A Revolução do Cinema Novo e a Revolução Quarto-teórica

Glauber Rocha pensava e concebia dialeticamente. Ele inclusive aplicou e desenvolveu a montagem dialética de Eisenstein, concebendo filmes quase teóricos, partindo, outrossim, de Brecht, de Pasolini e de Godard. Neste breve artigo, considero o caráter dialético da sua obra, assim como a personalidade de um homem que guardava as grandes contradições do brasileiro da sua geração.

Heis de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!
Antero de Quental

Como sabeis que cada Pássaro que cruza as vias do ar
Não é um imenso mundo de deleite, fechado aos
vossos cinco sentidos?
William Blake

Barravento: populismo e desmistificação
Barravento (1961) encerra contradições e limitações admitidas pelo próprio Glauber:
“Larguei o roteiro e me aventurava em materializações arbitrárias. Reorganizava a mitologia grega segundo uma dialética religião/economia. Religião opium do povo. Abaixo o pai. Abaixo o folclore. Abaixo a macumba. (…) Abaixo a reza. Abaixo o misticismo. Ataquei Deus e o Diabo. Macumbeiro de Buraquinho, sem nunca ter entrado numa camarinha, fui refilmando segundo as verdadeiras leis da antropologia materialista. Cinema Novo.”

Em Barravento, a relação de Firmino (Antonio Pitanga) e Aruã (Aldo Teixeira) com a comunidade é um microcosmo de uma prática indelével na vida política latino-americana: o populismo. A aldeia de pescadores só pode irromper como classe enquanto devotada a um chefe de cariz encantador, sedutor. No entanto, é justamente nessa fusão entre os pescadores e o líder aldeão que reside, segundo a concepção marxista, o entrave para a autonomia da classe. Em 1974, Glauber propôs que os militares assumissem o processo revolucionário. Não estou certo de que ele reviu sua crítica ao populismo, mas tal defesa dos militares remete à revalorização da Teoria do Caudilho, de um Exército identificado com o Povo, ideário encarnado, anos mais tarde, por Hugo Chávez, líder da Revolução Bolivariana.

Terra em Transe: Tese
Antes de mais, Terra em Transe (1967) é a expressão de um cinema em transe: La Chinoise, Week-end à Francesa, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Caso dos Irmãos Naves, Bonnie e Clyde, só para citar alguns do mesmo ano, embora, guardadas as devidas proporções, Terra em Transe tenha mais ecos de L’année dernière à Marienbad, de 1961. Vamos dizer que Terra em Transe é um L’année dernière à Marienbad politizado e bem menos hermético, combinado com o barroco brasileiro e com o mito de El Dorado, a mítica cidade de ouro perdida na América Latina.

Glauber Rocha definiu Terra em Transe como denúncia contra as direitas tropicalistas e o “retrato das contradições do povo brasileiro”. Ele também não poupa crítica às esquerdas: “Podridão mental, cultural, decadência que está presente tanto na direita quanto na esquerda (…)”. Não é, pois, um filme de personagens positivas. Em sentido amplo, Terra em Transe é a Tese.

Deus e o Diabo na Terra do Sol: Antítese
Na gramática glauberiana, cada plano-sequência compõe um todo significativo, cumprindo um papel análogo ao de uma xilogravura em um folheto de cordel, se tornando um só elemento. Isso fica bem mais evidente em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), ponto de convergência das principais influências de Glauber Rocha: John Ford, Pasolini, a montagem de Godard, o ”Ciclo do cangaço” de José Lins do Rego, isto é, o díptico Pedra Bonita e Cangaceiros, Guimarães Rosa e o romanceiro popular nordestino.

Todo o episódio de Corisco (Othon Bastos) foi tirado de 4 ou 5 romances populares, e a sequência da morte de Corisco segue a decupagem de uma canção popular.” (RCN, p. 81)

Deus e o Diabo na Terra do Sol é a balada de um Diabo Louro, “o diabo na rua no meio do redemoinho” (expressão encontrada de fio a pavio em Grande Sertão: Veredas), possuído pelo espírito de Lampião que, para além de anjo exterminador a vingar o massacre da grota do Angico, é um avatar de Sigurd / São Jorge contra um mal primevo, o Dragão do mitema proto-indo-europeu. A perspectiva sebastianista é representada pelo beato Sebastião, que vaticina uma chuva de ouro do sol e o dia em que “o sertão vai virá mar e o mar vai virá sertão”. Sebastião é a síntese entre Antônio Conselheiro e Zé Lourenço, líder do Sítio Caldeirão, de propriedade do Padim Ciço. Assim, o par Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe é antinômico. A República de Eldorado ilustra o que existe de mais grotesco e putrefato na América Latina, sua esquerda é burocrática e vacilante; os valores de Monte Santo vêm do alto e estão orientados para cima.

No que concerne às personagens, Deus e o Diabo na Terra do Sol, confrontado com Terra em Transe, representa uma antítese.

