Maradona: O Frágil Deus do Sul Global

A morte de Diego Armando Maradona possui relevância não apenas no mundo desportivo, onde ele foi um gênio, um artista comparado pelos italianos a Caravaggio. Como porta-voz do anti-imperialismo latino-americano, seu falecimento também possui importância para todos aqueles que, como ele, amavam o continente ibero-americano e queriam vê-lo livre.

Sua vida foi uma ópera pop planetária em exibição durante anos. Da Somália a Bangladesh, todos estão familiarizados com os contornos básicos de sua história – o pibe de Villa Fiorito, um subúrbio pobre de Buenos Aires (“Eu sou um morador de favela”), que elevou o futebol ao status de pura arte.

Ser o rei do campo é uma coisa. Jogar no campo global sem parar é um jogo completamente diferente. As multidões instintivamente apreenderam o que ele era – como se estivesse sempre emitindo um zumbido mágico em uma freqüência maior, além do Império dos Sentidos.

Os italianos, que sabem uma ou duas coisas sobre o gênio estético, o comparariam a Caravaggio: uma divindade pagã selvagem, humana – demasiado humana – que habita em luz e sombras, alcançando altos e baixos vertiginosos, como praticamente toda sua vida se desenrolou diante do público: o balé vertiginoso de todos os demônios interiores explodindo, escândalos familiares, divórcios, rios de álcool, doping, evadindo as autoridades fiscais, Himalaias de pó colombiano, incontáveis intimações da morte em meio a uma alegria perpétua.

Ele personificou o crossover ininterrupto das alturas olímpicas com A Trágica Farsa: um festival de dribles, de contradições selvagens, além do bem e do mal. Para pedir emprestado, lateralmente, de T.S. Eliot, ele era como um rio, “um forte deus marrom – amuado, indomado e intratável”.

O falecido e grande Eduardo Galeano o retratou como uma divindade pagã, assim como um de nós: “arrogante, mulherengo, fraco…. Somos todos assim!” El Pibe foi o derradeiro deus sujo – “um pecador, irresponsável, presunçoso, um bêbado”. Ele nunca poderia “voltar à multidão anônima de onde ele veio”.

Ele pode ter hipnotizado o mundo com a camisa celeste argentina, mas sua obra-prima, sem dúvida, foi realizada em tempo real no Napoli FC – o clube por excelência da classe trabalhadora italiana. Instintivamente, mais uma vez, ele se alinhou com os mais desfavorecidos, os desprezados, o banquete dos mendigos, e como um Davi natural, matou os Golias do norte – Juventus, Milan, Inter.

Ele nunca deixou de se ver como um garoto do bairro. E isso forjou sua política – seu instinto sempre apontando para a justiça. Ele sempre esteve no lado progressista da história – uma tatuagem de Che no braço direito, uma tatuagem de Fidel na perna esquerda.

El Comandante Fidel era como um pai substituto. (Outra insinuação dos céus: Eles morreram na mesma data, com quatro anos de diferença). Ele abraçou Hugo Chávez, Evo Morales e Lula. E ele se considerava “um palestino”. Anti-Império – até o fim.

Por justiça poética, a Mão de Deus teve que estar entrelaçada, na mesma partida, com o gol mais espetacular da história. “De que planeta você é?” gritou o lendário narrador uruguaio em uma estação de rádio argentina. O próprio deus sujo reconheceu mais tarde que aqueles foram um contragolpe em um-dois contra os britânicos pelas Malvinas.

Em “10,6 Segundos“, no fatídico 22 de junho de 1986, no Estádio Asteca no México, o escritor argentino Hernan Casciari se engajou em nada menos que uma surpreendente atualização de “El Aleph”, por aquele Buda de terno cinza Jorge Luis Borges. Isso grava a lenda em pedra – ecoando na eternidade:

“O jogador sabia que tinha dado quarenta e quatro passos e doze toques de bola, todos com seu pé esquerdo. Ele sabe que a jogada durará 10,6 segundos. Então, ele pensa que é hora de dizer ao mundo inteiro quem ele é, quem ele foi e quem ele será até o fim dos tempos”.

Fonte: Asia Times

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Pepe Escobar

Analista geopolítico independente, colunista para o The Cradle e editor do Asia Times.

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