A quarentena imposta pelos governos foi encarada com estoicismo e comedimento na Ásia. No Ocidente foi todo o oposto. Selfies infinitas, aplausos nas varandas e sacadas, celebridades indo à TV para gritar sorridentes “Fique em Casa!” de dentro de mansões imensas, máscaras de todas as cores, estampas e grifes. O ocidental transformou a quarentena em um espetáculo. Indo ainda mais fundo, é necessário também analisar a tentativa de universalizar essa ética feminina e infantilizante dos cuidados exagerados e do pavor pelo risco.
Todas as noites um pouco antes das 20h, sinto como se Philippe Muray batesse à minha porta, uma cigarrilha presa entre seus dentes, com seu disfarce inimitável de misantropo frustrado e de gourmand mal-humorado. Ele me diz algumas palavras e depois volta a fazer anéis de fumaça nas nuvens. Até a noite seguinte.
– Ei Bousquet!
– O que foi?
– Não abra! Não abra a janela a boca! Cale a boca e fique calado! Shhh! Shhh! Shhh! Às 20h, é a hora de jantar deles, é o seu minuto de silêncio. Seu minuto de indecência, seu minuto de prazer. A decência pode vir a te ser oferecida como adendo. A inocência está perdida, desde sempre, a crença de Muray!
Bom homem. “Charutos, uísque e nenhum esporte!” A fórmula não funcionou tão bem para ele como funcionou para Churchill, mas ele enfrentava uma tênia muito mais temerária: a metaestupidez – Homo festivus, desnecessário dizer. Sem Muray, o Homo festivus teria sido apenas mais um idiota na longa história da idiotice. Ele o pariu do nada do qual ele procede e ao qual retornará. O casamento entre o Bem e do Nada, é ele. Os rebeldes que gemem seu desejo panúrgico de festa e purpurina, é ele. Os “amotinados de Panurgo”, ele zombou. Eles estão de volta. Em massa. Em massa mesmo.
Uma Máquina de Cliques
20 horas. A hora fatídica. Aquela em que Panurgo aparece pontificialmente em sua varanda para sua bênção quotidiana urbi et orbi, que ele dirige aos cuidadores do mundo inteiro. Espetáculo extraordinário. Tem-se a impressão de testemunhar a saída troglodita de todos os confinados do mundo, arrancados das cavernas onde vegetam. Nas ruas desertas, as fachadas estão cobertas de radiantes emoticons pendurados nas janelas, de fileiras de emoticons, toda a gama de sorrisos, dos mais tortos até os mais imbecis. #Aplausos, #TodosNasJanelas. Desde que se descobriu os hashtags, o Homo festivus se tornou uma máquina de cliques. Clicador serial, é o homem que clica mais rápido que sua sombra. Clicar dá sentido à sua vida. Em resumo, cliques e tapas.
Mas desta vez, é… como posso dizer… é apenas…
– Sim, o que é exatamente? Por favor nos diga, Festivus?
– É apenas melhor, é apenas imenso, uau, apenas, como devo dizer, apenas mais de tudo.
Os únicos eventos planetários que o Festivus conheceu até agora foram as Copas do Mundo vulgares, os Jogos Olímpicos manipulados pelo COI e por hormônios de crescimento, os concertos mais artríticos que elétricos de roqueiros vovôs sem fôlego, todos com pelo menos 350 mil km de quilometragem, agora há vírus, milhares de mortes, cidades fantasmas, toque de recolher em todos os lugares, guerra invisível. A Terra está prendendo a respiração. Basta uma cusparada! Esse é o efeito cuspe: um cuspe em Wuhan pode iniciar uma pandemia em Paris. Caralho, nem mesmo Nicolas Hulot previu isso! Vale a pena uma salva de palmas todas as noites.
