Antônio Gramsci (1891-1937), teórico marxista italiano, foi um dos mais importantes intelectuais independentes do período estalinista. Ativista desde jovem, Gramsci destacou-se pelo espírito crítico com que analisou seus contemporâneos políticos e os diagnósticos precisos que fez da conjuntura social, política e cultural da Europa de sua época. É conhecido, acima de tudo, como o teórico do “poder cultural”. Para Gramsci, o estado tem também o papel de “organizar o consentimento”, isso é, o estado maneja as coisas por meio de uma ideologia implícita, fundamentada em valores defendidos pela maioria dos membros da sociedade.
Antonio Gramsci é, ao lado de Lukács [1], o “marxista-leninista independente” mais conhecido do período estalinista. É, acima de tudo, o teórico do “poder cultural”.
Gramsci nasceu na Sardenha em 1891. Uma lenda de Dom Bosco o transformou em filho de pastor. Em realidade, seu pai era funcionário. Aos três anos de idade, depois de cair no vão de uma escada, sofre uma deformação da coluna vertebral que o deixou corcunda para o resto de sua vida. Ao completar dezessete anos de idade ingressa na universidade graças à uma bolsa. Muda-se para Torino em 1911. Dois anos mais tarde, filia-se ao Partido Socialista Italiano (PSI), transformando-se imediatamente em militante da esquerda. Também contribui nas páginas do jornal Avanti! e o semanário Grido del popolo.
Em maio de 1911 lança o semanário Ordine nuovo, em colaboração com Terracini [2] e Palmiro Togliatti [3]. Nesse momento, o mundo comunista estava num estado de completa agitação. A partir de 1918, certas correntes se declararam a favor de um “apoio crítico” ao bolchevismo russo. Estas correntes se negaram a aceitar a hegemonia da Komintern (a Internacional Comunista) sem questioná-la. Na Alemanha, esse foi o caso dos grupos que formariam o KAPD (Partido Comunista dos Trabalhadores da Alemanha) em 1920, junto com Rosa Luxemburgo e Karl Korsch [4]. O mesmo se aplica aos “conselheiros” de Pannekoek [5] nos Países Baixos. Sua oposição impactou particularmente na ação parlamentaria, que consideravam inadequada para os fins da luta socialista, e no papel dos sindicatos, cujas virtudes revolucionárias questionavam.
Essa posição, que posteriormente seria adotada por numerosos movimentos de esquerda, é denunciada por Lenin em Esquerdismo: doença infantil do Comunismo.
Na Itália, dentro do PSI, enfrentam-se dois grupos de “esquerda”: um está dirigido por Amadeo Bordiga [6], o outro por Gramsci.
[…]
O propósito do sindicato, escreve Gramsci, “é tal que poderia ser denominado como comercial”: consiste em “melhorar o trabalho de certa categoria de trabalhadores dentro do mercado burguês”, objetivo que não tem conexão com a revolução. Quanto à “religião do partido”, que está conectada com o burocratismo e o elitismo, se expressa através do “desejo de cultivar o aparato pelo bem deste último” (Notas sobre Maquiavel). Qual a conclusão? Tanto o partido como o sindicato poderiam atuar como agentes da revolução, mas nunca poderiam ser suas formas privilegiadas, que logo iriam juntar-se com ela.
Com traços bem pronunciados, nariz grande, cabelo negro e seus óculos de ópera, Gramsci participa de todos os congressos. É então que enuncia seu famoso moto: “Só a verdade é revolucionária”.
Paralelamente, elabora uma teoria do “conselho de fábrica”, cuja ideia central estabelece que o proletariado deve instaurar sua ditadura por meio de organismos criados espontaneamente em seu seio. A palavra crucial aqui é “espontaneamente”; o que implica um retorno ao ponto de partida.
Bordiguistas e “traidores sociais”
Gramsci então volta sua atenção para os “conselhos de fábrica” nos quais se supõem que ocorre uma síntese entre a infraestrutura econômica e a superestrutura política: durante a primeira fase da sociedade comunista o estado proletário global nascerá da coalizão das fábricas e conselhos rurais, dando lugar à democracia direta. Escreve:
Os comissários de fábrica são os únicos verdadeiros representantes sociais (econômicos e políticos) da classe trabalhadora, uma vez que são eleitos por sufrágio universal no próprio local de trabalho.
