberalismo compartilha a interpretação da gênese do Estado, mas acredita que o mal no homem pode ser superado. Com a ajuda do Estado, que transforma (ilumina) e depois também ilumina seus cidadãos, a ponto de penetrar em seu código, sua natureza. Neste sentido, o Estado, especialmente o Estado iluminista, atua como um programador para instalar um novo sistema operacional na sociedade.

Com o sucesso do liberalismo, a teoria de uma nova democracia ou globalismo começou a tomar forma. Sua essência é que os estados nacionais são abolidos e as guerras desaparecem com eles, enquanto a natureza agressiva e egoísta do homem é mudada através da engenharia social, que transforma o homem — transforma o lobo em uma ovelha. O Leviatã não existe mais e o velho caos agressivo do lobo é abolido. Começa assim o caos do comércio mundial, a mistura de culturas e povos, a migração descontrolada, o multiculturalismo, a fusão de todos e de tudo em um só mundo.

Mas isto cria um novo caos. Não agressivo, mas suave, ‘gentil’. Neste caso, o controle não é abolido, mas relegado a um nível inferior. Enquanto o governo, mesmo na velha democracia, era uma estrutura eletiva, mas hierárquica e vertical, agora é governança, ou ‘governante’, onde o poder entra no governado, fundindo-se com ele até se tornar indistinguível. Não a censura, mas a autocensura. Não controle por cima, mas autocontrole. Assim, o Leviatã vertical se molda no horizonte dos indivíduos atômicos dispersos e entra em cada um deles. É um híbrido de caos (estado natural) e Leviatã (racionalidade universal). De fato, foi assim que Kant pensou sobre a sociedade civil. O universal é derramado nos átomos e agora não é mais uma instância externa, mas o raciocínio individual do cidadão esclarecido que refreia sua agressão e modera seu egoísmo. É assim que a violência é colocada dentro do indivíduo. O caos não divide o poder e as massas, não os estados entre si, mas o próprio homem. É a sociedade de risco de Ulrich Beck (Risikogeselshcaft): o perigo agora vem do ego e de suas divisões esquizofrênicas, que se tornam a norma. Isto leva ao indivíduo esquizofrênico, o portador do caos particular da nova democracia liberal progressista. Em vez de prejudicar os outros, o liberal “caótico” se danifica, se espanca, racha e se divide. A cirurgia de mudança de sexo e a promoção das minorias sexuais em geral não poderia ter vindo em melhor hora. A opção de gênero, a liberdade de escolha, coloca duas identidades autônomas uma contra a outra no mesmo indivíduo. A política de gênero permite que o ‘caoísmo’ tenha efeito pleno.

É, no entanto, um caos especial, desprovido de formalização sob a forma de agressão e guerra.

O caos como norma humana da nova democracia

É precisamente esta ordem da nova democracia que o Ocidente procura impor à humanidade. O globalismo insiste no caos comercial (mercado livre) combinado com a ideologia LGBT+, que normaliza a divisão dentro do indivíduo, postula o ‘caoísmo’ como um modelo antropológico. Isto pressupõe que a racionalidade e a proibição da agressão já estão incluídas no ‘caos’ — através da demonização em massa do nacionalismo e do comunismo (especialmente a versão soviética, stalinista).

Acontece que o mundo unipolar e a ordem global correspondente é uma ordem de caos progressivo. Não é um puro caos, mas também não é uma ordem no sentido pleno do termo. É uma “governança” que tende a se desenvolver horizontalmente. Assim, a tese de um governo mundial se revela demasiado hierárquica — leviatãnica. É mais correto falar de um governo mundial, um governo mundial invisível e implícito. Gilles Deleuze apontou corretamente que na era do capitalismo clássico, a imagem da toupeira é óptima: o capital trabalha invisivelmente para minar estruturas tradicionais, pré-modernas e construir sua própria hierarquia. A imagem da serpente é mais adequada à nova democracia. Sua flexibilidade e movimentos indicam o poder oculto que entrou na massa atomizada dos liberais do mundo. Cada um deles, individualmente, é portador de espontaneidade e imprevisibilidade caótica (bifurcação). Ao mesmo tempo, porém, um programa rígido é construído neles que predetermina toda a estrutura de desejo, comportamento e estabelecimento de metas, como uma fábrica com máquinas de desejo em funcionamento. Quanto mais livre o átomo está em relação à constelação, mais previsível se torna sua trajetória. Isto é o que Putin quis dizer ao citar Os Demônios de Dostoievski durante sua passagem em Shigalev: “Eu começo com liberdade absoluta e termino com escravidão absoluta.” O Leviatã como ídolo global, um demônio todo-poderoso feito pelo homem, não é mais necessário, pois os indivíduos liberais tornam-se pequenos ‘Leviatãs’ — espécimes ‘caóticos’, livres de religião, classe, nação, gênero; e a hegemonia de um Ocidente tão progressista e democrático não representa a ordem no velho sentido ou mesmo a ordem democrática, mas precisamente a hegemonia do caos ‘pacífico’.

