O Manifesto do Grande Despertar: Contra o Grande Reset

O Grande Reset é o mais recente projeto globalista que almeja tirar tudo que temos, inclusive nossa própria humanidade. Contra o adormecimento perpétuo prometido pela elite bilionária de Davos, o filósofo russo Aleksandr Dugin nos convoca a uma política do Grande Despertar de natureza internacional, popular e fundamentalmente humana.

Parte 1. O Grande Reset

Os 5 Pontos do Príncipe Charles

Em 2020, no fórum de Davos, o fundador do fórum, Klaus Schwab e Charles, o Príncipe de Gales, proclamaram um novo curso para a humanidade, o Grande Reset.

O plano, de acordo com o Príncipe de Gales, consiste em cinco pontos:

  1. Capturar a imaginação e a vontade da humanidade – a mudança só acontecerá se as pessoas realmente quiserem;
  2. A recuperação econômica deve colocar o mundo no caminho da empregabilidade, crescimento e estilo de vida sustentáveis. Estruturas de incentivo de longa data que tiveram efeitos perversos sobre o nosso ambiente planetário e sobre a própria natureza devem ser reinventadas;
  3. Sistemas e caminhos devem ser redesenhados para promover uma transição para emissões zero a nível global. A precificação do carbono pode proporcionar um caminho crítico para um mercado sustentável;
  4. A ciência, a tecnologia e a inovação precisam ser revigoradas. A humanidade está à beira de avanços catalíticos que irão alterar a nossa visão do que é possível e rentável no quadro de um futuro sustentável;
  5. O investimento deve ser reequilibrado. A aceleração dos investimentos ecológicos pode oferecer oportunidades de emprego em energia verde, na economia circular e na bioeconomia, no ecoturismo e em infraestruturas públicas verdes.

O termo “sustentável” faz parte do conceito mais importante do Clube de Roma – “desenvolvimento sustentável”. Esta teoria está baseada em outra teoria – os “limites do crescimento”, segundo a qual a superpopulação do planeta atingiu um ponto crítico (o que implica a necessidade de reduzir a taxa de natalidade).

O fato de a palavra “sustentável” ser utilizada no contexto da pandemia da Covid-19, que, segundo alguns analistas, deverá conduzir ao declínio da população, provocou uma reação significativa a nível mundial.

Os principais pontos do Grande Reset são:

  1. O controle da consciência pública em escala global, que está no centro da “cultura do cancelamento”, a introdução da censura nas redes controladas pelos globalistas (ponto 1);
  2. Transição para uma economia ecológica e rejeição das estruturas industriais modernas (pontos 2 e 5);
  3. A entrada da Humanidade na 4ª ordem econômica (à qual foi dedicada a reunião anterior de Davos), i.e. a substituição gradual da força de trabalho por ciborgues e a implementação de Inteligência Artificial avançada em uma escala global (ponto 3).

A ideia principal do “Grande Reset” é a continuação da globalização e o fortalecimento do globalismo após uma série de fracassos: a presidência conservadora do antiglobalista Trump, a crescente influência de um mundo multipolar – especialmente da China e da Rússia, a ascensão de países islâmicos como Turquia, Irã, Paquistão, Arábia Saudita e seu recuo da esfera de influência ocidental.

No fórum de Davos, representantes das elites liberais globais declararam a mobilização de suas estruturas em antecipação à presidência de Biden e à vitória dos democratas nos EUA, algo que eles fortemente desejavam.

Implementação

A marca da agenda globalista é a canção de Jeff Smith “Build Back Better” (slogan de campanha de Joe Biden). O que significa que depois de uma série de contratempos (como um tufão ou o furacão Katrina), as pessoas (ou seja, os globalistas) reconstroem uma infraestrutura melhor do que a que existia antes.

O “Grande Reset” começa com a vitória de Biden.

Líderes mundiais, chefes de grandes corporações – Big Tech, Big Data, Big Finance, etc. – se uniram e se mobilizaram para derrotar seus oponentes – Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Aiatolá Khamenei e outros. O início foi para roubar a vitória de Trump usando novas tecnologias – através da “captura das imaginações” (ponto 1), da introdução da censura na Internet, e da manipulação dos votos por correio.

A chegada de Biden à Casa Branca significa que os globalistas estão se movendo para os próximos passos.

Isso afetará todas as áreas da vida – os globalistas estão voltando ao ponto onde Trump e outros pólos da multipolaridade ascendente os impediram. E é aí que o controle da mente (através da censura e manipulação das mídias sociais, vigilância total e coleta de dados de todos) e a introdução de novas tecnologias desempenham um papel fundamental.

A epidemia da Covid-19 é uma desculpa para isso. Sob o pretexto da higiene sanitária, o Grande Reset espera alterar dramaticamente as estruturas de controle das elites globalistas sobre a população mundial.

A posse de Joe Biden e os decretos que ele já assinou (derrubando praticamente todas as decisões de Trump) significa que o plano começou a ser posto em prática.

Em seu discurso sobre o “novo” curso da política externa dos EUA , Biden expressou os sentidos principais da política globalista. Pode parecer algo “novo”, mas apenas em parte, e apenas em comparação com as políticas de Trump. No geral, Biden simplesmente anunciou um retorno ao vetor anterior:

  • Colocar os interesses globais à frente dos interesses nacionais;
  • Fortalecer as estruturas do Governo Mundial e seus ramos sob a forma de organizações supranacionais globais e estruturas econômicas;
  • Reforçar o bloco da OTAN e a cooperação com todas as forças e regimes globalistas;
  • A promoção e o aprofundamento da mudança democrática em escala global, o que na prática significa:
  1. A escalada das relações com os países e regimes que rejeitam a globalização – em primeiro lugar, a Rússia, a China, o Irã, a Turquia, etc.;
  2. Um aumento da presença militar dos EUA no Médio Oriente, Europa e África;
  3. A difusão da instabilidade e das “revoluções coloridas”;
  4. O uso generalizado da “demonização”, e da “desplataforma” e do ostracismo das redes (cultura do cancelamento) contra todos aqueles que têm opiniões diferentes da posição globalista (tanto no exterior como nos EUA em si).

Assim, a nova liderança da Casa Branca não só não mostra a menor vontade de ter um diálogo igualitário com ninguém, mas apenas aperta seu próprio discurso liberal, que não tolera qualquer objeção. O globalismo está entrando em uma fase totalitária. Isso torna a possibilidade de novas guerras – incluindo um risco aumentado de Terceira Guerra Mundial – mais do que provável.

A Geopolítica do “Grande Reset”

A Fundação para a Defesa das Democracias, de orientação globalista, que expressa a posição dos círculos neoconservadores estadunidenses recentemente lançou um relatório recomendando a Biden que algumas das posições de Trump, tais como:

  1. crescente oposição à China,
  2. aumento da pressão sobre o Irã

– são positivas e que Biden deve continuar a avançar ao longo destes eixos na política externa.

Os autores do relatório, por outro lado, condenaram ações de política externa de Trump, tais como:

  1. trabalhar para desintegrar a OTAN;
  2. aproximação com “líderes totalitários” (chineses, norte-coreanos e russos);
  3. um acordo “ruim” com os Taliban;
  4. retirada das tropas dos EUA da Síria.

Assim, o “Grande Reset” na geopolítica significará uma combinação de “promoção da democracia” e “estratégia agressiva neoconservadora de dominação em larga escala”, que é o principal vetor da política “neoconservadora”. Ao mesmo tempo, Biden é aconselhado a continuar e aumentar o confronto com o Irã e a China, mas o foco principal deve ser na luta contra a Rússia. E isso requer o fortalecimento da OTAN e a expansão da presença dos EUA no Oriente Médio e na Ásia Central.

Como Trump, Rússia, China, Irã e alguns outros países islâmicos são vistos como os principais obstáculos. É assim que projetos ambientais e inovações tecnológicas (em primeiro lugar, a introdução da Inteligência Artificial e da robótica) são combinados com o surgimento de uma política militar agressiva.

Parte 2. Uma Breve História da Ideologia Liberal: Globalismo como Culminação

Nominalismo

Para entender claramente o que significa a vitória de Biden e o “novo” curso de Washington para o “Grande Reset” em escala histórica, é preciso olhar para toda a história da ideologia liberal, a partir de suas raízes. Só assim poderemos compreender a gravidade da nossa situação. A vitória de Biden não é um episódio de coincidência, e o anúncio de um contra-ataque globalista não é meramente a agonia de um projeto fracassado. É muito mais grave do que isso. Biden e as forças por trás dele encarnam a culminação de um processo histórico que começou na Idade Média, atingiu sua maturidade na Modernidade com o surgimento da sociedade capitalista, e que hoje está atingindo sua fase final – a teórica delineada desde o início.

As raízes do sistema liberal (=capitalista) remontam à disputa escolástica sobre os universais. Esta disputa dividiu teólogos católicos em dois campos: alguns reconheceram a existência do comum (espécie, gênero, universalia), enquanto outros acreditavam em apenas no ente concreto – coisas individuais, e interpretaram seus nomes generalizados como sistemas convencionais puramente externos de classificação, representando “som vazio”. Aqueles que estavam convencidos da existência do geral, a espécie, recorreram à tradição clássica de Platão e Aristóteles. Eles vieram a ser chamados de “realistas”, isto é, aqueles que reconheciam a “realidade da Universalia”. O representante mais proeminente dos “realistas” foi Tomás de Aquino e, em geral, essa era a tradição dos monges dominicanos.

