Heidegger e “A viagem de Chihiro”: como a tecnologia e a natureza podem coexistir?

Fonte: https://iai.tv/articles/spirited-away-meets-heidegger-we-killed-the-gods-with-technology-but-the-sacredness-of-life-is-continuous-auid-1104

Tradução: J. Cezar

Uma relação entre o existencialista alemão Martin Heidegger e Hayao Miyazaki, ilustrador do mainstream japonês e autor de A viagem de Chihiro e Princesa Mononoke, parece improvável. Mas eles compartilham um tema recorrente: a relação entre os seres humanos e a natureza. Nos animes de Miyazaki, essa relação é mediada pela tecnologia, que ameaça a santidade que há na natureza. No entanto, apesar dos conflitos da natureza humana, Miyazaki é otimista e se mostra surpreendentemente próximo dos postulados de Heidegger em seus trabalhos posteriores.

A tecnologia e a perda dos deuses

A natureza — ou a Terra — é introduzida no pensamento de Heidegger em A origem da obra de arte, onde é contrastada com o mundo humano. Heidegger concebe a Terra como escuridão e abrigo, porque ela nunca pode ser completamente compreendida ou estruturada por seres humanos. Se os humanos, afirma Heidegger, vivem em uma clareira, a Terra seria as rochas, o solo e as árvores ao redor e além da clareira.

Essa compreensão da Terra como algo além do alcance humano também é vista em Laputa, de Miyazaki (O castelo no céu, 1986): os cristais brilhantes escondidos na rocha desaparecem quando ela é quebrada pelo martelo. Isso está diretamente relacionado à descrição de Heidegger de uma pedra: “Se tentarmos penetrar, quebrando a rocha, ela ainda não exibe em seus fragmentos nada que tenha sido aberto. A pedra, instantaneamente, se retirou novamente”. Se abrirmos a pedra, não poderemos revelar o que há de original dentro da pedra intacta. Isso ocorre porque tal interior original retira-se assim que nós quebramos a pedra. Nesse sentido, a Terra é inesgotável, estando na escuridão.

Assim, quando Laputa transforma a Terra (as pedras de cristal) em uma fonte de poder e destruição, a natureza não é mais misteriosa. Isso manifesta a noção de tecnologia de Heidegger, que não se refere simplesmente a vários tipos de equipamentos técnicos, como máquinas, mas sobretudo à maneira subjacente como os humanos vêem a Terra em termos de valor e de uso econômico. Os efeitos da tecnologia e do desencantamento também estão presentes no pano de fundo d'”O castelo animado” de Howl (2004): a magia, que deveria ser antiga e misteriosa, é agora industrializada, na medida em que os magos são recrutados para as forças armadas. Essa tensão também é vista no companheiro de Howl, Calsifar (um espírito do fogo), que não gosta do fato de o fogo estar sendo produzido sob demanda, como um recurso, para acender a pólvora das armas.

Como a Terra permite o mistério, tanto Miyazaki quanto Heidegger a associam a um senso de sacralidade, de deuses. Assim, aos olhos deles, nosso domínio tecnológico da Terra causa a perda dos deuses. A floresta não pode mais ser um lugar de abrigo para os deuses porque se torna um suprimento de madeira. Por essa razão, ambos buscam desafiar esse domínio tecnológico, destacando seus aspectos destrutivos.

Um modo de vida alternativo

Apesar de suas posturas críticas em relação à tecnologia, nem Heidegger nem Miyazaki defendem simplesmente a abolição da tecnologia como um modo de vida. Heidegger admite que ninguém pode frear ou dirigir o progresso da História. A tentativa de abolir a tecnologia não é possível para Heidegger porque repetiria o erro de que as pessoas são mestres completos da Terra. Em “Ponyo”, de Miyazaki (2008), Fujimoto (pai de Ponyo) pretende varrer completamente todos os vestígios de tecnologia em uma inundação, na esperança de retornar a um mar primordial. Embora ele não seja totalmente antipático, em última análise, sua abordagem é fútil e destrutiva. Enquanto Miyazaki e Heidegger rejeitam essas respostas simplistas à tecnologia, ambos estão preocupados com a possibilidade de um modo de vida alternativo.

