A crise global atual do COVID-19 vem derrubando diversos mitos e paradigmas centrais da globalização e do liberalismo. Nesse artigo, o filósofo russo Aleksandr Dugin analisa os principais aspectos do mundo pós-epidemia, caracterizado-o como um mundo pós-globalista. O que esperar dele?
A crise que a humanidade atravessa por conta da pandemia do coronavírus já assumiu contornos tão globais que um simples retorno à situação anterior (pré-epidêmica) parece impossível.
Se, por uma série de variáveis, a propagação do vírus não puder ser radicalmente interrompida dentro dois meses a um ano e meio, o processo se tornará mesmo irreversível e, ao que tudo indica, a ordem mundial entrará em colapso. A história já viu períodos semelhantes, de catástrofes mundiais, guerras e eventos extraordinários.
Deste modo, se olhamos para o futuro a partir do ponto em que estamos agora, mesmo com toda a incerteza e indefinição, podemos ainda assim traçar alguns dos cenários mais prováveis:
(1) A globalização entrou em colapso completamente – de forma rápida e irrevogável: não é de hoje que já se podem observar sinais de uma crise, mas a epidemia simplesmente destroçou todos os principais axiomas do mundo global: fronteiras abertas; interdependência das sociedades; eficácia das instituições econômicas existentes e competência das elites no poder diante de problemáticas como a do coronavírus. A globalização caiu: ideologicamente (liberalismo), enquanto modelo econômico (redes globais) e politicamente (a liderança das elites ocidentais).
(2) Nas ruínas da globalização, será estabelecida uma nova arquitetura para um mundo pós-globalista (pós-liberal).
Quanto mais rápido reconhecermos essa virada de mesa, mais preparados estaremos para lidar com os novos desafios. O status quo atual é parecido com o dos últimos dias da URSS, ocasião em que a esmagadora maioria da classe dominante soviética se recusava a pensar na possibilidade de transição para um novo modelo – de Estado, governo e ideologia – e na qual apenas uma minoria reduzida percebeu a natureza fatal da crise e estava se preparando para adotar um modelo alternativo. Mas naquela conjuntura, na qual o mundo era bipolar, com o colapso de um dos dois polos, logicamente, sobra um. E foi assim que, naquele contexto, a solução adotada foi reconhecer vitória do polo remanescente, copiar suas instituições e tentar se enveredar por suas estruturas. Isso deu o start para a globalização dos anos 90 e para o mundo unipolar que então se estabelecia.
Hoje, é precisamente essa unipolaridade que está entrando em colapso e que, antes, foi reconhecida (no campo ideológico, econômico e da estrutura política) por todos os principais atores mundiais, incluindo China, Rússia, etc. (mesmo com todas as tentativas de defender suas independências e conquistar melhores condições). Consequentemente, as elites dominantes enfrentam, hoje, um problema mais complexo: a escolha entre um modelo que desmorona no abismo e algo completamente desconhecido – uma situação na qual não há nada para servir como modelo ou receita confiável para a construção do futuro.
Podemos imaginar o quão desesperadamente (com um desespero ainda maior do que o das elites soviéticas no final da era soviética) as elites dominantes irão se apegar ao globalismo e às suas estruturas – apesar do óbvio colapso de todos os seus mecanismos, ferramentas, instituições e estruturas.
Logo, o grupo daqueles que poderão navegar de forma relativamente livre em meio ao caos crescente será bastante reduzido, mesmo entre as elites. Nesse panorama, é difícil projetar com precisão como se darão as relações entre globalistas e pós-globalistas, mas mesmo agora, em termos gerais, é possível antecipar os principais pontos da realidade pós-globalista:
(a) Não será uma Sociedade Aberta a que emergirá, mas uma Sociedade Fechada. A soberania está se tornando o valor mais caro e decisivo, ao lado da capacidade salvífica de dar suporte à vida de um povo específico dentro de um determinado Estado. A partir de tal diapasão, o poder só será legítimo na medida em que for eficiente para lidar com essa dupla tarefa: primeiro, salvar a vida das pessoas em uma pandemia e em processos catastróficos similares e, segundo, organizar uma estrutura política, econômica e ideológica que permita defender os interesses dessa sociedade (fechada) diante dos outros. Isso não implica necessariamente uma “guerra de todos contra todos”, mas, ao mesmo tempo, esse país e esse povo serão o principal vetor de prioridade antes de qualquer coisa, e nenhuma outra consideração ideológica poderá anular esse princípio.