Os proponentes da ideia de que apenas as coisas e os seres individuais são reais vieram a ser chamados de “nominalistas”, do latim “nomen”. A demanda – “os entes não devem ser multiplicados sem necessidade” – remonta precisamente a um dos principais defensores do “nominalismo”, o filósofo inglês Guilherme de Occam. Ainda antes, as mesmas ideias haviam sido defendidas por Roscelin de Compiègne. Embora os “realistas” ganhassem a primeira fase do conflito e os ensinamentos dos “nominalistas” fossem anatemizados, mais tarde os caminhos da filosofia europeia ocidental – especialmente da Nova Era – foram seguidos por Occam.

O “nominalismo” lançou as bases para o futuro liberalismo, tanto ideologicamente como economicamente. Aqui os seres humanos eram vistos apenas como indivíduos e nada mais, e todas as formas de identidade coletiva (religião, classe, etc.) deviam ser abolidas. Da mesma forma, o ente era visto como propriedade privada absoluta, como uma coisa concreta, separada que poderia facilmente ser atribuída como propriedade a este ou aquele proprietário individual.

O nominalismo prevaleceu em primeiro lugar na Inglaterra, tornou-se generalizada em países protestantes e gradualmente se tornou a principal matriz filosófica da Nova Era – na religião (relações individuais do homem com Deus), na ciência (atomismo e materialismo), na política (pré-condições da democracia burguesa), na economia (mercado e propriedade privada), na ética (utilitarismo, individualismo, relativismo, pragmatismo), etc.

Capitalismo: A Primeira Fase

A partir do nominalismo, podemos traçar todo o caminho do liberalismo histórico, de Roscelin e Occam a Soros e Biden. Por conveniência, vamos dividir esta história em três fases.

A primeira fase foi a introdução do nominalismo no âmbito da religião. A identidade coletiva da Igreja, tal como entendida pelo catolicismo (e ainda mais pela ortodoxia), foi substituída por protestantes como indivíduos que poderiam, doravante, interpretar as Escrituras com base em seu raciocínio e rejeitar qualquer tradição. Assim, muitos aspectos do cristianismo – os sacramentos, milagres, anjos, recompensa após a morte, o fim do mundo, etc. – foram reconsiderados e descartados como não cumprindo os “critérios racionais”.

A Igreja enquanto “corpo místico de Cristo” foi destruída e substituída por clubes criados por livre consentimento a partir de baixo. Isso criou um grande número de seitas protestantes concorrentes. Na Europa e na mesma Inglaterra, onde o nominalismo gerou mais frutos, o processo foi parcialmente sublimado, e os mais radicais protestantes partiram para o Novo Mundo e estabeleceram sua própria sociedade ali. Posteriormente, após o conflito com a metrópole, surgiram os Estados Unidos.

Paralelamente à destruição da Igreja enquanto “identidade coletiva” (algo “comum”), os estamentos começaram a ser abolidas. A hierarquia social dos sacerdotes, aristocracia e camponeses foi substituída por “citadinos” indiferenciados, de acordo com o significado original da palavra “burguês”. A burguesia suplantou todos os outros estratos da sociedade europeia. Mas o burguês era exatamente o melhor “indivíduo”, um cidadão sem clã, tribo ou profissão, mas com propriedade privada. E esta nova classe começou a reconstruir toda a sociedade europeia.

Ao mesmo tempo, a unidade supranacional da Santa Sé e do Império Romano do Ocidente – enquanto expressões da “identidade coletiva” – também foi abolida. Em seu lugar se estabeleceu uma ordem fundada em Estados-nação soberanos, uma espécie de “indivíduo político”. Após o fim da Guerra dos Trinta Anos, a Paz de Vestfália consolidou essa ordem.

Assim, em meados do século XVII, uma ordem burguesa (isto é, o capitalismo), emergiu nas principais características da Europa Ocidental.

A filosofia da nova ordem foi em muitos aspectos antecipada por Thomas Hobbes e desenvolvida por John Locke, David Hume e Immanuel Kant. Adam Smith aplicou estes princípios ao campo econômico, dando origem ao liberalismo enquanto ideologia econômica. De fato, o capitalismo, baseado na implementação sistemática do nominalismo, tornou-se uma cosmovisão sistêmica coerente. O significado da história e do progresso passou a ser “libertar o indivíduo de todas as formas de identidade coletiva” até o limite lógico.

Até o século XX, através do período das conquistas coloniais, o capitalismo europeu ocidental havia se tornado uma realidade global. A abordagem nominalista prevaleceu na ciência e na cultura, na política e na economia, no próprio pensamento quotidiano das pessoas do Ocidente, e eventualmente da humanidade inteira.

O Século XX e o Triunfo da Globalização: A Segunda Fase

No século XX, o capitalismo enfrentou um novo desafio. Desta vez, não eram as formas usuais de identidade coletiva – religiosa, estamental, profissional, etc. – mas teorias artificiais e também modernas (como o próprio liberalismo) que rejeitavam o individualismo e se opuseram a ele com novas formas de identidade coletiva (combinadas conceitualmente).

Socialistas, social-democratas e comunistas combateram os liberais com identidades classistas, chamando os trabalhadores de todo o mundo a se unirem para derrubar o poder da burguesia global. Esta estratégia provou ser eficaz, e em alguns países importantes (embora não naqueles países industrializados e ocidentais, onde Karl Marx, o fundador do comunismo, esperava), as revoluções proletárias foram implementadas.

Paralelamente aos comunistas ocorreu, desta vez na Europa Ocidental, a tomada do poder por forças nacionalistas radicais. Eles agiam em nome da “nação” ou de uma “raça”, novamente contrastando o individualismo liberal com algo “comum”, algum “ser coletivo”.

Os novos opositores do liberalismo já não pertenciam à inércia do passado, como nas fases anteriores, mas representavam projetos modernistas desenvolvidos no próprio Ocidente. Mas eles também foram construídos sobre uma rejeição do individualismo e do nominalismo. Isso foi claramente entendido pelos teóricos do liberalismo (acima de tudo, por Hayek e seu discípulo Popper), que uniu “comunistas” e “fascistas” sob o nome comum de “inimigos da sociedade aberta”, e começou uma guerra mortal contra eles.

Instrumentalizando taticamente a Rússia Soviética, o capitalismo inicialmente conseguiu lidar com os regimes fascistas, e este foi o resultado ideológico da Segunda Guerra Mundial. A Guerra Fria que se seguiu entre o Oriente e o Ocidente no final da década de 1980 terminou em uma vitória liberal sobre os comunistas.

Assim, o projeto de libertação do indivíduo de todas as formas de identidade coletiva e o “progresso ideológico”, tal como entendido pelos liberais, passaram por outra etapa. Na década de 1990, teóricos liberais começaram a falar sobre o “fim da história” (F. Fukuyama) e sobre o “momento unipolar” (C. Krauthammer).

Esta foi uma prova vívida da entrada do capitalismo em sua fase mais avançada – a fase do globalismo. Na verdade, foi neste momento em a estratégia globalista das elites dominantes dos EUA triunfou – delineada na Primeira Guerra Mundial pelos 14 Pontos de Wilson, mas no final da Guerra Fria unindo a elite de ambos os partidos – democratas e republicanos – representada principalmente pelos “neoconservadores”.

Gênero e Pós-Humanismo: A Terceira Fase

Depois de derrotar seu último inimigo ideológico, o campo socialista, o capitalismo chegou a um ponto crucial. O individualismo, o mercado, a ideologia dos direitos humanos, a democracia e os valores ocidentais venceram em escala global. Pareceria que a agenda estava sendo cumprida – ninguém se opõe ao “individualismo” e ao nominalismo com nada sério ou sistêmico mais.

Neste período, o capitalismo entra em sua terceira fase. Em uma inspeção mais próxima, depois de derrotar o inimigo externo, os liberais descobriram mais duas formas de identidade coletiva. Em primeiro lugar, o gênero. Afinal, o gênero também é algo coletivo: masculino ou feminino. O próximo passo foi a destruição do gênero como algo objetivo, essencial e insubstituível.

O gênero exigia a abolição, assim como todas as outras formas de identidade coletiva, que haviam sido abolidas ainda mais cedo.

Daí a política de gênero, a transformação da categoria do gênero em algo “opcional” e dependente da escolha individual. Aqui, novamente, estamos lidando com o mesmo nominalismo: por que entidades duplas? Uma pessoa é uma pessoa enquanto indivíduo, enquanto o gênero pode ser escolhido arbitrariamente, assim como a religião, a profissão, a nação e modo de vida foram escolhidos antes.

Esta tornou-se a principal agenda da ideologia liberal na década de 1990, após a derrota da União Soviética. Sim, os opositores externos estavam no caminho da política de gênero – os países que ainda preservavam os restos da sociedade tradicional, os valores da família, etc., bem como os círculos conservadores no próprio Ocidente. Combater os conservadores e “homofóbicos”, isto é, os defensores da visão tradicional da existência dos sexos, tornou-se o novo objetivo dos adeptos do liberalismo progressista. Muitos esquerdistas se juntaram, substituindo os objetivos anticapitalistas anteriores pela política de gênero e pela defesa da imigração.