Essa possibilidade é apresentada em “Naussicaä do Vale do Vento” (1982), de Miyazaki, que se passa num futuro pós-apocalíptico em que a Terra se tornou inóspita. Embora possa ser considerada como a perda final de qualquer relacionamento humano com a Terra, a história de fato se concentra em uma profecia de um salvador que restaurará esse relacionamento. Ao contrário da redenção judaico-cristã através de um relacionamento com Deus como um ser supremo, essa salvação se dá através da reconciliação humana com a natureza.

Isso coincide com o projeto de Heidegger em seus trabalhos posteriores. Heidegger não considera a visão monoteísta ocidental de Deus como um ser supremo. Mas ele espera recuperar um sentimento religioso de admiração por morar na terra. Os deuses de Heidegger são parte da natureza, e a natureza é misteriosa. A conexão entre os humanos e a Terra é, portanto, nossa conexão com os deuses. Por isso, os deuses se perdem quando a natureza é vista apenas como um recurso. Então, para Heidegger, somente quando nos afastamos da visão da Terra como um recurso podemos renovar o relacionamento dos homens com os deuses.

A ligação que Heidegger estabelece entre os deuses, o mistério e a maravilha da Terra se assemelha ao Shintō popular, uma antiga religião japonesa que se concentra no sagrado que há natureza. Essa é uma influência fundamental em “A viagem de Chihiro”, de Miyazaki, em que as imagens xintoístas são explícitas, e, até certo ponto, em “Princesa Mononoke”.

O futuro da relação entre os humanos e a natureza é deixado em aberto em “Naussicaä”, mas, para Heidegger e Miyazaki, esse relacionamento renovado é sagrado porque permite que os deuses reapareçam. Em “Princesa Mononoke” e “A viagem de Chihiro”, temos um mundo alternativo no qual, através dos deuses, as pessoas veem a natureza como sagrada novamente.

O retiro dos deuses: “Princesa Mononoke”

A perda dos deuses é óbvia e central em “Princesa Mononoke”, em que a floresta sagrada está sendo transformada em uma fonte de ferro. Os animais da floresta deixam de ser deuses e se tornam um suprimento de carne. A destruição final do deus da floresta é realizada por Lady Eboshi, que consegue decapitar a floresta com sua arma. Isso é mais do que simplesmente um ato de violência. O ato de Lady Eboshi representa uma transformação radical do modo humano de ver a floresta.

Nós poderíamos interpretar Lady Eboshi como uma humanista secular. Suas ações parecem ser racionais na medida em que ela visa alcançar progresso e prosperidade para sua comunidade. Para ela, não há nada de sagrado na floresta, e os deuses ou animais são simplesmente obstáculos para a extração eficiente de ferro. Lady Eboshi pode aparecer como um indivíduo excepcional em seu mundo. Ela não é uma personagem totalmente antipática. Mas, eventualmente, suas ações provocam a miséria geral, tanto para a floresta como para os humanos. Através de Lady Eboshi, Miyazaki representa nossa compreensão da tecnologia como simples progresso.

Princesa Mononoke não é apenas uma história de perda. No fim, a floresta sagrada começa a crescer novamente, apresentando esperança para um recomeço. O destino do deus da floresta não é claro, como revelado na discussão entre a princesa Mononoke e Ashitaka (o herói). A princesa se desespera com a aparente morte do deus da floresta, enquanto Ashitaka permanece confiante na sua sobrevivência, porque “ele é a vida”. A mensagem é clara: ainda que, aparentemente, o deus da floresta possa ter morrido, ele ainda existe na sacralidade da própria vida. A sacralidade contínua da própria vida e a renovação do sagrado, portanto, mantêm a possibilidade de que os deuses possam retornar. Como em “Princesa Mononoke”, Heidegger é ambíguo quanto ao retorno dos deuses. Ele afirma que “os deuses que ‘já estiveram lá’ retornam apenas na ‘hora certa’, mas esse momento certo deve ser algo além da compreensão. Os humanos podem, no entanto, preparar-se, abrindo-se para o sagrado”.

