A Decapitação como Rito Guerreiro na Tradição Ibérica

Nos últimos dias, as almas sensíveis e especiais da burguesia boêmia liberal-libertária se espantaram e choraram a decapitação de um narcoguerrilheiro do Comando Vermelho. Não se sabe exatamente quem empreendeu a decapitação, nem as circunstâncias em que ela ocorreu.

Há quem diga que foi o BOPE, outros cogitam ter sido o próprio CV. Será muito difícil desvendar o caso porque os corpos foram amplamente modificados e manipulados pelos familiares dos mortos e pelos outros narcoguerrilheiros que permaneceram no lugar da Operação Contenção.

De todo modo, o caso não tem nada de único ou inédito. Decapitações são historicamente comuns no Brasil, e dizem respeito especificamente às nossas raízes ibéricas.

As vemos, aliás, no próprio mundo criminoso – em que imperam as leis da guerra e sua ética própria – em abundância. A decapitação em vídeo é usada por criminosos de várias facções como meio de intimidar rivais.

Outrora, porém, a polícia também já a aplicou com maior frequência, como após a batalha que liquidou Lampião e seus cangaceiros, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. As cabeças dos bandoleiros foram exibidas perante o público espantado, como troféus de guerra.

Também na Revolução Federalista, no final do século XIX, também conhecida como “Guerra da Degola”, ocasionalmente não apenas se degolava, como também se decapitava o adversário, como eventualmente acabou ocorrendo com o próprio líder revolucionário Gumercindo Saraiva, cuja cabeça foi levada como troféu para Júlio de Castilhos.

No período colonial, porém, a decapitação ocorria apenas nos casos de crime de lesa-majestade, em que o corpo inteiro era despedaçado e a cabeça especificamente era levada a um centro urbano importante para exibição.

As raízes da decapitação como práxis guerreira, porém, atravessam o Atlântico de volta à Península Ibérica, onde encontramos, por exemplo, figuras como a do herói português Geraldo Sem Pavor, que conduziu uma guerra de guerrilha contra os mouros, na qual comumente decapitava seus inimigos.

Mas onde encontramos verdadeiramente uma “cultura da decapitação” é na Ibéria da Idade do Ferro. Os povos celtibéricos e ibéricos, dos lusitanos e galegos aos ilercavones, passando por cantábrios e túrdulos, tinham a “cabeça do inimigo” como principal troféu de guerra.

Um guerreiro ibérico antigo em expedição só estava satisfeito quando conseguia levar para casa 1 ou 2 cabeças, para servirem como pendão de sua bravura. Os guerreiros muitas vezes os traziam espetados em lanças, e faziam uma procissão de cabeças quando de volta ao lar.

Ocasionalmente, levavam também as mãos dos inimigos, mas o troféu preferido sempre foi a cabeça. Essas cabeças eram, usualmente, transpassadas por um grande prego e fixadas no portal de entrada da casa, de modo que a casa de um guerreiro era, necessariamente, adornada com as cabeças dos inimigos derrotados. Uma casa sem cabeças ou crânios era uma casa incompleta, provavelmente habitada por um covarde ou por uma família privada de um guerreiro.

A Coluna de Trajano, monumento às vitórias do imperador romano em questão, retrata incontáveis legionários. E entre eles é possível encontrar um legionário segurando uma cabeça decapitada pelos cabelos com os dentes. É legítimo especular que se trata de um ibérico romanizado que participou nas guerras de Trajano. Poucos outros povos súditos de Roma tinham como costume guerreiro algo tão específico.

Mas numa dimensão ainda mais profunda, existe um fundo metafísico para o “culto à cabeça” entre os ibéricos, que de forma circular reemerge através do folclore e da cultura popular.

É que uma das descobertas arqueológicas na análise dos crânios que adornavam os lares ibéricos, é que nem todos eram de pessoas de outras tribos. Alguns dos crânios pareciam aparentados aos próprios moradores das casas.

Os crânios constituem a mais imediata representação simbólica da morte. Ao mesmo tempo, a cabeça enquanto tal sempre foi considerada por muitas culturas como a sede da memória, do intelecto, do espírito. A preservação das cabeças dos antepassados mortos, portanto, esteve ligada tanto a um culto dos ancestrais como a uma busca por vincular-se a esses antepassados e, quem sabe, absorver dele algo de sua “memória ancestral”.

A iconografia ibérica muitas vezes retrata cabeças guardadas por ursos ou leões, numa espécie de alusão a algum mistério iniciático no qual a cabeça ou crânio representa a Sabedoria a ser alcançada – caso se derrote o Guardião do mistério.

Esse culto das cabeças retorna como folclore na época das celebrações dos mortos. Já na época politeísta, crianças faziam rostos em abóboras e outras frutas e desfilavam com elas de porta em porta pelas aldeias. O costume foi absorvido e ligeiramente modificado com a cristianização, agora atrelado à Véspera de Todos os Santos.

Em outras palavras, a decapitação hoje emerge como retomada inconsciente de uma memória ancestral. Daí, aliás, a ausência de grande estranheza, por parte da maioria dos brasileiros, perante a cabeça do narcoguerrilheiro.

Ao contrário, facilmente transformamos o caso em motivo de chiste através de memes.

É que, para nós, não há nada de mais aí. Ora, é apenas uma cabeça cortada.

Raphael Machado
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 54

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