Inversão Simbólica em “Crepúsculo dos Deuses”

A subversão mundialista se oculta nos mais inocentes produtos da indústria cultural.

Vi recentemente essa animação “Crepúsculo dos Deuses” por pura curiosidade e como boa parte daquilo que é produzido pela indústria cultural hoje em dia, ele não passa de um esforço de subversão de símbolos e mitos tradicionais.

Segundo Guénon, o verdadeiro “satanismo” é identificado não por uma imagética que assusta idosas cristãs, e sim por algo muito mais objetivo: a inversão de um símbolo sagrado. Em alguma medida, isso perdura na cultura popular em certas imagens que aparecem na cultura pop. Mas uma inversão de um símbolo sagrado vai além de virar uma cruz de cabeça para baixo.

Quando se fala, por exemplo, das “missas negras” medievais, tudo nelas está estruturado para simular uma missa tradicional; mas, de alguma forma, invertendo ou pervertendo cada aspecto da missa tradicional.

O “satanismo”, portanto, não é senão uma instância específica de inversão do sagrado em geral. Mas o termo até pode ser usado para outros casos por razões de simplicidade.

No caso da religião tradicional escandinava temos um caso claro desse tipo de coisa na animação “Crepúsculo dos Deuses”, na medida em que cada aspecto da simbologia e da mitologia dos escandinavos é invertida de uma maneira bem específica.

Em primeiro lugar, a relação homem-mulher na série é deturpada. O personagem principal masculino não passa de um “zangão” da protagonista feminina, que é uma “shieldmaiden”. Agora, “shieldmaidens” até existiam entre os escandinavos, mas eram tão excepcionalmente raras que praticamente não aparecem historicamente em qualquer registro do período da expansão viking.

A personagem em questão reúne um grupo de “aventureiros” para a sua saga, onde além de reunir uma outra shieldmaiden inclui-se também um personagem construído como fruto de uma interpretação equivocada do fenômeno do seidhr. O seidhr é um daqueles aspectos da sociedade escandinava que demonstrava a sua rigidez. As práticas de adivinhação e feitiçaria que eram categorizadas em conjunto como seidhr eram um ofício exclusivamente feminino, e não era considerado respeitável que um homem se metesse com esses assuntos. Não obstante, Odin era também um praticante do seidhr, o que não raro é instrumentalizado para relativizar a rigidez dos papéis desempenhados pelos diferentes sexos entre os escandinavos, bem como para tentar vender uma noção de “fluidez de gênero” entre os escandinavos. Uma das personagens do grupo é precisamente um homem que assumiu uma identidade feminina, e que é interpretado nos termos contemporâneos da ideologia de gênero, o que não faz sentido.

Mas o elemento fundamental da subversão nessa animação – criada pelo Zack Snyder aliás – é o núcleo do enredo. A protagonista, que é meio-gigante, decide se aliar às potências materiais, ctônicas e titânicas contra os deuses, pintados como tiranos homicidas. Ela literalmente se alia aos gigantes, a Loki, a Hela, a Fenrir e a Jormungandr para destruir Asgard e os Aesir. Ela também recruta os Vanir para a sua causa contra os Aesir.

Agora bem, tanto em uma leitura evoliana quanto em uma leitura duginiana, todos sabem que os Aesir são não apenas as divindades das forças indo-europeias que migraram para a Escandinava, mas também propriamente divindades celestiais e solares. Eles representam a ordem cósmica absoluta, hierárquica, luminosa, fundamentalmente transcendente. Eles são “apolíneos” em uma análise noológica (ainda que o mito de Odin seja propriamente dionisíaco), e se lançam inicialmente contra os Vanir, divindades ctônicas, agrárias, sexuais, dos paleoeuropeus escandinavos. Os Aesir derrotam, subjugam e enquadram os Vanir em uma nova ordem cósmica, tal como os indo-europeus dominaram e subjugaram os paleoeuropeus. A trindade dumeziliana Odin/Thor/Frey representa também a maneira pela qual os indo-europeus se impuseram sobre os paleoeuropeus, assumindo o mando espiritual e militar da Escandinávia e transformando os nativos em servos dedicados à produção material.

Infinitamente mais sinistros que os Vanir, que são figuras dionisíacas ou demetéricas (Deméter é a expressão dionisíaca e positiva do cibelino) são os gigantes e outros monstros, figuras que se encontram na periferia do cosmo (segundo Snorri Sturlusson), na circunferência do firmamento. O despertar de Jormungandr, aliás, com sua cauda sendo solta representa precisamente a ruptura da barreira que separa o cosmo ordenado por Odin do Ginnungagap, o Vazio que cerca o cosmo.

O motivo aí é comum dos mitos escatológicos, nos quais Titãs, dragões, gigantes, monstros ou outras figuras que representam forças materiais vindas do submundo se lançam em uma guerra para tomar os céus de assalto e destronar a divindade.

O diferencial aí é que na narrativa da animação essas forças são categoricamente tratadas como heroicas, vítimas da “opressão” dos deuses e, portanto, legitimadas a se vingar. Aparentemente, passa batido o fato de que o triunfo das forças titânicas representa fundamentalmente a dissolução da ordem cósmica no Nada.

Diretamente ou indiretamente, é peculiar ver como a indústria cultural ocidental está sempre engajada, de alguma maneira, em atos de subversão simbólica. Imagino, aliás, que essas ideias estão tão entranhadas já que a essa altura boa parte dos artistas e intelectuais praticam subversão sem qualquer consciência do que estão fazendo.

Imagem padrão
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 41

Deixar uma resposta