O retorno dos deuses: “A viagem de Chihiro”

“A viagem de Chihiro” situa-se perto do Japão contemporâneo e faz referência ao crash financeiro que ocorreu no Japão nos anos 90. Também é possível dizer que a história ocorre após o término de “Princesa Mononoke”, em um mundo onde os deuses foram perdidos. No entanto, no início do anime há uma sugestão de que isso pode não ser o caso. Passando pelo pequeno mas distinto santuário xintoísta ao lado da estrada, o humor de Chihiro (a heroína) muda radical e inexplicavelmente — de aborrecida e confortavelmente apática para com o mundo ao seu redor até uma estranha ansiedade, uma impressão de que algo está por perto.

Em contraste, o santuário é amplamente ignorado pelos pais de Chihiro, cuja principal preocupação é mudar de casa. Mais tarde, quando chegam a alguns edifícios misteriosos, concebidos como um parque temático abandonado (mas que são, na verdade, uma morada dos deuses), consideradam a área apenas como um local potencial para um piquenique. Como Lady Eboshi, os pais de Chihiro não mostram nenhum senso de santidade ou mistério. Eles acreditam no poder do capitalismo de consumo que, em termos heideggerianos, repousa sobre o poder da tecnologia. Assim, o pai de Chihiro não consegue ver a óbvia estranheza da comida no parque temático aparentemente abandonado, enquanto assegura a ela que ele tem cartões de crédito e dinheiro para pagar pela comida. No sentido heideggeriano, os pais de Chihiro estão presos em um mundo de consumismo tecnológico, e os deuses estão para sempre perdidos para eles. Mesmo que Chihiro lhes contasse a história de seus misteriosos encontros com os deuses, é duvidoso que eles teriam acreditado nela.

Os encontros mais significativos de Chihiro dizem respeito a um garoto misterioso conhecido como Haku. Chihiro finalmente se lembra da verdadeira identidade de Haku como um rio, com quem ela se se apaixonou. Nesse exato momento, Haku também recupera sua verdadeira identidade como um deus do rio, uma identidade que ele havia esquecido desde que o rio foi convertido em apartamentos.

Isso é espelhado pela lembrança de Haku do nome de Chihiro depois que sua identidade foi roubada pela bruxa Yubaba. A condição de Haku reflete a perda dos deuses na tecnologia e mostra como as coisas podem ser diferentes: Haku se torna um deus novamente através de Chihiro, e Chihiro se lembra de sua verdadeira natureza através de sua interação com o deus do rio. “A viagem de Chihiro” demonstra como os humanos e os deuses podem recuperar sua verdadeira identidade e como os humanos podem ver a Terra como sagrada novamente.

Essa relação recíproca, pela qual a natureza (ou os deuses) e os seres humanos recebem sua identidade um pelo outro, manifesta o verdadeiro significado da “morada” no pensamento de Heidegger. No entanto, o fim de “A viagem de Chihiro” ainda é ambíguo: quando Chihiro retorna para seus pais, a audiência fica imaginando se Chihiro vai conceber seus encontros com os deuses simplesmente como um sonho ou uma fantasia infantil.

O poder de mudar

Os animes de Miyazaki e o pensamento posterior de Heidegger compartilham o sentido de que a tecnologia não é meramente destrutiva para a natureza, mas que também representa uma perda dos deuses. Se a Terra é uma fonte de recursos, ela não pode ser mais um local sagrado. Ao destacar a força destrutiva da tecnologia, Miyazaki e Heidegger também sugerem a possibilidade de transformação através da observação dos vestígios de santidade da natureza ameaçada de extinção.

Apesar de não adotar uma solução ludista simples, como deveríamos coexistir com a natureza? Essa parece ser uma questão em aberto que Miyazaki e Heidegger nos apresentam. Quando consideramos seus trabalhos, nos é dada a oportunidade de participar da busca por uma resposta. Quando começarmos a refletir sobre isso, talvez possamos acumular o poder de mudar.

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Nova Resistência
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