Com o sucesso da institucionalização das normas de gênero e o sucesso da migração em massa, que está atomizando populações no próprio Ocidente (que também se encaixa perfeitamente dentro de uma ideologia de direitos humanos que opera com o indivíduo sem levar em conta aspectos culturais, religiosos, sociais ou nacionais), tornou-se óbvio que os liberais tinham um último passo a dar – abolir os seres humanos.

Afinal, o humano é também uma identidade coletiva, o que significa que ele deve ser superado, abolido, destruído. Isto é o que o princípio do nominalismo exige: uma “pessoa” é apenas um nome, um tremor de ar vazio, uma classificação arbitrária e, portanto, sempre discutível. Existe apenas o indivíduo – humano ou não, masculino ou feminino, religioso ou ateu, que depende de sua própria escolha.

Assim, o último passo deixado para os liberais, que viajaram séculos em direção ao seu objetivo, é substituir os seres humanos, embora parcialmente, por ciborgues, redes de Inteligência Artificial e produtos de engenharia genética. O humano opcional logicamente segue o gênero opcional.

Esta agenda já é bastante prefigurada pelo pós-humanismo, pós-modernismo e realismo especulativo na filosofia, e tecnologicamente está se tornando cada vez mais realista a cada dia. Futurologistas e defensores da aceleração do processo histórico (aceleracionistas) estão confiantes olhando para o futuro próximo, quando a Inteligência Artificial se tornará comparável em parâmetros básicos com os seres humanos. Este momento é chamado de Singularidade. Sua chegada é prevista dentro de 10 a 20 anos.

A Última Batalha dos Liberais

Este é o contexto em que a vitória roubada de Biden nos EUA deve ser colocada. Isto é o que o “Grande Reset” ou o slogan “Construir De Novo Melhor” significa.

Na década de 2000, os globalistas enfrentaram uma série de problemas que não eram tanto ideológicos como “civilizacionais” em natureza. Desde o final da década de 1990, não há ideologias mais ou menos coerentes no mundo que possam desafiar o liberalismo, o capitalismo e o globalismo. Em graus variados, mas estes princípios foram aceitos por todos ou quase todos. No entanto, a implementação do liberalismo e da política de gênero, bem como a abolição dos Estados-nação em favor do governo mundial, estagnou em várias frentes.

Isto foi cada vez mais resistido pela Rússia de Putin, que tinha armas nucleares e uma tradição histórica de oposição ao Ocidente, bem como uma série de tradições conservadoras preservadas na sociedade.

A China, embora ativamente engajada na globalização e nas reformas liberais, não tinha pressa em aplicá-las ao sistema político, mantendo o domínio do Partido Comunista e recusando a liberalização política. Além disso, sob Xi Jinping, as tendências nacionais na política chinesa começaram a crescer. Pequim habilmente usou o “mundo aberto” para perseguir seus interesses nacionais e até mesmo civilizacionais. E isso não fazia parte dos planos dos globalistas.

Os países islâmicos continuaram a sua luta contra a ocidentalização e, apesar dos bloqueios e pressões, mantiveram (como o Irã xiita) os seus regimes irreconciliavelmente antiocidentais e antiliberais. As políticas dos principais Estados sunitas, como a Turquia e o Paquistão, tornaram-se cada vez mais independentes do Ocidente.

Na Europa, uma onda de populismo começou a aumentar enquanto o descontentamento indígena europeu com a imigração em massa e a política de gênero explodiram. As elites políticas europeias permaneceram completamente subordinadas à estratégia globalista, como visto no Fórum de Davos nos relatórios de seus teóricos Schwab e Príncipe Charles, mas as próprias sociedades entraram em movimento e às vezes se levantaram em revolta direta contra as autoridades – como no caso dos protestos dos “coletes amarelos” na França. Em alguns lugares, como a Itália, a Alemanha ou a Grécia, os partidos populistas chegaram mesmo a entrar no parlamento.

Finalmente, em 2016, nos próprios Estados Unidos, Donald Trump conseguiu se tornar presidente, sujeitando a ideologia, práticas e metas globalistas a críticas duras e diretas. E ele foi apoiado por cerca de metade dos americanos.

Todas estas tendências antiglobalistas aos olhos dos próprios globalistas não podiam deixar de acrescentar um quadro sinistro: a história dos últimos séculos, com o seu progresso aparentemente ininterrupto dos nominalistas e liberais, foi posta em causa. Este não foi simplesmente o desastre deste ou daquele regime político. Foi a ameaça do fim do liberalismo enquanto tal.

Mesmo os teóricos do globalismo sentiram que algo estava errado. Fukuyama, por exemplo, abandonou sua tese do “Fim da História” e sugeriu que os Estados-nações ainda permanecessem sob o domínio das elites liberais, a fim de melhor preparar as massas para a transformação final na pós-humanidade, apoiada por métodos rígidos. Outro globalista, Charles Krauthammer, declarou que o “momento unipolar” havia acabado e que as elites globalistas não tinham conseguido tirar proveito dele.

Este é exatamente o estado de pânico e quase histeria em que os representantes da elite globalista passaram os últimos quatro anos. E é por isso que a questão da remoção de Trump como Presidente dos Estados Unidos era uma questão de vida ou morte para eles. Se Trump tivesse mantido seu cargo, o colapso da estratégia globalista teria sido irreversível.

Mas Biden conseguiu – honestamente ou não – derrubar Trump e demonizar seus partidários. É aqui que o Grande Reset entra em jogo. Não há realmente nada de novo nele – ele é uma continuação do principal vetor da civilização europeia ocidental na direção do progresso, interpretado no espírito da ideologia liberal e da filosofia nominalista. Não sobra muito: libertar os indivíduos das últimas formas de identidade coletiva – completar a abolição do gênero e avançar para um paradigma pós-humanista.

Avanços em alta tecnologia, a integração das sociedades em redes sociais, fortemente controladas, como agora parece, pelas elites liberais de uma forma abertamente totalitária, e o refinamento das formas de rastrear e influenciar as massas tornam a realização do objetivo liberal global bastante próxima.

Mas para fazer esse lançamento decisivo, eles devem, em um modo acelerado (e não mais prestando atenção em como isso parece), rapidamente limpar o caminho para a finalização da história. E isso significa que a varredura de Trump é o sinal para atacar todos os outros obstáculos.

Então nós determinamos nosso lugar na escala da história. E ao fazer isso, temos uma imagem mais completa do que é o Grande Reset. Ele é nada menos do que o início da “última batalha”. Os globalistas, em sua luta pelo nominalismo, liberalismo, libertação individual e sociedade civil, aparecem para si mesmos como “guerreiros da luz”, trazendo progresso, libertação em relação milhares de anos de preconceito, novas possibilidades – e talvez até mesmo a imortalidade física e as maravilhas da engenharia genética, para as massas.

Todos os que se opõem a eles são, aos seus olhos, “forças das trevas”. E por esta lógica, os “inimigos da sociedade aberta” devem ser tratados em sua própria severidade. “Se o inimigo não se render, ele será destruído.” O inimigo é qualquer um que questiona o liberalismo, o globalismo, o individualismo, o nominalismo em todas as suas manifestações. Esta é a nova ética do liberalismo. Não é nada pessoal. Todo mundo tem o direito de ser liberal, mas ninguém tem o direito de ser qualquer outra coisa.

Parte 3. O Cisma nos EUA: O Trumpismo e seus Inimigos

O Inimigo Interior

Em um contexto mais limitado do que o quadro da história geral do liberalismo de Occam a Biden, a vitória de Trump na batalha pela Casa Branca no inverno de 2020-2021, tão dura para os democratas como ela foi, também tem um enorme significado ideológico. Isto tem a ver primeiramente com os processos que se desdobram dentro da própria sociedade americana.

O fato é que, após a queda da União Soviética e o início do “momento unipolar” na década de 1990, o liberalismo global não teve adversários externos. Pelo menos, é o que parecia à altura no contexto da expectativa optimista do “Fim da História”. Embora tais previsões tenham se mostrado prematuras, Fukuyama não se perguntou simplesmente se o futuro havia chegado – ele estava seguindo estritamente a própria lógica da interpretação liberal da história, e assim, com alguns ajustes, sua análise estava geralmente correta.

Na verdade, as normas da democracia liberal – o mercado, as eleições, o capitalismo, o reconhecimento dos “direitos humanos”, as normas da “sociedade civil”, a adoção de transformações tecnocráticas, e um desejo de abraçar o desenvolvimento e implementação da alta tecnologia – especialmente a tecnologia digital – de alguma forma se impuseram sobre toda a humanidade. Se alguns persistiam em sua aversão à globalização, isso poderia ser visto como mera inércia, como uma falta de vontade de ser “abençoado” com o progresso liberal.

Ou seja não era oposição ideológica, mas somente um incômodo infeliz. As diferenças civilizacionais seriam gradualmente apagadas. A adoção do capitalismo pela China, Rússia e o mundo islâmico mais cedo ou mais tarde implicaria processos de democratização política, o enfraquecimento da soberania nacional, e acabaria por levar à instituição de um sistema planetário – um Governo Mundial. Não se tratava de uma questão de luta ideológica, mas de uma questão de tempo.

Foi neste contexto que os globalistas tomaram novas medidas para avançar seu programa básico de abolir todas as formas residuais de identidade coletiva. Isso se referia principalmente à política de gênero, bem como à intensificação dos fluxos migratórios destinados a desgastar permanentemente a identidade cultural das próprias sociedades ocidentais, incluindo as sociedades europeias e americanas. Assim, a globalização desferiu o seu principal golpe.