Como o Festivus festivus não pode mais patinar, ele está enrolando patins em todo o mundo. Love, love, kiss. Acabou-se o Orgulho Gay, acabou-se a Techno Parade, a Noite Branca hibernou, enterrado está o Dia dos Vizinhos. Quanto à Fête de la musique, sozinha em seu sofá, não, não, é quase tão sinistra quanto um concerto de Julien Doré. Assim, às 20h, o Festivus festivus remixa tudo. Ele está tendo sua festa, o Clappind Pride. Lembre-se desse nome. Ele não vai nos deixar tão cedo. Pride – seu orgulho, o orgulho enfático do “señorito satisfecho”, o pequeno homúnculo inchado de si mesmo descrito por Ortega y Gasset, que já irrompia no ronronar de prazer de Joseph Prudhomme. Com a escrita inclusiva, Monsieur Prudhomme perdeu seu sobrenome ofensivo – ele agora é indiferentemente dama e cavalheiro. O que sobreviveu foi seu contentamento, o de todos os fariseus, os neo, os paleo, os trans, os hiperfusivos, pouco importa.
O Carnaval de Máscaras
Ainda não vimos nada. Neste momento, o Festivus festivus só aparece à janela. Ele espera até 11 de maio para colocar sua máscara. Será para ele como o grande retorno do carnaval. Máscaras para todos. Todo o mundo estará coberto por um véu, não apenas as mulheres. Finalmente paridade, máscaras unisex, véus para todos! Haverá de todas as cores, até mesmo arco-íris. A mais bela de todas será a que Anne Hidalgo fará instalar na fachada da Prefeitura de Paris: será enorme. Ainda não sabemos se vai parecer um preservativo XXL ou um plugue viral. Impossível decidir nesta fase. Será escrito em letras gigantescas arco-íris: “Cubra-se!” A cidadania do Homo festivus estará tranquilizada. Quando ele colocar sua máscara todas as manhãs, ele terá a sensação de colocar um preservativo. Mais determinado do que nunca, ele lutará contra a Covid e a AIDS. Ele vai exultar. Para trás, gestos de barreira! O distanciamento espacial não refletirá aquela filosofia bolorenta e solipsista do distanciamento social. A scooter ignora o distanciamento. Isso lhe permitirá escapar do inferno programado do transporte público, mas não do seu amor pelo gênero urbano. Ele deslizará de volta para o pavimento, a rua será dele. Ele retomará sua vida como intermitente da sociedade do espetáculo. Neste verão, ele irá para o mar, para Paris Plages, onde fará seus passeios de scooter e seus exercícios de yoga. Ele dirá a si mesmo que, sim, Bertrand Delanoë era um verdadeiro visionário que previu tudo, mesmo o confinamento de verão dos parisienses, mesmo que ninguém seja profeta em sua cidade. E ele vai aplaudi-lo.
Clap, clap, clap
Esta efusão de aplausos começou bem na Itália, onde ainda há, entre um escândalo de Silvio Berlusconi e uma piada de Beppe Grillo, a antiga sociabilidade popular, onde a comunicação se dá de uma janela para outra, de um andar para outro, de um varal a outro, onde tudo circula, até os cheiros da cozinha, tal como árias de ópera, onde as mamães dão notícias do bambino como se ele já fosse um maestro na Ópera de Nápoles ou um capitão da Squadra Azzurra, enquanto esbravejam contra a indolência de seus maridos. O falatório, a gritaria, os aplausos, tudo isso pertence por direito próprio à comensalidade sulista que transforma o bairro em um teatro de intimidade. E mesmo ocasionalmente em espaço político, em vez de ser o espaço impolítico de consentimento e contentamento, como no passado no teatro, as varandas de onde se gritava e de onde apitos eram soprados.
Mas agora temos que contar com as redes sociais, vírus no vírus, pandemia na pandemia, que se estendem por fusos horários e multiplicam a contagialidade dos aplausos. Você sabia que a curva de intensidade dos aplausos corresponde à dos vírus? Há alguns anos, pesquisadores suecos se divertiram comparando-os, e são iguais. Haveria uma fisiologia balzaquiana de aplausos para escrever. Do que ela seria a expressão? De uma autocelebração coletiva? De um pico de narcisismo mensurado com aplaudiômetro? O aplauso ganhou suas listras científicas, faz parte do arsenal da gestão positiva e da panóplia da psicologia também positiva, mesmo que não tenha nenhuma virtude performativa. Até hoje, não sabemos se eles fazem camas hospitalares, máscaras ou testes.
