De Sin Ch’aeho à Menina das Flores: cinema e ideário nacional na Coreia do Norte

O texto abaixo é uma redução de “O Pranto da Raça: corpo e ideário nacional na iconografia da Coreia do Norte”, artigo final para a disciplina Pessoa e Corporalidade, ofertada no Departamento de Antropologia da UFPR e ministrada em 2017 pela professora Laura Pérez Gil.

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A armadilha que se impõe de imediato quando se quer falar de arte norte-coreana reside no problema seguinte: onde termina o coreano e começa o norte-coreano? Publica-se livros e mais livros sobre a arte coreana. Já estética ou “arte” norte-coreana é algo que raramente se fantasia, no entendimento comum, sem o acréscimo do complemento arte “sob controle” (David-West, 2013).

Se o coreano segue sua marcha cultural indomada, guiando organicamente a trilha histórica de sua língua e de seus costumes, o norte– coreano parece etimologicamente condenado a carregar a marca impregnada da ruptura, cicatriz da irrupção violenta do Estado totalitário. Se o coreano se encontra e se realiza nas incontáveis dimensões da experiência humana, a adição da partícula “norte-” o reduz à da sujeição política. De certo modo, o coreano “do norte” parece pressupor o Estado como um cão “doméstico” pressupõe o dono.

Seria, no entanto, inconcebível uma gestação genuína de coreanidade sob as rédeas do Estado total? Ao que tudo o que segue indica, adianto que sim: também aos norte-coreanos é permitido portar cultura.

Embora seja rara a assunção explícita de precedentes ou fontes alternativas de inspiração para a filosofia nacional kimilsungista da Coreia Popular, para Robinson (1984) o núcleo dos princípios do juche já se encontrava enunciado na obra de Sin Ch’aeho (1880-1936), anarquista, historiador nacionalista e hoje figura cara aos coreanos de ambos os lados da linha de demarcação (Ibid.). Seu martírio na mão dos japoneses em 1936 teria selado sua santificação como um símbolo de inabalável força patriótica para os coreanos modernos (Ibid.). A própria vida do ativista apresenta de forma trágica um dilema pendular que opõe chuch’esŏng (espírito de autonomia) a sadaejuŭi, oposição perene na história da Coreia (Jager, 1996, p. 5).

Sadaejuŭi é o termo pejorativo cunhado pela historiografia étnico-nacionalista coreana (e em especial Sin Ch’aeho, seu fundador) para se referir à doutrina confucionista do sadae, i.e. “Servir aos Grandes” ou “Amar e Admirar os Grandes e Poderosos”. O sadae, a título de exemplo, foi o princípio que guiou a política oficial de submissão da Coreia sob a dinastia Yi com relação à China (Jager, 1996). Sin tentou enterrar a historiografia confucionista predominante em seu tempo, que julgava impregnada de sadaejuŭi (Robinson, 1984); para ele, a inserção da história do povo coreano numa armação de moralidade confucionista se igualava a uma negação de suas origens, enfuriando-o em especial o dano psicológico irreparável causado pela exposição contínua do povo a uma mentalidade de subserviência (Ibid., p. 129).

Lançou as bases, em contrapartida, para uma história nacional da Coreia que, fundamentada na ideia juche, unia um darwinismo social spenceriano a uma obliteração da influência histórica chinesa, fincada no resgate de mitologia coreana pré-moderna e de um novo elenco de heróis arquetípicos de minjok, a nação étnico-racial coreana (Ibid.). Isto é, “onde a historiografia confucionista aderia a normas universais definidas pela civilização chinesa, Sin buscava evidência da autonomia e singularidade coreanas” (Ibid., p. 131).

Assim, se em Sin Ch’aeho, o juche certamente remete à “autoconfiança” ou “autossuficiência” em matéria de política, economia, defesa ou ideologia, tais âmbitos não esgotam o alcance semântico da palavra (Jager, 1996). Num plano subcutâneo, o juche conota antes um “modo coreano de ser” nos moldes do kokutai (国体, lit. “corpo nacional”) japonês (Ibid.).

Mas qual seria a forma dessa nação corporificada?

A metáfora “mulheres-como-corpo-nação” [women-as-nation-body], como indica Jager (1996), foi central na busca pelo âmago imutável da identidade coreana em toda uma escola de historiadores nacionalistas sul-coreanos (chuch’eron, lit. “doutrina de autossuficiência”) fundada a partir de Sin Ch’aeho e simpática às ideias do regime do norte (Ibid.).