Neste contexto, um “inimigo interior” começou a emergir no próprio Ocidente. Estas eram todas aquelas forças que se ressentiam da destruição da identidade sexual, da destruição dos restos da tradição cultural (através da migração) e do enfraquecimento da classe média. Os horizontes pós-humanistas da Singularidade iminente e a substituição dos seres humanos pela Inteligência Artificial também foram cada vez mais preocupantes. E no nível filosófico, nem todos os intelectuais aceitaram as conclusões paradoxais da Pós-Modernidade e do realismo especulativo.

Além disso, havia uma clara contradição entre as massas ocidentais, vivendo no contexto das velhas normas da Modernidade, e as elites globalistas, procurando a todo custo acelerar o progresso social, cultural e tecnológico como entendido na ótica liberal. Assim, um novo dualismo ideológico começou a tomar forma, desta vez dentro do Ocidente e não fora dele.

Os inimigos da “sociedade aberta” apareceram agora dentro da própria civilização ocidental. Eram aqueles que rejeitaram os últimos fins liberais e não aceitaram a política de gênero, a migração em massa ou a abolição dos Estados-nações e da soberania.

Ao mesmo tempo, no entanto, essa crescente resistência, genericamente referida como “populismo” (ou “populismo de direita”), baseava-se na mesma ideologia liberal – capitalismo e democracia liberal – mas interpretava esses “valores” e “referências” no sentido antigo, e não no novo.

A liberdade era concebida aqui como a liberdade de sustentar quaisquer pontos de vista, não apenas aqueles que se conformavam com as normas do politicamente correto. A democracia era interpretada como governo da maioria. A liberdade de mudar de gênero deveria ser combinada com a liberdade de permanecer fiel aos valores familiares. A vontade de aceitar os migrantes que expressassem um desejo e provassem sua capacidade de se integrar nas sociedades ocidentais era estritamente diferenciada da aceitação geral de todos, sem distinção, acompanhada por desculpas contínuas a quaisquer recém-chegados por seu passado colonial.

Gradualmente, o “inimigo interno” dos globalistas atingiu proporções sérias e grande influência. A velha democracia desafiou a nova.

Trump e a Revolta dos Deploráveis

Isso culminou na vitória de Donald Trump em 2016. Trump construiu sua campanha sobre esta divisão da sociedade americana. A candidata globalista, Hillary Clinton, imprudentemente chamou os apoiadores de Trump, ou seja, o “inimigo doméstico”, de “deploráveis”, ou seha “patéticos”, “lamentáveis”. Os “deploráveis” responderam elegendo Trump.

Assim, a divisão dentro da democracia liberal tornou-se um fato político e ideológico crucial. Aqueles que interpretavam a democracia à “maneira antiga” (como governo da maioria) não só se rebelaram contra a nova interpretação (governo minoritário dirigido contra a maioria inclinada a tomar uma posição populista, repleta de … bem, sim, claro, “fascismo” ou “stalinismo”), mas conseguiram ganhar e levar o candidato à Casa Branca.

Trump, por sua vez, declarou sua intenção de “drenar o pântano”, ou seja, de acabar com o liberalismo em sua estratégia globalista e de “tornar a América grande novamente”. Repara na palavra “novamente”. Trump queria retornar à era dos Estados-nações, para tomar uma série de medidas contra a corrente da história (como os liberais a entendiam). Em outras palavras, o “bom e velho ontem” se opôs ao “hoje globalista” e ao “pós-humanista amanhã”.

Os quatro anos seguintes foram um verdadeiro pesadelo para os globalistas. A mídia globalista controlada acusou Trump de todos os pecados possíveis – incluindo “trabalhar para os russos” porque os “russos” também persistiram em sua rejeição do “admirável novo mundo”, sabotando instituições supranacionais – até e incluindo o Governo Mundial – e impedindo desfiles de orgulho gay.

Todos os opositores da globalização liberal foram logicamente agrupados, incluindo não só Putin, Xi Jinping, alguns líderes islâmicos, mas também – imagine isso! – o Presidente dos Estados Unidos da América, o homem número um do “mundo livre”. Isso foi um desastre para os globalistas. Até que Trump foi despejado – por meio das revoluções coloridas, tumultos planejados, votação fraudulenta e métodos de contagem de votos usados anteriormente apenas contra outros países e regimes – eles não se sentiam à vontade.

Foi apenas após terem retomado as rédeas da Casa Branca que os globalistas começaram a voltar à razão. E eles retornaram a…o de sempre. Mas em seu recaso, o “de sempre” (reconstruir) significava retornar ao “momento unipolar” dos tempos pré-Trump.

Trumpismo

Trump cavalgouuma onda de populismo em 2016 que nenhum outro líder europeu conseguiu. Trump tornou-se assim um símbolo de oposição à globalização liberal. Sim, não era uma ideologia alternativa, mas apenas uma resistência desesperada às últimas conclusões tiradas da lógica e até da metafísica do liberalismo (e do nominalismo). Trump não estava de modo algum desafiando o capitalismo ou a democracia, mas apenas as formas que elas tinham tomado em seu estágio mais recente e sua implementação gradual e consistente. Mas mesmo isso foi suficiente para marcar uma divisão fundamental na sociedade americana.

Foi assim que o fenômeno do “trumpismo” tomou forma, em muitos aspectos excedendo a escala da própria personalidade de Donald Trump. Trump jogou com a onda de protestos antiglobalização. Mas é claro que ele não era e não é uma figura ideológica. E, no entanto, foi em torno dele que o bloco de oposição começou a se formar. A conservadora americana Ann Coulter, autora do livro In Trump we Trust [Em Trump Confiamos], reformulou seu credo como “No Trumpismo Confiamos”.

Não tanto no próprio Trump, mas em sua linha de oposição aos globalistas, tornou-se o núcleo de trumpismo. Em seu papel como presidente, Trump nem sempre esteve no auge de sua própria tarefa articulada. E ele não foi capaz de fazer nada ao menos próximo de “drenar o pântano” e derrotar o globalismo. Mas, apesar disso, ele se tornou um centro de atração para todos aqueles que estavam cientes ou simplesmente sentiam o perigo que emanava das elites globalistas e dos representantes das Big Finance e Big Tech inseparáveis deles.

Assim, o núcleo de Trumpism começou a tomar forma.

O intelectual conservador americano Steve Bannon desempenhou um papel importante neste processo, mobilizando amplos segmentos de jovens e movimentos conservadores díspares em apoio a Trump. O próprio Bannon foi inspirado por sérios autores antimodernistas, como Julius Evola, e sua oposição ao globalismo e ao liberalismo, portanto, tinha raízes mais profundas.

Um papel importante no trumpismo foi desempenhado pelos paleoconservadores consistentes – isolacionistas e nacionalistas – como Buchanan, Ron Paul, bem como adeptos da filosofia antiliberal e antimodernista (portanto, fundamentalmente antiglobalista), como Richard Weaver e Russell Kirk, que tinham sido marginalizados pelos neocons (os globalistas da direita) desde a década de 1980.

A força de impulsão da mobilização em massa dos “trumpistas” veio a ser a organização em rede QAnon, que vestiu suas críticas ao liberalismo, aos democratas e aos globalistas sob a forma de teorias da conspiração. Eles espalharam uma torrente de acusações e denúncias dos globalistas, como estando envolvidos em escândalos sexuais, pedofilia, corrupção e satanismo.

As verdadeiras intuições sobre a natureza sinistra da ideologia liberal – tornada evidente nas últimas fases de sua difusão triunfante sobre a humanidade – foram formuladas por apoiadores do QAnon no nível americano médio e da consciência das massas, que dificilmente estariam inclinados a uma análise filosófica e ideológica profunda. Paralelamente, o QAnon expandiu a sua influência, mas ao mesmo tempo deu à crítica antiliberal traços grotescos.

Foram os partidários de Qanon, como a vanguarda do populismo da conspiração em massa, que lideraram os protestos em 6 de janeiro, quando os partidários de Trump invadiram o Capitólio indignados com a eleição roubada. Eles não alcançaram nenhum objetivo, mas apenas deram a Biden e aos Democratas uma desculpa para demonizar ainda mais o “trumpismo” e todos os oponentes do globalismo, equiparando qualquer conservador com “extremismo.” Seguiu-se uma onda de prisões, e os mais consistentes “Novos Democratas” sugeriram que todos os direitos sociais – incluindo a capacidade de comprar bilhetes de avião – deveriam ser retirados dos apoiantes de Trump.

Uma vez que as redes sociais são regularmente monitoradas por apoiadores da elite liberal, o recolhimento de informações sobre quase todos os cidadãos dos EUA e as suas preferências políticas não constituiu qualquer problema. Assim, a chegada de Biden à Casa Branca significa que o liberalismo assumiu características francamente totalitárias.

A partir de agora, o trumpismo, o populismo, a defesa dos valores familiares, e qualquer indício de conservadorismo ou desacordo com os princípios do liberalismo globalista nos EUA será quase equivalente a um crime – ao discurso de ódio e ao “fascismo.”

Ainda assim, o trumpismo não desapareceu com a vitória de Biden. De uma forma ou de outra, ainda tem aqueles que votaram em Donald Trump na última eleição – e isso é mais de 70 milhões de eleitores.