Pacifistas vão na frente

Em que medida este caos lockeano é pacífico? Na medida em que não se depara com uma alternativa, ou seja, a ordem. Estas podem ser ordens ocidentais, mesmo a velha democracia Hobbesiana (que poderia ser coletivamente chamada de “Trumpismo” ou “velho liberalismo”), e outros tipos de ordens, geralmente não democráticas, que o Ocidente coletivamente chama de “autoritarismo”, ou seja, os regimes da Rússia, China, muitos países árabes e assim por diante. Por toda parte vemos outras articulações de ordem que se opõem aberta e explicitamente ao caos.

Aqui está um ponto interessante: diante da oposição, o pacifista neodemocrata liberal ocidental enlouquece e se torna extremamente militante. Sim, as democracias não lutam entre si, mas com regimes não democráticos, pelo contrário, a guerra deve ser impiedosa. Somente um ‘caótico’ sem gênero ou outra identidade coletiva é um ser humano, pelo menos um ser humano no sentido progressista. Todas as outras são as massas atrasadas e não iluminadas nas quais se baseia a ordem vertical, o Leviatã cínico ou mesmo versões mais autônomas e autárquicas da ordem. E elas devem ser destruídas.

Pós-ordem

Assim, o mundo unipolar entra numa batalha decisiva com o mundo multipolar, justamente porque o unipolarismo é o cume de uma vontade de extinção completa da ordem, substituindo-a por uma pós-ordem, um Novo Caos Mundial. A interiorização da agressão e a esquizocivilização do ‘caos’ só são possíveis quando não há fronteiras no mundo — sem nações, sem estados, sem ‘Leviatã’, isto é, sem ordem como tal, e até que haja, o pacifismo permanecerá absolutamente militante. Transgêneros e pervertidos recebem uniformes e são enviados para a batalha escatológica contra os adversários do caos.

Os porcos do caos de Gadara

Tudo isso lança uma nova luz conceitual sobre a OME, a guerra civilizacional da Rússia com o Ocidente, contra o unipolarismo e a favor do multipolarismo. A agressão aqui é multidimensional e tem vários níveis. Por um lado, a Rússia está demonstrando sua soberania, o que significa que está aceitando a regra do caos nas relações internacionais. Seja como for, esta é uma guerra real, mesmo que não seja reconhecida por Moscou. Moscou hesita por uma razão: não se trata de um clássico conflito militar entre dois estados-nação, mas algo diferente: é uma batalha de ordem multipolar contra o caos unipolar, e o território da Ucrânia é precisamente a fronteira conceitual. A Ucrânia não é ordem, não é caos, não é um estado, não é um território, não é uma nação, não é um povo. É uma névoa conceitual, uma sopa filosófica na qual os processos fundamentais de transição de fase acontecem. Qualquer coisa pode surgir deste nevoeiro, mas até agora é uma sobreposição de diferentes caos, o que torna este conflito único.

Se considerarmos a Rússia e Putin como realistas, o OME é uma continuação da batalha para a consolidação da soberania. Mas implica uma tese realista do caos das relações internacionais e, portanto, da legitimação da guerra. Para um Estado verdadeiramente soberano, ninguém pode proibir fazer ou não fazer algo, pois isso contradiria a própria noção de soberania.

Mas a Rússia luta claramente não apenas por uma ordem nacional contra o caos administrado pelos globalistas, mas também pelo multipolarismo, ou seja, pelo direito das diferentes civilizações de construir suas próprias ordens, ou seja, de superar o caos com seus próprios métodos. Assim, a Rússia está em guerra contra o caos do Novo Mundo apenas pelo princípio da ordem — não apenas pelo sua própria ordem, russa, mas pela ordem como tal. Em outras palavras, a Rússia procura defender precisamente a ordem mundial que se opõe à hegemonia ocidental, ou seja, a hegemonia do caos internalizado, ou seja, o globalismo.

