Uma ontologia mestiça contra o Ocidente

O Brasil não é ocidental, indígena ou africano: é mestiço. Enquanto elites e movimentos importam conflitos identitários, a verdadeira soberania está na síntese de nosso povo.

Em entrevista recente, um “especialista” da USP afirmou que o Brasil não tem a disposição para se afastar do Ocidente, pois é muito próximo dele. Isso é bem verdade e bem aparente. Um dos problemas centrais da polarização política brasileira que vemos hoje é a mútua subordinação ao Ocidente, apenas escolhendo parceiros primários distintos, na maior parte do tempo. Se o Bolsonarismo tem sonhos molhados com Trump, um dos passatempos favoritos de Lula e da esquerda é saltitar por aí com Macron.

A relação brasileira com o Ocidente não é nova, é parte de um complexo de sabotagem interna e externa que mantém o Brasil, há séculos, um simulacro do que poderia e deveria ser. O Brasil “se sente” ocidental porque se faz um esforço danado nessa direção. O resultado é o colapso que se avizinha.

É primordial que qualquer projeto cultural para salvar o Brasil tenha como cerne os elementos adequados para uma perspectiva soberana, e estes elementos se encontram na gênese da pátria como povo, o processo de desbravamento e povoação do território, a formação étnica pela miscigenação, o crioulo evocado por Alberto Buela, cristalizado nos arquétipos regionais do território íbero-americano.

Hoje, o Brasil se encontra dividido entre três discursos culturais proeminentes, e se abordados dentro das dinâmicas sociais e espaços políticos mais amplos, nenhum deles suficiente para dar conta das demandas internas e externas da nossa nação.

O primeiro é o discurso abertamente ocidental, que se entranhou nas elites brasileiras desde muito cedo, ideológica e politicamente. A já decadente aristocracia portuguesa que aqui deságua e ordena o processo colonial e posteriormente imperial é rapidamente cercada por influências deletérias, é incapaz de preencher o nexo moral da formação cultural do país e se torna lenta e consistentemente mecanismo de ocidentalização.

A política republicana posterior só agilizou esse processo, e o que vemos hoje é uma elite burguesa extremamente desterritorializada e deslumbrada com a perspectiva de ser vanguarda de um Ocidente cada vez mais decrépito, com forte lobby político e influência ianque e europeia. Esse é tanto o Brasil de um FHC, de Armínio Fraga, de um centrão acomodado às suas barrigas salientes, quanto de uma direita liberal que quer ser um EUA 2.0, o “patriotismo” bolsonarista ou a radicalização libertária.

O segundo é o discurso indigenista, que conquanto evoca uma importante noção de reconhecimento e respeito aos grupos indígenas que ainda vivem sob suas próprias ordenações étnicas e culturais em territórios nacionais, abre espaços perigosíssimos para a influência estrangeira, demarcações irrestritas e gera enclaves “autônomos” instrumentalizados.

Além disso, fia-se num discurso de legitimidade histórica do índio sobre o território brasileiro que ignora fragmentações étnicas dos próprios indígenas, o processo civilizatório imperial e nacional, assim como romantiza de forma racista os elementos culturais tribais sob a guisa “decolonial”, que na realidade emula “ontologias” sob uma lógica ainda ocidentalizante, mas ainda mais radicalmente liberal. Os “líderes” indígenas deslumbrados como Guajajara, Wapichana, Krenak e Kopenawa se encaixam nessa linha, assim como acadêmicos decoloniais em geral, que unem pautas pós-modernas de “identidade” a indigenismo sem qualquer rigor ou respeito epistemológico.

O terceiro é a pauta do que considero uma tentativa de reconstrucionismo africanista. O movimento negro se torna cada vez mais ativamente afeito à ideia de reparação histórica em que tudo o que vale preservar no país é fruto da “Mãe África”, muitas vezes fazendo uso de manipulações narrativas para imputar racismo em contextos incongruentes, ora para se apropriar de elementos culturais complexos como sendo de origem negra. Ao importar narrativas de conflito racial típicas dos EUA, esses grupos promovem um antagonismo maniqueísta que não pode ter outro resultado que o acirramento de ódio identitário. Esse é o Brasil de Lélia Gonzalez, Erika Hilton, Djamila Ribeiro e Silvio Almeida.