Portanto, é claro que o “trumpismo” não vai desaparecer com Trump. Na verdade, metade da população dos EUA encontrou-se numa posição de oposição radical, e os trumpistas mais consistentes representam o núcleo da resistência antiglobalização dentro da própria cidadela do globalismo.

Algo semelhante está aconteendo nos países europeus, onde os movimentos e partidos populistas estão cada vez mais conscientes de que são dissidentes privados de todos os direitos e sujeitos a perseguição ideológica sob a aparente ditadura globalista.

Não importa o quanto os globalistas que retomaram o poder nos EUA queiram apresentar os quatro anos anteriores como um “infeliz mal-entendido” e declarar sua vitória como o “retorno à normalidade” final, o quadro objetivo está longe dos feitiços calmantes da classe alta globalista. Não só os países com uma identidade civilizacional diferente estão se mobilizando contra ela e contra sua ideologia, mas desta vez também metade de sua própria população, gradualmente começando a perceber a gravidade de sua situação e começando a procurar uma alternativa ideológica.

Estas são as condições sob as quais Biden veio para guiar os Estados Unidos. O próprio solo americano está queimando sob os pés dos globalistas. E isso dá à situação da “batalha final” uma dimensão especial, adicional. Este não é o Ocidente contra o Oriente, nem os EUA e a OTAN contra todos os outros, mas liberais contra a humanidade – incluindo aquele segmento da humanidade que se encontra no território do próprio Ocidente, mas que está se afastando cada vez mais de suas próprias elites globalistas. Isto é o que define as condições iniciais desta batalha.

Individuum e Dividuum

Um outro ponto essencial tem de ficar claro. Vimos que toda a história do liberalismo é a libertação sucessiva do indivíduo em relação a todas as formas de identidade coletiva. O acordo final no processo desta implementação logicamente perfeita do nominalismo será a transição para o pós-humanismo e a provável substituição da humanidade por uma outra civilização maquinária e pós-humana. É a isso que o individualismo consistente, tomado como algo absoluto, leva.

Mas aqui a filosofia liberal chega a um paradoxo fundamental. A libertação do indivíduo de sua identidade humana, para a qual a política de gênero os prepara, transformando consciente e propositadamente o ser humano em um monstro pervertido, não pode garantir que este novo ser (progressista!) continuará a ser um indivíduo.

Além disso, o desenvolvimento de tecnologias de computação em rede, de engenharia genética e a da própria ontologia orientada a objetos, que representa a culminação do pós-modernismo, claramente apontam para o fato de que o “novo ser” não será tanto um “animal” quanto uma “máquina”. É com isso em mente que os horizontes da “imortalidade” são susceptíveis de serem oferecidos na forma de preservação artificial de memórias pessoais (que são muito fáceis de simular).

Assim, o indivíduo do futuro, como o cumprimento de todo o programa do liberalismo, não será capaz de garantir precisamente o que tem sido o objetivo principal do progresso liberal – isto é, a sua individualidade. O ser liberal do futuro, mesmo em teoria, não é um individuo, algo “indivisível”, mas sim um “dividuum”, i.e. algo divisível e composto de partes substituíveis. Tal é a máquina – ela é composta de uma combinação de partes.

Na física teórica, há muito tem havido uma transição da teoria dos “átomos” (ou seja, das “unidades indivisíveis de matéria”) para a teoria das partículas, que são pensadas não como “partes de um todo”, mas como “partes sem um todo”. O indivíduo enquanto totalidade também se de compõe em partes componentes, que podem ser rearranjadas, mas que também podem não ser rearranjadas, mas usadas como um bioconstrutor. Daí as figuras de mutantes, quimeras e monstros que abundam na ficção moderna, povoando as versões mais imaginativas (e portanto, em certo sentido, antecipadas e mesmo planejadas) do futuro.

Os pós-modernistas e os realistas especulativos já prepararam o terreno para isso, propondo substituir o corpo humano como algo total com a idéia de um “parlamento de órgãos” (B. Latour). Dessa forma, o indivíduo – mesmo enquanto unidade biológica – se tornaria outra coisa, mutando precisamente no momento em que alcança sua corporificação absoluta.

O progresso humano na interpretação liberal inevitavelmente termina com a abolição da humanidade.

É isso que todos os que se empenham na luta contra o globalismo e o liberalismo suspeitam, ainda que de forma muito vaga. Embora o Qanon e suas teorias da conspiração antiliberais só distorçam a realidade emprestando traços suspeitos e grotescos que os liberais podem facilmente refutar, a realidade, quando descrita de maneira sóbria e objetiva, é muito mais assustadora do que suas premonições mais alarmantes e monstruosas.

“O Grande Reset” é de fato um plano para a eliminação da humanidade. Pois esta é precisamente a conclusão a que a linha do “progresso” liberalmente compreendido conduz logicamente: esforçar-se para libertar o indivíduo de todas as formas de identidade coletiva não pode deixar de resultar na libertação do indivíduo de si mesmo.

Parte 4. O Grande Despertar

O Grande Despertar: Um Grito na Noite

Estamos nos aproximando de uma tese que representa o oposto direto do “Grande Reset”: a tese do “Grande Despertar.”

Este slogan foi proposto pela primeira vez por antiglobalistas americanos, como o anfitrião do canal de TV alternativo Infowars, Alex Jones, que foi submetido à censura globalista e à desplataforma de redes sociais na primeira fase da presidência Trump, e por ativistas Qanon. É importante que isto esteja acontecendo nos EUA, onde a amargura grassa entre as elites globalistas e os populistas que tiveram o seu próprio presidente, embora apenas durante quatro anos e atrapalhado por obstáculos administrativos e pelas limitações dos seus próprios horizontes ideológicos.

Livres de uma bagagem ideológica e filosófica séria, os antiglobalistas têm sido capazes de compreender a essência dos processos mais importantes que se desenrolam no mundo moderno. O globalismo, o liberalismo e o Grande Reset, como expressões da determinação das elites liberais para ver seus planos até o fim, por qualquer meio – incluindo ditadura absoluta, repressão em grande escala e campanhas de desinformação total – têm encontrado resistência crescente e cada vez mais consciente.

Alex Jones termina seus programas com o mesmo grito de guerra – “Você é a Resistência!”. Neste caso, o próprio Alex Jones ou os ativistas de Qanon não têm visões de mundo estritamente definidas. Neste sentido, eles são representantes das massas, os próprios “deploráveis” que foram tão dolorosamente humilhados por Hillary Clinton. O que está despertando agora não é um campo de opositores ideológicos do liberalismo, os inimigos do capitalismo, ou oponentes ideológicos da democracia. Eles não são mesmo conservadores. Eles são apenas pessoas – pessoas enquanto tais, as mais comuns e simples. Mas… pessoas que querem ser e permanecer humanas, ter e manter sua liberdade, gênero, cultura e vida, seus laços concretos com sua Pátria, com o mundo ao seu redor, com as pessoas.

O Grande Despertar não é sobre elites e intelectuais, mas sobre as pessoas, sobre as massas, sobre as pessoas reais.

E o Despertar em questão não é sobre análise ideológica. É uma reação espontânea das massas, pouco competentes em filosofia, que de repente perceberam, como gado diante do matadouro, que seu destino já foi decidido por seus governantes e que não há mais espaço para as pessoas no futuro.

O Grande Despertar é espontâneo, em grande parte inconsciente, intuitivo e cego. Ele não é, de modo algum, um escape para a consciência, para a conclusão, para a análise histórica profunda. Como vimos nas imagens do Capitólio, os ativistas do trumpismo e os participantes do Qanon parecem personagens de histórias em quadrinhos ou super-heróis da Marvel. O conspiracionismo é uma doença infantil da antiglobalização. Mas, por outro lado, esse é o início de um processo histórico fundamental. É assim que o polo de oposição ao próprio curso da história no seu sentido liberal está a emergir.

É por isso que a tese do Grande Despertar não deve ser apressadamente carregada de detalhes ideológicos, seja do conservadorismo fundamental (incluindo o conservadorismo religioso), do tradicionalismo, da crítica marxista do capital, ou do protesto pelo protesto de teor anarquista. O Grande Despertar é algo mais orgânico, mais espontâneo e ao mesmo tempo tectônico. É assim que a humanidade está de repente sendo iluminada pela consciência da proximidade do seu fim iminente.

E é por isso que o Grande Despertar é tão sério. E é por isso que ele está vindo de dentro dos Estados Unidos, aquela civilização onde o crepúsculo do liberalismo é mais espesso. É um grito do centro do próprio inferno, daquela zona onde o futuro negro já chegou parcialmente.

O Grande Despertar é a resposta espontânea das massas humanas ao Grande Reset. É claro que se pode ser cético. As elites liberais, especialmente hoje, controlam todos os principais processos civilizacionais. Eles controlam as finanças mundiais e podem fazer qualquer coisa com elas, desde a emissão ilimitada a qualquer manipulação de instrumentos e estruturas financeiras. Nas suas mãos está toda a máquina militar dos EUA e a gestão dos aliados da OTAN. Biden promete reforçar a influência de Washington nesta estrutura, que quase se desintegrou nos últimos anos.

Quase todos os gigantes da Alta Tecnologia estão subordinados aos liberais – computadores, iPhones, servidores, telefones e redes sociais são estritamente controlados por alguns monopolistas que são membros do clube globalista. Isto significa que o Big Data, isto é, todo o corpo de informação sobre praticamente toda a população da Terra, tem um dono e mestre.