Em abril e setembro de 1920, uma imensa ação grevista sacode o norte da Itália. É um evento e tanto:
Pela primeira vez na história o proletariado inicia uma luta pelo controle da produção sem ter sido forçado a agir pela fome e nem pelo desemprego. (Ordine nuovo, 14 de março de 1921).
Em Torino, Gramsci está a cargo de todos os sovietes corporativos. Diz:
Toda fábrica é um estado ilegal, uma república proletária que vive dia a dia!
Não obstante, rapidamente o entusiasmo diminui. A direita do PSI “rompe” o movimento e a socialdemocracia perde terreno. Além disso, a decisão de Lênin de acelerar as divisões comunistas dentro dos partidos socialistas acelera ainda mais as coisas. Em 21 de janeiro de 1921, em Livorno, a “facção comunista” do PSI se transforma no Partido Comunista Italiano. Ainda que em sua criação participam tanto Gramsci quanto Togliatti, é por fim Bordiga quem toma o controle graças à sua organização superior.
[…]
Em janeiro de 1926, o Partido Comunista Italiano celebra um congresso em Lyon, na França. Gramsci consegue impor suas teorias e se transforma em secretário geral. Naquele momento, contudo, já era tarde demais: isolado de seus votantes e esgotado por conflitos internos, o partido é proibido em 8 de novembro e passa à clandestinidade. Gramsci é preso, levado à ilha de Utica e condenado à vinte anos de prisão.
É ali, em sua célula, aonde escreve seus textos mais importantes: Cadernos do Cárcere, divididos em trinta e três livretos e três mil páginas manuscritas.
Livre das contingências da ação, Gramsci repensa toda a práxis do marxismo-leninismo. Em especial, se debruça sobre o grande revés socialista da década de 20: Como é possível que a consciência dos homens seja “atrasada” em comparação com o que sua situação de classe deve ditar a eles? Como as classes dominantes mantem “naturalmente” a obediência das classes dominadas. Gramsci responde a todas essas perguntas examinando mais de perto a noção de ideologia e fazendo uma distinção decisiva entre “sociedade política” e “sociedade civil”.
A teoria do poder cultural
Gramsci usa a expressão “sociedade civil” (termo usado por Hegel [7] mas criticado por Marx) para designar o conjunto do “setor privado”, isso é, seu sistema de necessidades, jurisdição, administração e corporações, mas também o setor intelectual, religioso e relativo à moral.
O erro que haviam cometido os comunistas repousava em sua crença de que o estado não era mais do que um simples aparato político. No entanto, o estado “também organiza o consentimento”, o que significa que maneja as coisas por meio de uma ideologia implícita, que se fundamenta em valores defendidos pela maioria dos membros da sociedade. Esse aparato “civil” compreende cultura, ideias, hábitos e tradições e se estende até o “senso comum”.
Em outras palavras, o estado não é um mero aparato de coerção. Junto à dominação direta e a autoridade que exerce através do poder político, também se beneficia da “hegemonia” ideológica e da adesão mental das pessoas a uma cosmovisão que a consolida e justifica, ambas derivadas de suas atividades de poder cultural (ver também a distinção feita por Althusser entre “o aparato repressivo do estado” e “os aparatos ideológicos do estado”).
Distanciando-se de Marx, que reduzia a “sociedade civil” somente à sua infraestrutura econômica, Gramsci está perfeitamente ciente de que é dentro da própria sociedade civil onde se elaboram e difundem as visões de mundo, as filosofias, as religiões e todas as atividades intelectuais e espirituais implícitas ou explícitas, o que permite a criação e perpetuação do consenso social (não percebeu, todavia, que a ideologia também está conectada com as mentalidades, isso é, com a estrutura mental de cada povo específico). Reintegrando a sociedade civil ao nível da superestrutura e associando-a à ideologia, da qual, em realidade, depende, diferencia então duas formas de superestruturas no mundo ocidental: de um lado, a sociedade civil e, por outro, a sociedade política ou o estado per se.
