Considerações sobre o fim da Arte

“O Senhor da corte de Tillai realiza uma dança mística;

O que é isso, meu querido?”.

Tiruvâçagam, XII, 14.

 

Em cultos religiosos e esotéricos, os indianos prestam reverência à figura de Shiva, divindade multifacetada e complexa. Segundo as escrituras hindus, uma das formas de Shiva é Nataraj, o rei dos dançarinos que destrói e constrói o universo através de sua dança.

Já no Ocidente, onde a crença nas deidades de renovação cósmica está adormecida, o decadentismo vinga como um dos mais vigorosos ramos intelectuais e é ele quem deseja explicar, por suas próprias vias, o fenômeno da destruição contínua. Desde a crítica de Splenger, e da Escola de Frankfurt, ao mundo moderno, passando pelas revoluções do ofício filosófico e da ciência, testemunhamos um tempo que parece estar achegando rente a um período de grande transformação ou, o que vem a ser o mesmo, a uma catástrofe.

Para usar uma expressão do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, estamos em uma condição limite: a morte de Deus foi seguida pela morte do homem e agora vivenciamos a última das distopias: a morte do mundo (o que ainda não sabemos é se as cores que se anunciam no horizonte são as da trovoada que a tudo irá devassar ou as matizes da nova aurora).

Tal como aconteceu no período da peste negra,  que vitimou milhões, e no século moscado de Nostradamus, hoje vemos insurgirem as proféticas Cassandras — quase sempre estigmatizadas, aliás, com o mesmo diadema de loucura da figura mitológica — que avisam sobre um processo decadente que atravessa a cultura, a religião e a arte.

É nesse quadro outonal e crepuscular que desponta a questão, outrora leviana e irrelevante, do papel da arte. O dramaturgo e poeta francês Antonin Artaud, costumava dizer que o próprio ato de julgar o lugar e o papel da arte, ou mesmo da cultura, é um sinal indelével da decadência. Para ele, ali onde podemos pensar a figuração como mera representação, o conteúdo como simulacro, ali, enfim, onde podemos deitar os olhos cinicamente para enxergar valores e discurso, não há mais arte ou cultura no sentido forte.

O anúncio do “fim da arte”, em termos rigorosos, é de autoria do filósofo e crítico de arte Arthur Danto. Em sua obra escrita, ele afirma que a arte não poderá mais ser pensada em seu sentido histórico e que tudo aquilo que ontem foi parâmetro, medida e justeza, amanhã não passará de vácuo. Segundo Danto: “Uma história havia acabado. Não era meu ponto de vista que não haveria mais arte, o que certamente significa “morte”, mas o de que, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o benefício da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a próxima etapa apropriada da história. O que havia chegado ao fim era a narrativa e não o tema da narrativa.”

Apesar de afirmação incisiva sobre o curso da narrativa artista, o próprio filósofo parece padecer do mal dos relativistas e ter receio de cunhar um parâmetro decisivo sobre o que é boa arte: diz não gostar de Francis Bacon, por medo de ser manipulado, tem um pouco de ojeriza ao “estilo tóxico” dos escritores pós-modernistas, mas acha que Jeff Koons deve ser estudado por ser um artista difícil…

Noves fora as contradições de Danto, o que parece bastante evidente é que o “fim da arte” é uma extensão da crise iniciada com Duchamp: a arte é utilidade, espírito lúdico ou questionamento total? É preciso acabar com o culto ao deleite estético? O que é, de fato, um objeto artístico? Todavia não haja consenso sobre o sentido último da ‘Fonte’, ou ‘Urinol’, a peça segue como um dos monólitos centrais na cartografia do niilismo.

Em seu aspecto mágico, ressaltado por muitos povos antigos, a arte foi substituída por outras formas tantas de mediação com a realidade: surge a inovação digital como deus ex machina, “tecnologia enquanto magia” para usar a expressão de Richard Stivers, e como forma unívoca de reencantamento do mundo.

A preocupação com a decadência da arte, no entanto, parece comportar uma dose irrefletida de etnocentrismo. Seria lícito perguntar aos etnólogos se a arte corporal Xavante, o saber que “encontra os músculos” ou o Teatro de Bali, modelo de excelência artística de Artaud, estão passando pelos mesmos processos decadentistas ou se nossa crise é apenas um delírio intelectual, uma formulação dos culturati para  tentar salvar o mercado da ‘palavra pintada’.

Se a crise da arte é metafísica, como querem alguns importantes pensadores, será essa a última e fulminante Dança de Shiva? Com as lanças do crepúsculo apontadas para o-que-virá, aguardamos, entusiasmados espectadores, a resposta redentora.

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