Tecnologia, centros de ciência, educação global, cultura, mídia, medicina e serviços sociais estão completamente em suas mãos.

Os liberais nos governos e círculos de poder são os componentes orgânicos dessas redes planetárias que têm a mesma sede.

Os serviços de inteligência dos países ocidentais e seus agentes em outros regimes trabalham para os globalistas, sejam recrutados ou subornados, forçados a cooperar ou como voluntários.

Aqui nos perguntamos: como é que nesta situação podem os apoiantes do “Grande Despertar” se revoltar contra o globalismo? Como – sem ter quaisquer recursos – eles podem efetivamente enfrentar a elite global? Quais armas usar? Qual estratégia a seguir? E, além disso, em que ideologia confiar? – porque os liberais e os globalistas de todo o mundo estão unidos e têm uma ideia comum, um objetivo comum e uma linha comum, enquanto os seus adversários são díspares não só em diferentes sociedades, mas também dentro de uma mesma sociedade.

É claro que essas contradições nas fileiras da oposição são ainda mais exacerbadas pelas elites governantes, que estão acostumados a dividir para dominar. Os muçulmanos são colocados contra os cristãos, os esquerdistas contra os direitistas, os europeus contra os russos ou chineses, etc.

Mas o Grande Despertar está acontecendo não por causa, mas apesar de tudo isso. A própria humanidade, o homem como Eidos, o homem comum, o homem como identidade coletiva, e em todas as suas formas ao mesmo tempo, orgânica e artificial, histórica e inovadora, oriental e ocidental, está se rebelando contra os liberais.

O Grande Despertar é apenas o começo. Ele ainda não começou. Mas o fato de que ele tem um nome, e que este nome apareceu no epicentro das transformações ideológicas e históricas, nos Estados Unidos, contra o pano de fundo da derrota dramática de Trump, da tomada desesperada do Capitólio, e da crescente onda de repressão liberal, na medida em que os globalistas não escondem mais a natureza totalitária de sua teoria e sua prática, é de grande (talvez crucial) importância.

O Grande Despertar contra o “Grande Reset” é a revolta da humanidade contra as elites liberais dominantes. Além disso, é a rebelião do Homem contra o seu velho inimigo, o inimigo da própria raça humana.

Se há aqueles que proclamam o “Grande Despertar”, tão ingênuos como suas fórmulas possam parecer, isso já significa que nem tudo está perdido, que um núcleo de Resistência está amadurecendo nas massas, que eles estão começando a se mobilizar. A partir deste momento começa a história de uma revolta mundial, uma revolta contra o Grande Despertar e seus adeptos.

O Grande Despertar é um flash de consciência no limiar da Singularidade. É a última oportunidade para tomar uma decisão alternativa sobre o conteúdo e o rumo do futuro. A completa substituição dos seres humanos por novas entidades, novas divindades, não pode simplesmente ser imposta pela força do alto. As elites devem seduzir a humanidade, obter dela – ainda que vagamente – algum consentimento. O Grande Despertar convoca a um “Não” decisivo!

Este ainda não é o fim da guerra, nem mesmo a guerra em si. Além disso, ela ainda não começou. Mas é a possibilidade de tal começo. Um novo começo na história do homem.

Claro, o Grande Despertar está completamente despreparado.

Como vimos, nos próprios EUA, os adversários do liberalismo, tanto Trump como os trumpistas estão prontos para rejeitar a última fase da democracia liberal, mas eles nem sequer pensam em uma crítica de plena do capitalismo. Eles defendem o ontem e o hoje contra um amanhã ameaçador. Mas eles não têm um horizonte ideológico completo. Eles estão tentando salvar a fase anterior da mesma democracia liberal, o mesmo capitalismo, de suas fases tardias e mais avançadas. E isso em si contém uma contradição.

A esquerda contemporânea também tem limites em sua crítica do capitalismo, tanto porque compartilha uma compreensão materialista da história (Marx concordava com a necessidade do capitalismo mundial, que ele esperava que seria então superado pelo proletariado mundial) e porque os movimentos socialistas e comunistas foram recentemente tomados por liberais e reorientados de travar uma guerra de classes contra o capitalismo para proteger os migrantes, minorias sexuais e combater “fascistas” imaginários.

A direita, por outro lado, está confinada aos seus Estados-nações e culturas, não vendo que os povos de outras civilizações estão na mesma situação desesperada. As nações burguesas que surgiram no alvorecer da era moderna representam um vestígio da civilização burguesa. Esta civilização hoje está destruindo e abolindo o que ela mesma criou ainda ontem, enquanto isso usando todas as limitações da identidade nacional para manter a humanidade em um estado fragmentado e conflituoso, impedindo-a de enfrentar os globalistas.

Portanto, existe o Grande Despertar, mas ele ainda não tem uma base ideológica. Se ele é verdadeiramente histórico, e não um fenômeno efêmero e puramente periférico, então ele simplesmente precisa de uma fundação – que vá além das ideologias políticas existentes que surgiram nos tempos modernos no próprio Ocidente. Virar-se para qualquer uma delas significaria automaticamente que nos encontramos no cativeiro ideológico da formação do capital.

Assim, na busca de uma plataforma para o Grande Despertar que irrompeu nos Estados Unidos, devemos olhar além da sociedade americana e da história americana bastante curta e olhar para outras civilizações, acima de tudo para as ideologias não-liberais da própria Europa, por inspiração. Mas mesmo isso não é suficiente, porque juntamente com a desconstrução do liberalismo, devemos encontrar apoio nas diferentes civilizações da humanidade, longe de esgotadas pelo Ocidente, de onde a principal ameaça vem e onde – em Davos, na Suíça! – o “Grande Reset” foi proclamado.

A Internacional das Nações vs. a Internacional das Elites

“O Grande Reset” quer tornar o mundo unipolar novamente, a fim de avançar para uma apolaridade globalista, onde as elites se tornarão totalmente internacionais e sua residência será dispersa por todo o espaço do planeta. É por isso que o globalismo põe o fim aos EUA enquanto país, Estado, sociedade. Isto é o que os trumpistas e os apoiadores do Grande Despertar sentem, às vezes intuitivamente. Biden é uma sentença passada sobre os Estados Unidos. E dos EUA para todos os outros.

Assim, para a salvação das pessoas, povos e sociedades, o Grande Despertar deve começar com a multipolaridade. Esta não é apenas a salvação do próprio Ocidente, e nem mesmo a salvação de todos os outros do Ocidente, mas a salvação da humanidade, tanto ocidental quanto não-ocidental, da ditadura totalitária das elites capitalistas liberais. E isso não pode ser feito apenas pelo povo do Ocidente ou pelo povo do Oriente. Aqui é necessário agir em conjunto. O Grande Despertar exige uma internacionalização da luta dos povos contra a internacionalização das elites.

A multipolaridade torna-se o ponto de referência mais importante e a chave para a estratégia do Grande Despertar. Somente apelando a todas as nações, culturas e civilizações da humanidade somos capazes de reunir forças suficientes para efetivamente nos opor ao “Grande Reset” e à orientação para a Singularidade.

Mas, neste caso, toda a imagem do confronto final inevitável acaba por ser muito menos desesperadora. Se dermos uma olhada em tudo o que poderia se tornar os pólos do Grande Despertar, a situação se apresenta de uma forma um pouco diferente. A Internacional dos Povos, uma vez que começamos a pensar nestas categorias, acaba por não ser nem uma utopia nem uma abstração. Além disso, podemos facilmente já ver enorme potencial e como tal pode ser aproveitado na luta contra o “Grande Reset”.

Vamos listar brevemente as reservas com que o Grande Despertar pode contar em uma escala global.

A Guerra Civil Americana: A Escolha do Nosso Campo

Nos EUA, temos um ponto de apoio no trumpismo. Embora o próprio Trump tenha perdido, isso não significa que ele mesmo lavou as mãos, renunciou a uma vitória roubada, e que seus partidários – 70 milhões de americanos – se acalmaram e tomaram a ditadura liberal como um dado. Eles não o fizeram. A partir de agora, há um poderoso subterrâneo antiglobalista nos próprios EUA, grande em número (metade da população!), amargurado, e levado a desprezar o totalitarismo liberal. A distopia do 1984 de Orwell não foi incorporada em um regime comunista ou fascista, está agora em um regime liberal. Mas a experiência do comunismo soviético e até mesmo da Alemanha nazista mostram que a resistência é sempre possível.

Hoje, os EUA estão essencialmente em estado de guerra civil. Os liberal-bolcheviques tomaram o poder, e os seus opositores foram lançados na oposição e estão prestes a serem ilegalizados. Uma oposição de 70 milhões de pessoas é algo sério. Claro, eles estão espalhados e podem estar em desordem pelos ataques punitivos dos Democratas e da nova tecnologia totalitária da Big Tech.

Mas é muito cedo para descartar o povo americano. Claramente, eles ainda têm alguma margem de força, e metade da população dos EUA está pronta para defender sua liberdade individual a qualquer custo. E hoje a questão é exatamente esta: Biden ou liberdade. É claro que os liberais tentarão abolir a Segunda Emenda e desarmar a população, que está se tornando cada vez menos leal à elite globalista. É provável que os democratas tentem matar o próprio sistema bipartidário introduzindo um regime essencialmente de partido único, no espírito do estado atual de sua ideologia. Isto é Bolchevismo Liberal.