Enquanto que no oriente o estado é tudo e a sociedade civil é ao mesmo tempo “primitiva e gelatinosa”, os comunistas do ocidente devem ser conscientes do fato de que o aspecto “civil” deve ser acrescentado ao aspecto “político”. Se Lênin, que não percebeu isso, conseguiu tomar o poder, é porque na Rússia a sociedade civil era inexistente. Nas sociedades desenvolvidas, não é possível reivindicar o poder político sem antes tomar o poder cultural:
A tomada do poder não se dá unicamente através de uma insurreição política que assume o estado, mas também através de uma extensa atividade ideológica dentro da sociedade civil que permite assentar os fundamentos necessários. (Hélène Védrine [8], Les philosophies de l’histoire. Payot, 1975)
A “transição para o socialismo” não ocorre através de um golpe de estado nem de um enfretamento direto, mas através da subversão das mentes.
O tema central desta guerra de posições é a cultura, que atua como um posto de comando de valores e ideias.
Assim, Gramsci rechaça simultaneamente o leninismo tradicional (a teoria do enfrentamento revolucionário), o revisionismo estalinista (a estratégia da Frente Popular) e as teorias de Kautsky [9] (a constituição de uma vasta assembleia de trabalhadores). Tanto no lugar do “trabalho de partido” como em paralelo, sugere substituir a “hegemonia burguesa” pela “hegemonia proletária cultural”, bem diante do nariz das autoridades estabelecidas. Superada por valores que já não são os seus, a sociedade existente será então sacudida em suas fundações e só será preciso explorar a situação no campo político.
Daí o papel atribuído aos intelectuais: “ganhar a guerra cultural”. Aqui o intelectual se define pela função que exerce em relação com um determinado tipo de sociedade ou produção. Gramsci escreve:
Todo grupo social que surgiu no campo primário de uma função essencial dentro do mundo da produção econômica cria organicamente, ao mesmo tempo, uma ou várias capas intelectuais que lhe outorgam homogeneidade e consciência de sua própria função não somente no domínio econômico, mas também no social e político. (Os intelectuais e a organização da cultura)
Usando esta (ampliada) definição, Gramsci faz a distinção entre intelectuais orgânicos, que asseguram a coesão ideológica de um determinado sistema, e intelectuais tradicionais, isso é, os que representam as velhas classes sociais que persistem através da desarticulação das relações de produção.
É no nível dos “intelectuais orgânicos” que Gramsci recria o sujeito da história e da política, “os Nous organizadores de outros grupos sociais”, para usar a expressão de Henri Lefebvre [10] (La fin de l’histoire. Minuit, 1970). O sujeito já não é o príncipe nem o estado, nem sequer o partido, mas a vanguarda intelectual ligada à classe trabalhadora. É essa vanguarda que, mediante um “trabalho de formiguinha”, compre uma “função de classe” ao tornar-se porta voz dos grupos representados nas forças produtivas.
Também é responsável por atribuir ao proletariado a “homogeneidade ideológica” e a consciência necessária para assegurar sua hegemonia, um conceito que, com Gramsci, substitui e ultrapassa a “ditadura do proletariado” (na medida em que vai além do político e abarca a ideologia).
Pluralismo e consenso evanescente
No processo, Gramsci amplia os meios que considera apropriados para a “persuasão permanente”: apelando à sensibilidade popular, uma inversão de valores a nível de poder, a criação de “heróis socialistas” e a promoção de representações teatrais, folclore e canções (ao definir estes objetivos, inspira-se na experiência inicial fascista e seus primeiros êxitos). O comunismo, diz, deve resolver seus próprios problemas levando em conta a experiência soviética, mas sem a intenção de seguir passivamente este modelo. Isso o leva a ressaltar a especificidade das problemáticas nacionais. Para ele, a ação e a estratégia políticas não podem permitir-se o luxo de descuidar a complexidade das sociedades nem seu temperamento, mentalidades, heranças históricas, culturas, tradições, relações de classe (incluídos seus aspectos ideológicos), etc.