For me, formidable
A geração selfie aplaude não apenas para parabenizar outrem, isso seria demais, mas para se encorajar, se parabenizar, se congratular. O que a resume é a trilha sonora deste comercial de não sei qual banco: “Vocês são formidáveis, nós somos formidáveis, você é formidável”, tudo ao ritmo da canção de Aznavour “For me, formidable”. Como se a vida exigisse agora um nível de heroísmo tal que não pudesse mais ser concebido a não ser através de superlativos, de encorajamentos e de aplausos. Eles funcionam em um loop em sua iteração indefinida. As enfermeiras aplaudem os cuidadores que aplaudem os maqueiros que aplaudem os paramédicos que aplaudem os pacientes que aplaudem os cuidadores. E aqui vamos nós novamente.
É o “Valete et plaudite”, o “Comportem-se bem e aplaudam” dos espetáculos da Roma Imperial. Nem mesmo um e-mail sem um assistente de sabe-se lá quem o recoloque, no latim mais próximo, sob uma fórmula de polidez. Entramos na civilização dos aplausos, dos aplausos como esperanto do confinamento? Surpreendente pressentimento de gênio: em 1786, Goethe escreveu a Charlotte von Stein, a quem ele cortejava apaixonadamente: “Nosso mundo está se tornando um enorme hospital, cada um de nós se tornando a enfermeira do outro”. Goethe era algo diferente de Jean d’Ormesson, não?
O Trem Expresso às 6 Horas da Noite
Os sessenta-e-oitistas traçaram nos muros o seu programa, que consistia essencialmente em derrubar os muros. Um de seus slogans era “Banir os Aplausos, o Espetáculo está por toda parte”. Este foi um grave erro de cálculo. Há uma lei teatral que os autores vanguardistas do século XX, de Antonin Artaud ao Living Theatre, quiseram abolir, que é o palco, a mediação do palco, sob o pretexto de que o palco estaria em toda parte, no auditório, na rua. Mas se o palco está em toda parte, ele não está em lugar algum; e se o palco não está em lugar nenhum, é porque o obsceno, seu antônimo, está em toda parte. Esse era o risco.
Não sabemos realmente de onde surgiu este estilo “happy-clappy”, nem como ele se espalhou. Nos Estados Unidos, sem dúvida. Talvez nas aplaudidoras congregações de evangélicos e outros pentecostais. Haveria então uma espécie de inversão perniciosa da história. Esses encontros de Iluminados do Sétimo Dia não foram os focos de disseminação da Covid-19 na França e na Coréia do Sul? A proximidade é imediatamente transformada em promiscuidade. Assista aos vídeos de culto que circulam na Internet, todos eles devem ser cult. Sociologicamente, não é o metrô às 18 horas, como Malraux costumava dizer, é o trem expresso e os trens suburbanos. Qualquer que seja a idade, saltamos para Jesus, nos sacudimos para Jesus, abraçamos para Jesus. É o encontro entre Walt Disney, o Sermão da Montanha e terapia de grupo. A descida do Espírito Santo em corpos convulsionados dá lugar a efusões indescritíveis de alegria, cenas de choro torrencial, tremedeiras parkinsonianas, nem mesmo forçados, mesmo que tudo isso dê a impressão de sair de um show de Patrick Sabatier. As líderes de torcida servem como modelos neo-sulpicianos para madonnas estilizadas em janelas de plexiglass no mais puro estilo Las Vegas, bem longe do original, concordar-se-á. No meio, um pastor de bermudas. Não sabemos realmente o que ele faz na vida cotidiana: vendedor de massas ou gerente de fast-food? Um gerente de fast-food, aparentemente porque quando é hora de celebrar a Eucaristia, ele oferece pipoca aos fiéis e diz: “Este é o meu corpo”. E então Coca-Cola: “Este é o meu sangue”. Entende-se então que a batalha cultural não foi ganha, santo nome.
Por Que os Ritos?
Uma sociedade sem ritos coletivos os recria de forma espontânea, selvagem, clownesca, sempre em modo paródico ou infantil. Marchas brancas pela pedofilia, pilhas de flores pelos mortos do “povo”, as velas pelos atentados, abraços, apertos. Vamos chamar este processo de smurfização do mundo que dá origem a uma orgia planetária de fofismo e idiotismo. Desenhamos corações com grandes pinceladas de feltro fluorescente, colocamos pequenos círculos nos “i”s de Lady Diana e Michael Jackson, colamos fotos do falecido, multiplicamos os lugares da memória efêmera porque conhecemos a memória deste mundo efêmero, também sujeito à dura lei da obsolescência programada.