Mas as guerras civis nunca possuem conclusões garantidas. A história está aberta, e a vitória para ambos os lados é sempre possível. Especialmente se a humanidade percebe o quão importante é a oposição americana para a vitória universal sobre o globalismo. Não importa o que sentimos sobre os EUA, sobre Trump e os trumpistas, todos nós simplesmente devemos apoiar o polo americano do Grande Despertar. Salvar a América dos globalistas, e assim ajudar a torná-la grande novamente, é a nossa tarefa comum.

Populismo Europeu: Superando a Direita e a Esquerda

A onda de populismo antiliberal também não está cedendo na Europa. Embora o globalista Macron tenha conseguido conter os protestos violentos dos “Coletes Amarelos” e os liberais italianos e alemães tenham isolado e bloqueado os partidos de direita e seus líderes de chegarem ao poder, esses processos são imparáveis. O populismo exprime o mesmo Grande Despertar, mas apenas em solo europeu e com especificidade europeia.

Para este polo de resistência, uma nova reflexão ideológica é extremamente importante. As sociedades europeias são muito mais ativas do ponto de vista ideológico do que a americana e, por conseguinte, as tradições políticas de direita e de esquerda – e as suas contradições inerentes – são muito mais sentidas.

É precisamente destas contradições que as elites liberais se aproveitam para manter a sua posição na União Europeia.

O fato é que o ódio aos liberais na Europa está crescendo simultaneamente de dois lados: a esquerda os vê como representantes do grande capital, exploradores que perderam toda a decência, e a direita os vê como provocadores da migração em massa artificial, destruidores dos últimos vestígios de valores tradicionais, destruidores da cultura europeia e coveiros da classe média. Ao mesmo tempo, na maior parte dos casos, tanto os populistas de direita como os de esquerda puseram de lado ideologias tradicionais que já não satisfazem as necessidades históricas e expressam as suas opiniões sob novas formas, por vezes contraditórias e fragmentadas.

A rejeição das ideologias do comunismo ortodoxo e do fascismo é geralmente positiva; dá aos populistas uma nova base, muito mais ampla. Mas também é a sua fraqueza.

No entanto, a coisa mais fatal sobre o populismo europeu não é tanto a sua ideologização como a persistência da rejeição profunda e mútua entre esquerda e direita que persiste desde as eras históricas anteriores.

A emergência de um polo europeu do Grande Despertar deve envolver a resolução destas duas tarefas ideológicas: a superação final da fronteira entre a esquerda e a direita (isto é, a rejeição obrigatória do “antifascismo” artificial por alguns e do “anticomunismo” artificial por outros) e a elevação do populismo como tal – populismo integral – a um modelo ideológico independente. O seu significado e a sua mensagem devem ser uma crítica radical ao liberalismo e à sua fase mais elevada, o globalismo, combinando ao mesmo tempo a exigência de justiça social e a preservação da identidade cultural tradicional.

Neste caso, o populismo europeu irá, em primeiro lugar e acima de tudo, adquirir uma massa crítica que está fatalmente faltando enquanto populistas de direita e de esquerda perdem tempo e esforço em acertar contas uns com os outros, e, em segundo lugar, ele vai se tornar um polo muito importante do Grande Despertar.

A China e sua Identidade Coletiva

Os oponentes da Grande Restauração têm outro argumento significativo: a China contemporânea. Sim, a China aproveitou as oportunidades oferecidas pela globalização para fortalecer a economia de sua sociedade. Mas a China não aceitou o próprio espírito do globalismo, o liberalismo, o individualismo e o nominalismo da ideologia globalista. A China retirou do Ocidente apenas o que a tornava mais forte, mas rejeitou o que a tornaria mais fraca. Este é um jogo perigoso, mas até agora a China tem lidado com sucesso com isso.

Na verdade, a China é uma sociedade tradicional com milhares de anos de história e uma identidade estável. E claramente pretende continuar a sê-lo no futuro. Isto é particularmente claro nas políticas do atual líder da China, Xi Jinping. Ele está pronto para fazer compromissos táticos com o Ocidente, mas ele é rigoroso em garantir que a soberania e a independência da China só cresçam e se fortaleçam.

Que os globalistas e Biden agiriam em solidariedade com a China é um mito. Sim, Trump contava com isso e Bannon disse isso, mas isso é o resultado de um horizonte geopolítico estreito e um profundo mal-entendido da essência da civilização chinesa. A China seguirá a sua própria linha e fortalecerá estruturas multipolares. De fato, a China é o pólo mais importante do Grande Despertar, um ponto que se tornará claro se tomarmos como ponto de partida a necessidade de uma internacionalização dos povos. A China é um povo com uma identidade coletiva distinta. O individualismo chinês não existe, e se existe, é uma anomalia cultural. A civilização chinesa é o triunfo do clã, do povo, da ordem e da estrutura sobre toda individualidade.

Claro, o Grande Despertar não deve se tornar chinês. Não deve ser uniforme em tudo – para cada nação, cada cultura, cada civilização tem seu próprio espírito e seu próprio Eidos. A humanidade é diversa. E a sua unidade só pode ser sentida mais intensamente quando é confrontada com uma séria ameaça que paira sobre todos eles. E isto é precisamente o que o Grande Reset é.

O Islã Contra a Globalização

Outro argumento do Grande Despertar reside nos povos da civilização islâmica. Que o globalismo liberal e a hegemonia ocidental são radicalmente rejeitados pela cultura islâmica e a própria religião islâmica em que essa cultura se baseia é óbvia. Claro, durante o período colonial e sob o poder e influência econômica do Ocidente, alguns Estados islâmicos se encontraram na órbita do capitalismo, mas em praticamente todos os países islâmicos há uma rejeição sustentada e profunda do liberalismo e, especialmente, do liberalismo globalista moderno.

Isso se manifesta tanto em formas extremas – fundamentalismo islâmico – quanto em formas moderadas. Em alguns casos, os movimentos religiosos ou políticos individuais tornam-se portadores da iniciativa antiliberal, enquanto em outros casos o próprio Estado assume esta missão. Em qualquer caso, as sociedades islâmicas estão ideologicamente preparadas para a oposição sistêmica e ativa à globalização liberal. Os projetos do Grande Reset não contêm nada, mesmo teoricamente, que possa atrair os muçulmanos. É por isso que todo o mundo islâmico como um todo representa um enorme polo do Grande Despertar.

Entre os países islâmicos, o Irã xiita e a Turquia sunita são os que mais se opõem à estratégia globalista.

Além disso, se a principal motivação do Irã é a ideia religiosa do fim do mundo que se aproxima e da última batalha, em que o principal inimigo – Dajjal – é claramente reconhecido como o Ocidente, o liberalismo e o globalismo, então a Turquia é conduzida mais por considerações pragmáticas, pelo desejo de reforçar e preservar a sua soberania nacional e assegurar a influência turca no Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental.

A política de Erdogan de se afastar gradualmente da OTAN se combina a tradição nacional de Kemal Ataturk com o desejo de desempenhar o papel de líder dos muçulmanos sunitas, mas ambos são alcançáveis apenas em oposição à globalização liberal, que prevê a completa secularização das sociedades. o enfraquecimento (e, no limite, a abolição) dos Estados-nações, concedendo, no ínterim, autonomia política aos grupos étnicos minoritários, uma medida que seria devastadora para a Turquia devido ao grande e bastante ativo fator curdo.

O Paquistão sunita, que representa outra forma de combinar política nacional e islâmica, está gradualmente se afastando cada vez mais dos Estados Unidos e do Ocidente.

Embora os países do Golfo sejam mais dependentes do Ocidente, um olhar mais atento sobre o Islã árabe e, mais ainda, o Egito, que é outro Estado importante e independente no mundo islâmico, revela sistemas sociais que não têm nada a ver com a agenda globalista e são naturalmente predispostos a se alinhar com o Grande Despertar.

Isso é dificultado apenas pelas contradições entre os próprios muçulmanos, habilmente agravadas pelo Ocidente e por centros de controle globalistas, não só entre xiitas e sunitas, mas também conflitos regionais entre os próprios Estados sunitas individuais.

O contexto do Grande Despertar poderia se tornar uma plataforma ideológica para a unificação do mundo islâmico como um todo, já que a oposição ao “Grande Reset” é um imperativo incondicional para quase todos os países islâmicos. É isto que torna possível tomar como denominador comum a estratégia e a oposição dos globalistas. A consciência da escala do Grande Despertar permitiria, dentro de certos limites, anular a acuidade das contradições locais, de modo a contribuir para a formação de outro polo de resistência global.

A Missão da Rússia: Estar na Vanguarda do Grande Despertar

Finalmente, o polo mais importante do Grande Despertar está reservado à Rússia. Apesar do fato de que a Rússia esteve parcialmente envolvida na civilização ocidental, através da cultura iluminista durante o período czarista, sob os bolcheviques, e especialmente depois de 1991, em todas as fases – na antiguidade, bem como no presente – a identidade profunda da sociedade russa é profundamente desconfiada do Ocidente, especialmente do liberalismo e da globalização. O nominalismo é profundamente estranho para o povo russo em suas próprias fundações.