Gramsci estava bem ciente do fato de que o período pós-fascista não seria socialista. No entanto, pensou que esse período, novamente dominado pelo liberalismo, representaria uma excelente oportunidade para praticar a subversão cultural, porque os defensores do socialismo estariam, moralmente falando, em uma posição de poder.
Deste “desvio democrático” surgirá um novo bloco histórico dirigido pela classe trabalhadora, com os intelectuais tradicionais conquistados ou destruídos. (Quando utiliza o termo “bloco histórico”, uma noção que está fundada particularmente num estudo da situação imperante em Mezzogiorno, Gramsci se refere, em realidade, a um sistema de alianças políticas que associa infraestrutura com superestrutura, centrado no proletariado e baseado na “história”, isso é, sobre as classes e sua estrutura dentro da sociedade).
Esta visão se demonstrou profética, não somente porque é precisamente nos regimes liberais que a subversão possui maior liberdade de ação, mas também porque, ao serem pluralistas, esses regimes se caracterizam por um consenso débil que favorece a influência dos intelectuais nas lutas políticas. Jean Baechler [11] escreve:
Um consenso evanescente é o que tipifica o tipo de ordem pluralista. Na verdade, o pluralismo político, isso é, o reconhecimento institucional da legitimidade de projetos divergentes e competitivos é intrinsecamente um corruptor do consenso. Sob o impacto apenas do mecanismo da competência a pluralidade de partidos deixa transparecer cada vez mais claramente a multiplicidade e variabilidade das distribuições, instituições e valores. Se o pior acontece, não há nada em que os membros de tal sociedade possam concordar de maneira unânime. (Qu’est-ce que l’idéologie? Gallimard, 1976) (Qu’est-ce que l’idéologie? Gallimard, 1976)
Nos encontramos, portanto, num círculo vicioso. As atividades dos intelectuais contribuem para a destruição do consenso geral, com a difusão de ideologias subversivas que acompanham as falhas intrínsecas dos regimes pluralistas. Contudo, quanto mais diminui o consenso, mais forte é a demanda ideológica (que deve satisfazer as atividades dos intelectuais). A maioria ideológica é assim invertida.
Notas:
[1] Nascido como György Bernát Löwinger, György o Georg Lukács (13 de abril de 1885 – 4 de junho de 1971) foi um filósofo, esteticista, historiador literário e crítico marxista húngaro.
[2] Político antifascista.
[3] Togliatti foi o líder do Partido Comunista Italiano.
[4] Karl Korsch (15 de agosto de 1886 – 21 de outubro de 1961) foi um teórico marxista alemão.
[5] Antoine (Anton) Pannekoek (2 de janeiro de 1873 – 28 de abril de 1960) foi um astrônomo holandês, teórico marxista e revolucionário social. Foi um dos principais teóricos do comunismo de conselhos.
[6] Amadeo Bordiga (13 de junho de 1889 – 23 de julho de 1970) foi um marxista italiano, colaborador da teoria comunista, fundador do Partido Comunista da Itália, líder da Internacional Comunista e, posteriormente, figura destacada do Partido Comunista Internacional.
[7] Georg Wilhelm Friedrich Hegel (27 de agosto de 1770 – 14 de novembro de 1831) foi um filósofo alemão e uma figura significativa do idealismo alemão.
[8] Nascida em 5 de junho de 1926, Hélène Vedrine é uma filósofa francesa.
[9] Karl Johann Kautsky (16 de outubro de 1854 – 17 de outubro de 1938)
[10] Henri Lefebvre (16 de junho de 1901 – 29 de junho de 1991) foi um filósofo e sociólogo marxista francês, mais conhecido por ser pioneiro na crítica da vida cotidiana, seus conceitos de “direito à cidadania” e à produção de espaço social, e seu trabalho sobre a dialética e a alienação. Criticou fortemente o estalinismo, existencialismo e o estruturalismo.
[11] Nascido em 28 de março de 1937, Jean Baechler é um sociólogo francês.