Presença ubíqua nos contos de moralidade confucionista, poemas de amor e literatura instrutiva da Coreia (Jager, 1996), a fiel e impenetrável figura da “mulher solitária e angustiada, indevidamente separada da família e amigos” (Ibid., p. 4), da qual a protagonista do filme norte-coreano A Menina das Flores é exemplo, não raro serviu de substância a uma “política do sexo” que associa estreitamente a preservação da independência nacional (juche) à proteção da virtude feminina. O conto de Ch’unhyang, a mais famosa história de amor da Coreia (Ibid.) e não por acaso objeto de produções cinematográficas nas Coreias do Sul (Chunhyang, 2000) e do Norte (The Tale of Ch’unhyang, 1980), apresenta quiçá o espécime mais bem amarrado do perfil:

[…] a trama se inicia quando o filho de uma família abastada e a filha de uma kisaeng (mulher de entretenimento) se encontram e se apaixonam à primeira vista. Logo após o início de seu romance, o amante de Ch’unhyang, Yi Mong-nyong, é requisitado na capital. Pouco depois de sua partida, um perverso governador de província, encantado com a beleza de Ch’unhyang, requere seus serviços. Quando recusa suas investidas, ela é enviada para a prisão, onde enfrenta espancamentos e outras impiedosas atrocidades com tremenda fortaleza moral. Finalmente, seu amado retorna, resgata-a, pune o mau governador, e vivem felizes para sempre. (Jager, 1996, p. 11)

Inviolável, Ch’unhyang está para os avanços do governante assim como a Coreia livre sonhada pela escola chuch’eron está para o domínio estrangeiro – seja da China, do Japão ou do imperialismo americano. A forma perene com que Ch’unhyang se agarra à esperança do retorno de seu amor remeteria, similarmente, à agitação subterrânea de uma Coreia dilacerada pós-1945 ansiando pelo reencontro do cerne de sua realização nacional através da reunificação (Ibid.). É sintomático que, recentemente, o costume historiográfico de personificar a nação transpareça também na alusão frequente à reunificação das Coreias como o reencontro de um casal apaixonado (Ibid.).

O filme norte-coreano A menina das flores (1972) [The Flower Girl] é uma adaptação para o cinema da peça teatral revolucionária homônima cuja autoria se atribui oficialmente a Kim Il-sung. A história se passa nos sofridos anos 1930 da Coreia sob ocupação japonesa: Kotpun, uma bela jovem interpretada pela ainda adolescente Hong Myŏng-hŭi, vive uma dura vida numa pobre vila camponesa confinada aos domínios de um impiedoso e avarento senhor de terras. Vai à cidade diariamente para vender as flores que colhe ao pé da montanha, na esperança de angariar dinheiro para o remédio necessário à sua mãe doente.

Em decorrência de um episódio de perversidade grotesca do patrão, a pequena Sun-hui, sua irmã mais nova, perde a visão. O irmão mais velho, Chol Ryong, está preso; o pai, morto. A protagonista passa então a ser vitimada por toda sorte de tragédia familiar. Passa fome, falha em evitar a morte da mãe, e, saindo em busca do irmão, descobre pelas autoridades japonesas que esse também já não vive. Abandonada e aos prantos, retorna para surpreender-se com sua vila em luto, chorando o suspeito desaparecimento da caçula.

Resumo da ópera: o crescente sofrimento proporciona um acúmulo contínuo de tensão que encontra alívio apenas com o retorno catártico de Chol Ryong, que, acompanhado de Sun-hui, mais do que vivo, se revela ainda um soldado do nascente Exército Revolucionário Coreano de Kim Il-sung, pronto a proferir inflamados discursos anti-exploração e instigar uma revolta popular contra a casa patronal. O filme termina com o reencontro caloroso dos três irmãos, enquanto paira sobre os cadáveres senhoriais ainda quentes a esperança de um futuro digno para o coreano comum.