E há outro ponto importante. A própria Ucrânia é uma entidade puramente caótica. E não apenas agora: em sua história, a Ucrânia tem sido um território de anarquia, uma área onde prevaleceu o “estado natural”. Um ucraniano é um lobo para um ucraniano, e ainda mais um lobo para um moscovita ou um yabloko. A Ucrânia é uma área natural de livre arbítrio anárquico, um acampamento nômade total, onde autonomistas atomizados e gordinhos buscam lucro ou aventura, sem restrições por qualquer estrutura. A Ucrânia também é um caos, hediondo, desumano e sem sentido. É ingovernável e desajeitada. Caos de porcos selvagens e suas namoradas.

Estes são os porcos de Gadara, nos quais os demônios expulsos por Cristo entraram e mergulharam no abismo. O destino da Ucrânia — como uma idéia e projeto — se resume a este mesmo símbolo.

OME, uma guerra de caos polissêmico

Não é, portanto, surpreendente que diferentes tipos de caos tenham entrado em conflito na Ucrânia. Por um lado, o caos global administrado pelo Ocidente da nova democracia tem apoiado e orientado os ucranianos “caóticos” em seu confronto com a ordem russa. Sim, essa ordem ainda é apenas uma promessa, apenas uma esperança. Mas a Rússia, de tempos em tempos, age exatamente como seu portador. Estamos falando de império, multipolaridade e confronto frente a frente com o Ocidente. Na maioria das vezes, porém, este vetor é apresentado sob a forma de soberania (realismo), o que tornou possível a OME. Não devemos perder de vista a profunda penetração do Ocidente na sociedade russa — o caos na própria Rússia tem sua própria base séria, o que mina o vetor da identidade da Rússia e a afirmação de sua ordem. A quinta e a sexta colunas na Rússia são partidárias do caos ocidental. Ambas estão afiando e corroendo a vontade do Estado e do povo de vencer no OME.

Portanto, a Rússia na OME, estando principalmente do lado da ordem, às vezes age de acordo com as regras do caos, impostas tanto pelo Ocidente (Caos do Novo Mundo) quanto pela própria natureza do inimigo.

O caos russo

O caos russo. Ele deve vencer, criando uma ordem russa.

Eis a última coisa. A sociedade russa traz dentro de si um começo caótico. Mas é outro caos, o caos russo. E este caos tem suas próprias características, suas próprias estruturas. É o oposto do caos do Novo Mundo dos liberais, porque não é individualista e material. É também diferente do caos pesado, carnal, corpóreo e sádico dos ucranianos, que naturalmente gera violência, terrorismo, atropelando todas as normas da humanidade. O caos russo é especial, tem seu próprio código; este código não coincide com o Estado, é estruturado de forma completamente independente dele. O caos russo está mais próximo do original grego, que é um vazio entre o céu e a terra, ainda não preenchido. Não é tanto uma mistura de sementes beligerantes das coisas (como em Ovídio), mas uma antecipação de algo grande: o nascimento do Amor, uma aparição da Alma. Os russos são um povo precoce para algo que ainda não se manifestou plenamente. E é precisamente este tipo especial de caos, prenhe de novos pensamentos e novas ações, que o povo russo carrega dentro de si.

Para este caos russo, o quadro do estado russo moderno é estreito e até ridículo. Ele carrega consigo as sementes de alguma grande realidade inconcebível. Uma estrela dançante russa.

E o fato da OME incluir não apenas o Estado, mas também o próprio povo russo, torna tudo ainda mais complexo e complicado. O Ocidente é um caos. A Ucrânia é um caos. O povo russo é um caos. O Ocidente tem uma ordem no passado, nós temos uma ordem no futuro. E estes elementos de ordem – fragmentos da ordem do passado, elementos do futuro, contornos de alternativas, bordas conflitantes de projetos — estão misturados com a batalha do caos.

Não é de se admirar que o OME pareça tão caótica. Esta é uma guerra do caos, com caos, pelo caos e contra o caos.

O caos russo. É ele quem deve vencer, criando uma Ordem Russa.

Fonte: Geopolitika.ru
Tradução: Augusto Fleck

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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