O apagamento dos ritos funerários marcaria o início do fim? Não começou tudo ali, quando nossos ancestrais distantes completaram o processo de hominização, criando os primeiros ritos mortuários? Foi a descoberta de seus enterros que fez os antropólogos, padres e poetas dizerem: Ecce homo, este é o homem.
Qual é a função dos ritos? Encarregar-se das emoções coletivas para inscrevê-las em uma estrutura que funciona como a catarse teatral, segundo Aristóteles. Estes dispositivos, para recorrer a uma linguagem característica da desconstrução, foram institucional e intencionalmente desmontados, sendo percebidos como muito arcaicos, muito codificados, muito asfixiantes, não “autênticos” o suficiente. Contudo, sem eles, o homem está nu diante do enigma do destino. O que resta então? Norbert Elias explicou o processo de civilização pelo trabalho dos costumes sobre si mesmos, eles se autoproduzem, se purificam sem cessar, se refinam, se complexificam. Talvez tenhamos que considerar o processo contínuo de descivilização em curso como o trabalho dos costumes contra si mesmos.
A Solicitude nos Mata
Como podemos entender todo esse pathos em torno da vulnerabilidade e esse novo imperativo de solicitude, que está no cerne da ideologia do “cuidado”? Não se trata de negar a vulnerabilidade e a solicitude, mas de nos lembrar que eles nunca foram baseados em nada sólido, duradouro ou perene. “É possível atravessar um rio em uma tora mas não em um graveto”, faz dizer Dostoievski a Stavrogin em Os Demônios. Sem isso, atolamos, e isso vale mesmo para aquele demônio principesco e rimbaudiano do Nicolai Stavrogin. Sim, o homem é vulnerável, mas ele está longe disso. A vulnerabilidade em si e por si pertence apenas à infância e à velhice – não ao homem maduro no auge da vida. Daí a necessidade de estendê-la a toda a sociedade, a menos que corramos o risco de quebrar suas costas. A vulnerabilidade não pode fornecer a estrutura para uma filosofia geral da vida. Ela deve ser deixada para Emmanuel Levinas, para Cynthia Fleury, para este humanismo mole e caramelizado que temos panteonizado. A sua filosofia é o pathos amanteiguado. Não a nossa. A menos, é claro, que comprometamos nossa civilização com o caminho sem saída de uma filosofia do burnout e de um burnout filosófico enquanto síndrome de exaustão intelectual e espiritual.
Se quisermos fazer um exame crítico, clínico até, desta empatia universal, dessas comiserações úmidas, desse aplauso incessante, dessas lágrimas, dessa responsabilidade pelos outros, devemos nos voltar para a ética da solicitude, o “care”, portanto. Poderíamos ter visto com bons olhos o aparecimento desta ética, que o feminismo americano levou à fonte batismal, pois ao estabelecer áreas reservadas para cada sexo, ele postula que existe uma essência masculina e uma essência feminina. A ética da solicitude responderia a uma legítima preocupação feminina: introduzir na filosofia moral uma visão feminina em grande parte ausente. Segue-se que a abordagem moral da mulher seria diferente da do homem, mais emocional do que racional, mais empática, mais sensível ao sofrimento e às questões de vulnerabilidade – em uma palavra, mais humana. Ela seguiria uma abordagem mais empírica do que conceitual, concreta e não abstrata, guiada por uma ética do cuidado. Por que não! Mas esta filosofia só pode ser uma condição necessária, longe, muito longe de ser suficiente, para a produção do social. Se ela alguma vez fosse generalizada, nos tornaria atores passivos de nossas vidas, potencialmente vítimas. Tal visão das coisas não pode por si só organizar o comportamento social, apenas pacificá-lo – o que já é muito – não animá-lo, estimulá-lo ou reforçá-lo.
Cuidado! Branquelo Frágil!