A miséria trabalhada no filme opera como retrato do estágio originário disforme, anterior ao tempo em que o Líder Kim Il-sung viria “libertar a raça” (Myers, 2010) e dar a ela poder cognitivo para a apreensão da beleza que há “no homem, na sociedade e na natureza” (David-West, 2013). Kotpun notavelmente se agarra à certeza de que seu sofrimento não terá sido em vão. No seguinte diálogo (tradução livre de legenda em língua inglesa) entre ela e sua mãe doente, beira ao impossível não notar a semelhança à espera por um redentor:

— “Mãe, o que é um homem nobre?”
— “Porque a pergunta assim, de repente?”
— “Por favor.”
— “Dizem que um homem nobre ajuda os pobres como nós para fazê-los ricos. Se ao menos tal homem aparecesse para ajudá-la, como num conto de fadas… eu poderia morrer em paz.
— “Iremos conhecê-lo, ouvi dizer.

O prenúncio que encerra o trecho acima torna evidente que a morte da mãe não representa, na história, mera casualidade nem tampouco um furo de script. Ela desempenha aqui duas funções primordiais. A primeira delas é a de produzir um mártir nas mãos do “estrangeiro masculino”, uma vez que a culpa de seu adoecimento em primeiro lugar é do senhor de terras por avareza e omissão – o representante direto do pacto com o poder colonial japonês. Quanto à segunda: bem, se há uma razão para, ao final do filme, a mãe não “retornar à vida” como os dois irmãos também anteriormente julgados mortos, é porque sua morte quiçá produza uma ausência necessária para permitir a emergência de um novo seio acolhedor. Em outras palavras, não poderia haver deixa mais apropriada para a ascensão de um estadista maternal que uma raça criança orfanada e em prantos. Ao fundo, no momento contiguamente posterior ao evento traumático, ecoam os versos da canção:

“Vasto é o mundo,
mas as pobres garotas não têm para onde ir.
Não há nenhum seio para abraçá-las.”

Isto posto, cumpre apontar que a delicada Kotpun, incondicionalmente devota à mãe – e, para todos os efeitos, órfã de pai – encarna todo o “importante papel socio- simbólico das mulheres nessa história romântica de redenção e esforço nacional” (Jager, 1996, p. 8). Sem que o roteiro inclua a menção a um episódio de romance sequer – o que, como as flores que carrega, só faz acentuar sua pureza virginal –, a protagonista, tal qual Ch’unhyang, heroína dos velhos contos confucionistas sobre a virtude feminina (Ibid.), incorpora o arquétipo da coreana fiel que, sem jamais abandonar sua pureza e inocência típicas da raça, se agarra com firmeza a seus inabaláveis princípios.

A inquietação que mais assombrava a mãe em relação à filha em toda a narrativa se expressa na seguinte fala: “prefiro morrer a mantê-la em servidão”. Não por acaso, esquivando-se a um só tempo de se dobrar à via fácil dos prostíbulos ou de se sujeitar a um destino mendicante por dinheiro, até mesmo pelas mais nobres causas, Kotpun é um ícone étnico (Myers, 2010) que não se permite violar; uma fortaleza juche que não cede espaço a sadaejuŭi.

Ao final, não obstante as lágrimas derramadas sobre os incontáveis percalços, a mensagem que levamos é a de que, sempre exalando coreanidade, Kotpun persiste até a ensolarada última cena como nada mais que a simples “menina das flores” – flores que, aliás, encerram a película mais vermelhas do que nunca ante o fulgurante som de um coro que canta:

 

“Feroz é a geada, e cortante o vento,
Mas as flores desabrocham na primavera.
Ante o brilho forte do sol benevolente,
Desabrocham as flores vermelhas da revolução!”

BIBLIOGRAFIA

DAVID-WEST, A. (2013) North Korean aesthetic theory: aesthetics, beauty, and “man”. The Journal of Aesthetic Education, Vol. 47, No. 1, p. 104-110. University of Illinois Press.

JAGER, S. M. (1996) Women, Resistance and the Divided Nation: The Romantic Rhetoric of Korean Reunification. The Journal of Asian Studies, Vol. 55, No. 1, p. 3-21. Association for Asian Studies.

MYERS, B. R. (2010) The Cleanest Race: How North Koreans see themselves and Why it Matters. Melville House Publishing.

ROBINSON, M. (1984) National Identity and the Thought of Sin Ch’aeho: Sadaejuŭi and Chuch’e in History and Politics. The Journal of Korean Studies (1979-), Vol. 5, p. 121-142. University of Washington Center for Korea Studies.

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Andras Jucksch Ellendersen

Músico, aluno de graduação do curso de Ciências Sociais na UFPR (ênfase em Antropologia) e membro da NR-PR.

Artigos: 53

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