(b) A sociedade fechada deve ser autônoma. Isso significa que deve ser autossuficiente e independente de fornecimentos externos em questões, principalmente, relativas à alimentação, produtos industriais, sistema monetário e financeiro e poderio militar. Todos esses aspectos, no futuro que se anuncia, se tornarão as principais prioridades na luta contra a epidemia, principalmente quando os Estados forem forçados a se fechar (e já se fecharam); do ponto de vista do mundo pós-globalista, esse Estado é o que prevalecerá.
Se os globalistas enxergam essas medidas como temporárias, os pós-globalistas devem, na contramão, se preparar para que tudo isso se torne uma prioridade estratégica.
(c) A autossuficiência na questão dos meios de subsistência, recursos, economia e política deve ser pareada com uma política externa eficaz – e é aí que entra a estratégia da aliança. O primordial é dispor de um número suficiente de aliados estratégicos e geopoliticamente relevantes que, juntos, formem um bloco potencial, capaz de fornecer a todos os seus membros recursos efetiva e defesa suficientemente confiável contra possíveis agressões externas. O mesmo se aplica aos laços econômicos e financeiros: expandir o volume de acesso aos mercados, só que não em nível global, mas em escala regional.
(d) Para garantir a Soberania e a Autarquia, é indispensável estruturar o controle sobre as áreas em que a soberania e a segurança de cada entidade soberana são de vital importância. Isso transforma
certos processos de integração em um imperativo geopolítico: a potencial hostilidade nas proximidades de um território nacional (em potência ou em ato) prejudica a defesa e a segurança de todos. Consequentemente, ainda na luta contra a epidemia, um certo modelo de integração deve ser previsto e incorporado.
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O mundo pós-globalista, portanto, pode ser pensado como consistindo de vários grandes e pequenos centros. Cada polo de poder deve preencher os requisitos para essa organização autárquica – algo análogo os impérios tradicionais, ou seja:
(I) Um único sistema vertical de controle rígido (em uma situação de crise, munido de poderes ditatoriais de Autoridade Maior);
(II) Total responsabilidade do Estado e de suas instituições pela vida e saúde de seus cidadãos;
(III) Ainda: responsabilidade do Estado por fornecer à população alimentos em uma situação de fronteiras fechadas – o que pressupõe uma agricultura desenvolvida;
(IV) Construção de uma soberania cambial com referência à moeda nacional, e não ao sistema de reservas mundiais – desvinculado da cobertura do ouro ou das commodities (ou seja, apontando para indicadores econômicos reais);
(V) Garantir altos índices de desenvolvimento da indústria nacional, suficientes para uma concorrência efetiva com outros Estados fechados, mas sem excluir a cooperação (ou seja, relevante apenas nos casos em que o princípio da independência e da autarquia industrial não sejam afetados);
(VI) A criação de uma indústria militar eficaz e de infraestrutura científica e industrial de ponta;
(VII) Controle e manutenção do sistema de transporte e comunicação capaz de otimizar a comunicação entre territórios delimitados do Estado.
E, Obviamente, para implementar essas medidas extraordinárias:
- uma elite dirigente (a classe política pós-globalista) e, consequentemente,
- uma ideologia de Estado completamente nova (liberalismo e globalismo definitivamente não são adequados para tais fins).