Chegamos a tal grau de confusão dos sexos, de distúrbios de identidade, de mistura de gêneros, que chegamos a esquecer o coração genérico, talvez até genético, da alteridade humana: o homem e a mulher. Vista a partir do guerreiro Marte, Vênus parece um exoplaneta povoado por criaturas gentis, delicadas e vagamente extraterrestres – as mulheres – que os marcianos certamente acarinham, mas que não têm nenhum desejo de se assemelhar. Eles não podem ser demandados a fazer coisas que são instintivamente repugnantes para eles. Um homem normalmente e moralmente constituído só pode sentir imenso embaraço diante da torrente de solicitude que a sociedade vitimária e pós-cristã derrama sobre ele. Isso não lhe é familiar. A solicitude de um homem é sempre embaraçada, ela não tem nele o impulso espontâneo que pode ter nas mulheres, ela é contida, desajeitada, conectada à corrente alternada, dificultada por códigos culturais se você quiser, enquanto esse impulso é mais natural nas mulheres. Tocamos mais do que abraçamos, desejamos mais do que amamos e amamos mais do que ajudamos. É assim que as coisas são.
Um homem não pode ficar satisfeito com este caramelo mole, ou então ele é um mongol como este jornalista belga celebrado pelas mídias centrais na sequência dos ataques em Bruxelas em 2016 por ter escrito que ele se recusava a “combater com qualquer outra coisa além de palavras, giz e abraços”. Pobre bastardo, você mereceu seu apelido de torta de creme e de branquelo frágil!
Não temos desejo de ser vistos como vítimas. Não há nada mais humilhante para nós. São as fórmulas de Aristóteles sobre a virilidade, sóbrias e não turbulentas, na Ética a Nicômaco, que melhor nos definem, não aquela ética desviante, invasiva, nojenta da solicitude reservada, nas próprias palavras do Estagirita, para as “mulherzinhas” e “homens que se parecem com elas”. Ainda mais poderosas são estas linhas de Balzac: “O sentimento que o homem suporta com mais dificuldade é a pena, principalmente quando ele a merece. O ódio é um tônico, traz vida, inspira vingança; mas a piedade mata, enfraquece ainda mais a nossa fraqueza. É o mal que tornado obsequioso, é o desprezo na ternura ou a ternura na ofensa”.
Uma Hipersensibilidade à Dor
Em um capítulo essencial dos Oito Pecados Mortais de nossa Civilização (1973), o grande zoólogo e Prêmio Nobel Konrad Lorenz apontou um perigo mortal, entre todos os perigos que nos ameaçam: a farmacologia moderna. Por que em particular; e por que singularmente hoje? Porque nos priva a um grau até então desconhecido da experiência da dor, um fenômeno sem precedentes na longa história da evolução. Isto foi conseguido através de um duplo movimento de prazer e desprazer. Por exemplo, era a promessa de uma recompensa (capturar presas) que levou nossos antepassados caçadores-coletores a se envolverem em longas e extenuantes caçadas, a superarem a si mesmos, a aceitarem situações onerosas que testavam sua capacidade de resistência e sua capacidade de sofrer. Eles nunca teriam concordado com estes sacrifícios se não tivessem levado a uma recompensa ou, pelo menos, a sua promessa. Para Lorenz, esta economia de prazer e desprazer é a fórmula vitoriosa da evolução. É este equilíbrio que a sociedade de consumo quebrou ao secar as fontes de desprazer. Ela desenvolveu em nós uma hipersensibilidade à dor, uma aversão ao risco, uma intolerância ao esforço prolongado. O que irá endurecer os homens se eles não estiverem mais dispostos a sacrificar qualquer coisa que interfira com seu conforto e com o desfrute imediato dos bens à sua disposição? A humilhação? Quem sabe?
Artigos Precedentes
Biopolítica do Coronavírus (I) – A Lição de Michel Foucault
Biopolítica do Coronavírus (II) – O Paciente Zero é a Globalização
Biopolítica do Coronavírus (III) – Tempo Ruim para os “Sem Fronteiras”
Biopolítica do Coronavírus (IV) – A Imunodeficiência das Elites
Biopolítica do Coronavírus (V) – O Caso Griveaux: Paris vale uma Epidemia
Biopolítica do Coronavírus (VI) – Big Pharma e Normativismo Médico
Fonte: Éléments