A identidade russa sempre priorizou o comum – o clã, o povo, a igreja, a tradição, a nação e o poder, e até mesmo o comunismo representava – ainda que artificialmente, em termos de classe – uma identidade coletiva oposta ao individualismo burguês. Os russos teimosamente rejeitaram e continuam a rejeitar o nominalismo em todas as suas formas. E esta é uma plataforma comum aos períodos monárquico e soviético.

Após a fracassada tentativa de integração na comunidade global na década de 1990, graças ao fracasso das reformas liberais, a sociedade russa tornou-se ainda mais convencida da extensão em que o globalismo e as atitudes e princípios individualistas são estranhos aos russos. É isso que determina o apoio geral ao curso conservador e soberano de Putin. Os russos rejeitam o “Grande Reset” tanto a partir da direita quanto da esquerda – e isso, junto com as tradições históricas, a identidade coletiva e a percepção da soberania e da liberdade do Estado como o valor mais alto, não é um momento, mas em longo prazo, característica fundamental da civilização russa.

A rejeição do liberalismo e da globalização tornou-se particularmente aguda nos últimos anos, na medida em que o próprio liberalismo revelou suas características profundamente repugnantes para a consciência russa. Isso justificou uma certa simpatia entre os russos por Trump e um profundo desgosto paralelo por seus adversários liberais.

Do lado de Biden, a atitude em relação à Rússia é bastante simétrica. Ele e as elites globalistas em geral vêem a Rússia como o principal oponente civilizacional, por se recusarem teimosamente a aceitar o vetor do progressismo liberal e por defenderem ferozmente sua soberania política e sua identidade.

É claro que mesmo a Rússia de hoje não tem uma ideologia completa e coerente que possa representar um sério desafio ao Grande Reset. Além disso, as elites liberais entrincheiradas no topo da sociedade ainda são fortes e influentes na Rússia, e as ideias, teorias e métodos liberais ainda dominam a economia, a educação, a cultura e a ciência. Tudo isso enfraquece o potencial da Rússia, desorienta a sociedade e prepara o terreno para crescentes contradições internas. Mas, no geral, a Rússia é o mais importante – se não o principal! – polo do Grande Despertar.

E neste futuro, que se aproxima, o papel da Rússia não é apenas participar ativamente do Grande Despertar, mas também estar na vanguarda dele, proclamando o imperativo da Internacional dos Povos na luta contra o liberalismo, a praga do século XXI.

É exatamente para isso que toda a história russa tem guiado, expressando uma convicção interior de que os russos estão se deparando com algo grande e decisivo na situação dramática do Fim dos Tempos, o Fim da História. Mas é precisamente este fim, em sua pior versão, que o projeto do Grande Reset implica. A vitória do globalismo, do nominalismo e a vinda da Singularidade significaria o fracasso da missão histórica russa, não apenas no futuro como também no passado. Afinal, o significado da história russa estava dirigido precisamente para o futuro, e o passado havia sido apenas uma preparação para isso.

O Despertar da Rússia: Um Renascimento Imperial

O que significa para a Rússia em tais circunstâncias “despertar”? Significa restaurar totalmente a escala histórica, geopolítica e civilizacional da Rússia, tornando-se um polo do novo mundo multipolar.

A Rússia nunca foi “apenas um país”, muito menos “apenas um entre outros países europeus.” Apesar da unidade das nossas raízes com a Europa, que remonta à cultura greco-romana, a Rússia, em todas as fases da sua história, seguiu o seu próprio caminho. Isso também teve um impacto em nossa firme e inabalável escolha pela Ortodoxia e pelo Bizantinismo em geral, o que determinou em grande parte nosso afastamento da Europa Ocidental, que escolheu o catolicismo e depois o protestantismo. Na era moderna, esse mesmo fator de profunda desconfiança do Ocidente se refletiu no fato de que não fomos tão afetados pelo próprio espírito do modernismo no nominalismo, no individualismo e no liberalismo. E mesmo quando tomávamos emprestado algumas doutrinas e ideologias do Ocidente, elas eram muitas vezes críticas, i.e. elas continham em si mesmas a rejeição do principal – liberal-capitalista – modo de desenvolvimento da civilização da Europa Ocidental, que estava tão perto de nós.

A identidade da Rússia também foi grandemente influenciada pelo vetor oriental – turaniano – . Como os filósofos eurasianistas, incluindo o grande historiador russo Lev Gumilev, mostraram, o Estado mongol de Genghis Khan foi uma lição importante para a Rússia na organização centralizada do tipo imperial, que em grande parte predeterminou nossa ascensão como uma grande potência desde o século XV, quando a Horda Dourada entrou em colapso e a Rússia moscovita tomou seu lugar no espaço do nordeste da Eurásia. Esta continuidade com a geopolítica da Horda levou naturalmente à poderosa expansão das eras subsequentes. A Rússia sempre defendeu e afirmou não só os seus interesses, mas também os seus valores.

Assim, a Rússia acabou por ser o herdeiro de dois impérios que entraram em colapso aproximadamente ao mesmo tempo, no século XV: os impérios bizantino e mongol. O Império tornou-se o nosso destino. Mesmo no século XX, com todo o radicalismo das reformas bolcheviques, a Rússia permaneceu um império contra todas as probabilidades, desta vez sob o pretexto do império soviético.

Isso significa que nosso avivamento é inconcebível sem retornarmos à missão imperial estabelecida em nosso destino histórico.

Esta missão é diametralmente oposta ao projeto globalista do “Grande Reset”. E seria natural esperar que, na sua corrida decisiva, os globalistas façam tudo o que estiver ao seu alcance para impedir um Renascimento Imperial na Rússia. Assim, precisamos exatamente disso: um Renascimento Imperial. Não para impor a nossa verdade russa e ortodoxa sobre os outros povos, culturas e civilizações, mas para reviver, fortalecer e defender a nossa identidade e para ajudar os outros em seu próprio renascimento, para fortalecer e defender a sua própria, tanto quanto podemos. A Rússia não é o único alvo do “Grande Reset”, embora, em muitos aspectos, nosso país seja o principal obstáculo para a execução de seus planos. Mas esta é a nossa missão – ser o “Katechon”, “aquele que retém”, impedindo a chegada do último mal no mundo.

No entanto, aos olhos dos globalistas, outras civilizações, culturas e sociedades tradicionais também estão sujeitas ao desmantelamento, reformatação e transformação em uma massa cosmopolita global indiferenciada, e no futuro próximo a ser substituída por novas formas pós-humanas de vida, organismos, mecanismos ou seus híbridos. Portanto, o despertar imperial da Rússia é chamado a ser um sinal para uma revolta universal de povos e culturas contra as elites liberais globalistas. Através do renascimento como um Império, como um Império Ortodoxo, a Rússia será um exemplo para outros Impérios – o chinês, turco, persa, árabe, indiano, bem como o latino-americano, africano… e o europeu. Em vez do domínio de um único “Império” globalista do Grande Reset, o despertar russo deve ser o início de uma era de muitos Impérios, refletindo e incorporando a riqueza das culturas humanas, tradições, religiões e sistemas de valores.

Rumo à Vitória do Grande Despertar

Se somarmos o trumpismo americano, o populismo europeu (de direita e de esquerda), a China, o mundo islâmico e a Rússia, e prever que em algum momento a grande civilização indiana, a América Latina e a África, que está entrando em outra rodada de descolonização, e todos os povos e culturas da humanidade em geral podem também juntar-se a este campo, não temos meros marginais dispersos e confusos tentando opor-se às poderosas elites liberais que levam a humanidade para o massacre final, mas uma frente ampla, incluindo atores de várias escalas, de grandes potências com economias planetárias e armas nucleares para influentes e numerosas forças e movimentos políticos, religiosos e sociais.

O poder dos globalistas, afinal, é baseado em insinuações e “milagres negros”. Eles não governam com base no poder real, mas em ilusões, simulacros e imagens artificiais, que eles maniacamente tentam incutir nas mentes da humanidade.

Afinal, o Grande Reset foi proclamado por um punhado de velhos globalistas degenerados e ofegantes à beira da demência (como o próprio Biden, o vilão enrugado Soros, ou o burguês gordo Schwab) e uma ralé marginal e pervertida selecionada para ilustrar rapidamente as oportunidades de carreira para todos os deploráveis. Claro, eles têm as bolsas de valores e as gráficas da imprensa, os bandidos de Wall Street e os inventores viciados do Vale do Silício trabalhando para eles. Agentes de inteligência disciplinados e generais obedientes do exército estão subordinados a eles. Mas isso é insignificante em comparação com toda a humanidade, com o povo do trabalho e do pensamento, com a profundidade das instituições religiosas e a riqueza fundamental das culturas.

O Grande Despertar significa que descobrimos a essência dessa estratégia fatal, assassina e suicida de “progresso” como as elites liberais globalistas a entendem. E se o compreendermos, então seremos capazes de o explicar aos outros. O deserto pode e deve despertar todos os outros. E se formos bem sucedidos nisso, não só o “Grande Reset” falhará, mas um julgamento justo será passado sobre aqueles que fizeram dele o seu objetivo de destruir a humanidade, primeiro em espírito e agora em corpo.

Fonte: Katehon

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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Um comentário

  1. Está de parabéns o tradutor desse grande texto (em todos os sentidos). Sua tradução é ótimo serviço prestado a a lusofonia. Política e historicamente, o autor deu-nos magníficas lições.

    Por tudo isso, a Nova Resistência tem a minha gratidão

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