“Esses novos racismos, disfarçados de anti-racismo, querem nos fazer acreditar que somos uma colônia mental dos EUA. Mas nosso racismo nunca foi segregacionista como o deles. Aqui, o problema sempre foi de classe, não de raça pura. Agora querem inventar que somos uma minoria oprimida em nosso próprio país. É um absurdo sociológico.”

— Antonio Risério, “A Cidade do Brasil”

Não é difícil perceber que os três discursos refletem um processo contínuo e patrocinado. Nos três, o Ocidente tem mão e interesse, porque todos esfacelam a dinâmica cultural brasileira e promovem pontos para o alimento constante de conflitos e desestabilização. Os três também representam um processo de cisão, ou desconstrução, dos elementos étnicos constitutivos da formação nacional, fazendo uma regressão violenta e anacrônica que exclui os elementos mais profundos de nosso desenvolvimento.

De fato, essa regressão visa apagar da memória cultural a existência de um tipo social específico, o novo homem da civilização íbero-americana, através de uma narrativa da violência generalizada. Há acadêmica (branca, mas da “negritude”) por aí vendendo a ideia de que 90% da população brasileira é fruto de estupro, por exemplo. E assim como é feito no caso do feminismo, o objetivo é “abortar” nossa história em prol de conflitos pós-modernos e pós-étnicos mascarados de identitarismo.

No entanto, somente a miscigenação pode dar conta de explicar o Brasil, dar-lhe sentido, ordem. É a vera essência do nosso povo, é um reflexo do drama cósmico da guerra e do amor, do conflito e da síntese, é um novo momento noomáquico de contato entre logos distintos que se tornam algo novo e possibilitam novas esferas de estruturação. Essa possibilidade foi tolhida de nós pela ocidentalização de nossas elites e grupos minoritários e/ou marginalizados, pelo apagamento e vilanização de herois e movimentos formativos.

É preciso pensar a miscigenação menos pela questão racial, ainda um vício moderno ao qual seus proponentes iniciais estavam amarrados por contexto histórico, e passar a tratá-la em seu eixo existencial, uma nova vocação para o Ser.

“Não somos europeus, nem africanos, nem índios, mas todos eles, transformados aqui num novo tipo humano.”

— Darcy Ribeiro, “O Povo Brasileiro”

Não se trata de romantizar, mas reconhecer nossa verdadeira abertura autêntica para o mundo, até mesmo porque pardos, brancos, indígenas, negros e migrantes tardios compartilham culturalmente das sementes plantadas pela etnia civilizatória que teve tolhida a sua herança.

Amor fati. Somos um povo multiétnico, mas com um destino comum. É preciso substituir a pureza racial pela pureza do ímpeto que abraça sua história e suas contradições numa cruzada divina pelo seu lugar no panteão dos povos. Menos racialismo, mais ontologia mestiça.

Mas esse gesto é volitivo. É importante ressaltar que, por mais terrível que seja a influência estrangeira, seu projeto de dissolução da nossa identidade, quem o compra somos nós. As elites, a burguesia, as minorias, todos abraçam essa negação de nós mesmos por uma ou outra narrativa que nos empurra na direção do abismo civilizacional. É o brasileiro que precisa resgatar o Brasil, amá-lo para torná-lo grande, fazê-lo a Nova Roma.

Gilberto Freyre dizia que o Brasil é um caldeirão de raças, e João Ubaldo Ribeiro nos reverencia não como “um cadinho onde as raças se dissolvem, mas um caldeirão onde fervem ainda todos os seus componentes”. O caldeirão é um elemento mítico recorrente para europeus, africanos e ameríndios, fonte de comunhão, forja, purificação e prosperidade. Urge concluirmos essa obra alquímica e abraçarmos nosso propósito maior.

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Augusto Fleck

Gaúcho, dissidente, bacharel em Ciências Sociais e tradutor.

Artigos: 634

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