Essa classe política deve ser recrutada entre gerentes e funcionários de instituições militares e a ideologia deve refletir as características culturais e religiosas históricas daquela sociedade em particular e ter uma orientação futurológica – projetar a identidade civilizacional para o futuro.
É importante salientar que algo dessa magnitude precisa fluir entre a quase totalidade dos países e blocos de países modernos – incluindo tanto aqueles que estão completamente imersos na globalização, quanto os que a evitaram até aqui. Nesse sentido, deve-se presumir que tais processos tornarão os Estados Unidos um dos mais relevantes atores mundiais que, simultaneamente, deverão mudar seu conteúdo – de Fortaleza da Globalização a uma potência mundial autocrática poderosa e autossuficiente. Os pré-requisitos para essa transformação já estão parcialmente presentes no programa de Donald Trump e, no contexto da luta contra a pandemia e do Estado de Emergência, eles adquirirão características ainda mais distintas.
As potências europeias mais preparadas para seguir esse caminho – mesmo que emergencialmente – são atualmente a França e a Alemanha. Na medida em que a crise se aprofunda e se alastra, a realidade factual se aproxima cada vez mais do esquema geral que descrevemos acima.
A China está relativamente pronta para essa virada ideológica e política, sendo um Estado rígido e centralizado, com uma estrutura vertical de poder. A China está padecendo muito com o colapso da globalização, que conseguiu manejar em favor de seus interesses nacionais, apesar de, em geral, sempre ter conferido ênfase especial em sua autarquia – que o Estado chinês não perdeu de vista nem mesmo nos períodos de maior abertura.
Há, ainda, pré-requisitos para uma evolução pós-globalista no Irã, Paquistão e, em partes, na Turquia, que juntos podem encorpar os polos no mundo islâmico.
A Índia (que rapidamente revive sua identidade nacional), no contexto da pandemia, começou a restaurar ativamente os laços com países amigos da região, se preparando o que virá.
A Rússia também possui vários aspectos positivos em aspectos gerais: as políticas de Putin nas últimas duas décadas para fortalecer a soberania; a existência de um poderio militar sólido; precedentes históricos, no país, de uma autarquia completa ou parcial; tradição de independência ideológica e política; forte identidade nacional e religiosa; reconhecimento popular da legitimidade do modelo centralista-paternalista de governo.
No entanto, a elite dominante em voga, que se formou no final da era soviética e no período imediatamente pós-soviético, não atende completamente aos desafios de nosso tempo, sendo a herdeira dos esquemas das ordens mundiais bipolar e unipolar (globalista) e dos modelos de pensamento associados a esses esquemas. Economicamente, financeiramente, ideologicamente e tecnologicamente, a Rússia está intimamente ligada à estrutura globalista: o que, de muitas maneiras, a deixa vulnerável para um confronto eficaz com a epidemia – caso ela passe de uma emergência de curto prazo para o pano de fundo para uma nova ordem mundial – e para o mundo pós-global que se anuncia. Essa elite compartilha uma ideologia liberal e baseia suas atividades, em diferentes graus, em estruturas transnacionais (exportação de recursos, desnacionalização da indústria, dependência de bens e produtos estrangeiros, inclusão no sistema financeiro global, com o reconhecimento do dólar como moeda de reserva, etc.). Em outras palavras, nem em termos operativos e nem no aspectos de visão de mundo, cultura política e administrativa, essa elite é capaz de fazer a transição para um novo Estado. No entanto, convém que lembremos esse estado de coisas é comum à grande maioria dos países onde a globalização e o liberalismo, até recentemente, eram considerados dogmas indestrutíveis e irrefutáveis. E agora, a Rússia tem uma chance para mudar esse estado de coisas, preparando o Estado e a sociedade para se unirem em torno da nova ordem pós-globalista.
[…] sea que se resuelva la crisis, algunxs autorxs señalan que ya no podremos volver al mundo pre-COVID-19. Los pilares de la globalización neoliberal fueron derribados desde sus cimientos. En las ruinas […]