Stanley Kubrick: o Cinema da Perplexidade

De todos os grandes artistas da história da Sétima Arte, Kubrick talvez seja o mais imprevisível, um cineasta que procede por rupturas, em uma série de filmes que possivelmente possuem em comum apenas uma profunda inquietação moral.

De todos os grandes artistas da história da Sétima Arte, Kubrick talvez seja, de um ponto de vista formal, o mais imprevisível. É possível identificarmos claramente um estilo singular, uma sintaxe marcante em cineastas como, por exemplo, Godard, Dreyer, Resnais, Antonioni, Murnau ou Eisenstein. São autores que possuem uma assinatura formal característica , uma estilística que, de certo modo, enfeixa seus trabalhos num Opus coerente. Kubrick, ao contrário, é um cineasta que procede por rupturas, em uma série de filmes que possivelmente possuem em comum apenas uma profunda inquietação moral. Diríamos portanto que a assinatura de Kubrick não é formal, mas filosófica. É um cinema da crise, da desmesura e da desordem de universos em colapso; e de homens que, de algum modo, tentam encontrar um sentido, um objetivo nos meandros desse caos. O coronel Dax (Kirk Douglas em Paths of Glory – 1957), o delinqüente Alex (Malcom McDowell em A Clockwork Orange – 1971) ou o astronauta David Bowman (Keir Dullea em 2001: A Space Odyssey – 1968) são homens que procuram respostas numa realidade cada vez mais ameaçadora, brutal e incompreensível. Os filmes de Kubrick, através das mais diversas e surpreendentes reviravoltas estilísticas, falam da perplexidade da pessoa frente a desumanização e alienação da sociedade contemporânea, diante do que não pode dominar ou compreender. É a angústia, a impotência perante o inconcebível. Nesse sentido, Full Metal Jacket (1987), sua penúltima fita, é uma das mais significativas e profundas de sua obra.

Trata-se de um filme dividido em 2 partes simétricas e complementares. Na primeira metade o cenário é o campo de treinamento militar de Parris Island, na Carolina do Sul, onde se preparam soldados para a Guerra do Vietnã. Do grupo de jovens recém-chegados, dois se destacam no enfoque de Kubrick: o tolo, delicado e algo ingênuo recruta “Gomer” Pyle (Vince D’Onofrio) e o irônico recruta “Joker” (Matthew Modine). A figura dominante, contudo, é o vulcânico sargento-instrutor Hartman (maravilhosamente interpretado por Lee Ermey). Hartman arrasta seus comandados para uma ritualização histriônica e absurda da dinâmica da guerra, num teatro de sombras onde a desrazão estabelece seu aterrorizante primado. A maneira como Kubrick registra esse peculiar treinamento tem algo do perturbador, ainda que hilariante, terrorismo cinético dos melhores desenhos animados de Tex Avery. O sargento é um cartoon ambulante, um chapeleiro-louco cheio de humor negro e sarcasmo ácido, que nos atrai e repele ao mesmo tempo.

O distanciamento crescente de Joker permite que ele suporte incólume a tirania delirante do sargento Hartman; o mesmo, entretanto, não acontece com o infantil recruta Pyle: transformado, em virtude de sua fragilidade, num alvo preferencial para o instrutor, Pyle vai se tornando gradativamente uma bomba-relógio carregada de ódio, paranoia e ressentimento. Na madrugada que precede o embarque para o Vietnã, o dócil adolescente convertido em insana máquina assassina devolve ao Sistema, com doses redobradas de destruição, tudo o que lhe foi oferecido como caminho de “retidão”.

Nesse momento, Kubrick nos conduz para a segunda metade do filme. Estamos agora em pleno teatro de operações no Vietnã, às vésperas da ofensiva do Tet. A encenação guerreira que o sargento havia apresentado a seus pupilos falha miseravelmente: a realidade é muito mais cruel e desumana que a pantomima caricatural de Hartman. Nada do que foi representado corresponde ao que efetivamente existe. O que se verifica é a perplexidade e o terror de homens despreparados, que não chegam jamais a compreender a estatura do que os envolve. Joker tenta inicialmente conservar seu distanciamento irônico como uma muralha invisível entre ele e o caos, mas acaba por perceber que seu auto-condicionamento não é mais possível. Era viável contrapor uma ilusão (Hartman e seu treinamento) a outra ilusão (um pretenso distanciamento), mas diante de um contexto onde todas as estruturas de referência são subvertidas, onde todas as certezas se desmancham no inefável, a dialética de Joker perde seus efeitos.

E é tão somente no final do filme que a realidade se mostra para Joker em toda a sua magnitude e inexorabilidade. Ele e seu pelotão recebem a missão de tomar uma posição vietcong, um conjunto de prédios em ruínas onde o inimigo ainda resiste. Um a um, os soldados que tentam avançar pelo pátio interno da edificação são metralhados e mortos. Os disparos parecem vir de todos os lados, e a desordem se instala entre o desarvorado pelotão. Depois de uma desesperada batalha, entretanto, o inimigo é silenciado. Os soldados remanescentes entram no prédio principal, e percorrem seus desolados e arruinados salões e corredores. Finalmente, acabam por encontrar, num dos aposentos, o terrível inimigo: uma esquálida e agonizante adolescente de não mais de 15 anos. A princípio, tentam fazer piada da situação, mas logo um silêncio espectral se impõe. A jovem combatente, com suas vísceras dilaceradas por estilhaços, ainda encontra forças para amaldiçoar seus algozes. O que fazer agora diante do pesadelo real, diante do verdadeiro Heart of Darkness, como enfrentar o incomensurável? Os soldados hesitam, impotentes. E é, por fim, do sarcástico recruta Joker, do distanciado e ausente Joker, que parte o tiro de misericórdia, em seu primeiro e único envolvimento com o Real em todo o filme.

A lição ministrada de modo magnífico por Kubrick assim se encerra. Saindo do edifício, os soldados caminham pela noite ao som de fragores distantes e de uma inocente música do Clube do Mickey. E nessa peregrinação através das brumas indistintas da perplexidade humana, talvez todos eles, e sobretudo Joker, estejam refletindo sobre a precariedade de nossa condição, sobre a ausência de respostas fáceis frente aos desígnios impenetráveis da existência, e também, num eco das meditações metafísicas do capitão Ahab de Moby Dick, sob o Mal intangível que há por trás da Máscara…

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Alfredo R.R. de Souza
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