A Idade da Terra: Síntese
Glauber Rocha serve-se da montagem godardiana, meio free jazz, para romper com a temporalidade fundamental da sociedade liberal, o tempo linear – “só o real é eterno”. Defeitos técnicos como vazamento de luz; imagens fora de foco; câmera tremida; o Glauber-Demiurgo mandando Danuza Leão falar mais alto, mandando ela, Geraldo Del Rey e Maurício do Valle se deitarem; bastidores de gravação e até o registro de Maurício do Valle se recuperando de um acidente verdadeiro são incluídos no filme como forma de exacerbar o amálgama entre cinema e vida. Afinal, a Revolução Brasileira é a Revolução do Cinema Novo. Essa montagem caótica é a repetição do ritual cosmogônico em que o Caos é transformado em Cosmos, a repetição da desforra dos Deuses, quer dizer, um Cristo-pescador (Jece Valadão), um Cristo-negro (Antonio Pitanga), um Cristo-Dom Sebastião (Tarcísio Meira) e um Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião (Geraldo Del Rey), contra o arquidemônio, o Dragão primordial personificado em John Brahms (Maurício do Valle), ressuscitando o Cristo do terceiro mundo, gestando uma nova civilização, uma transposição fílmica da ideia de Povo Novo, de Darcy Ribeiro, síntese buscada pelo nosso mais célebre cineasta. A Idade da Terra é missa e desfile de escola de samba a um tempo, conduzido por um cantador de feira, poeta – em 1978, Glauber publicou o livro Riverão Sussuarana, nome nascido de um “saque poético” que ele tivera lendo um livro de Joyce que começa e conclui com a palavra riverun, rio corrente, sendo Sussuarana uma alusão ao jagunço nordestino, rimando com Riobaldo Tatarana, herói de Grande Sertão: Veredas.

A Idade da Terra é, pois, um “poema-épico” que assume um “tom profético”, escatológico:

A sociedade começou na Grécia e terminou nos Estados Unidos.”

Como disse Shelley, os poetas são “hierofantes”, os “legisladores não-reconhecidos do mundo”. Pensemos também nos sonhos de Swedenborg, em Blake, em Rimbaud e na Tentanda Via do poeta e socialista proudhoniano Antero de Quental:

Vós, que ledes na noite… vós, profetas…
Que sois os loucos… porque andais na frente…
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé – ó vós, poetas!”

Glauber era da linhagem desses visionários.

Conclusão: o sujeito da RCN
A obra de Glauber Rocha é caracterizada por uma revolta política, intelectual e mística contra a hegemonia liberal ocidental que se situa à margem das categorias da segunda e terceira teorias políticas (marxismo e nacionalismo/fascismo), ainda que absorva significativos elementos de tais cosmovisões, levando em conta a essência, a verdade brasileira. Várias declarações do cineasta validam essa proposição: ele propôs que os militares assumissem o processo revolucionário e qualificou Golbery de gênio: “o mais alto pensar da raça ao lado do professor Darcy”.

Para ele, a contradição fundamental do final do século XX não reside na bipolaridade entre EUA e URSS:

No final do século XX, a situação é a seguinte: existem os países capitalistas ricos e os países capitalistas pobres; existem os países socialistas ricos e os países socialistas pobres. Na verdade, o que existe é o mundo rico e o mundo pobre.”

O misticismo em sua obra incomodava setores da esquerda democrática. O crítico do France Soir se escandalizou com a revolta mística em Deus e o Diabo:

Eu me pergunto o que quis mostrar ou provar o diretor Glauber Rocha. Da minha parte, só uma lição, a saber, os camponeses brasileiros são infelizes, brutos, supersticiosos e sanguinários. Se essa gente um dia tomar o poder, vai ser o diabo.”

O movimento operário enquanto agente revolucionário não tem relevância em seus filmes. Em Terra em Transe, o poeta Paulo Martins e o populista Felipe Vieira são operários? Camponeses insurgentes, sambistas, pescadores, feirantes, macumbeiros, místicos à Antônio Conselheiro, ou seja, o Povo, análogo ao russo Narod e ao Volk alemão – não confundir com “população”, a massa amorfa, inorgânica, a soma de átomos isolados que caracteriza a sociedade liberal – é o sujeito da Revolução do Cinema Novo, coincidindo com nosso ideário.

No artigo Experiência “Barravento”: Confissão sem Moldura, Glauber Rocha afirma que o carnaval e o futebol são “duas manifestações perigosas para os industriais da fome. Porque a mesma fúria pode explodir nas praças. E, sem dúvida, marchamos para essa festa”.
A abertura de A idade da Terra mostra um plano geral do alvorecer sobre o planalto de Brasília, evocando a chuva de ouro do sol predita pelo beato Sebastião. Acredito no cumprimento desses augúrios, baseados no “pássaro da eternidade”. A Marcha sobre Brasília terá as cores vibrantes das torcidas organizadas e das escolas de samba.

Referências: 

Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro, Alhambra / Embrafilme, 1981.

Glauber por Glauber: mostra da obra completa de Glauber Rocha como ele a desejou / [apresentação Paulo Emílio Salles Gomes].

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Ewerton Alípio
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