Os Incêndios e a Fragmentação Narrativa da Sociedade Brasileira

Ninguém sabe a causa dos incêndios generalizados no Brasil, mas nem por isso as várias facções políticas brasileiras deixarão de palpitar, cheias de si, sobre o que está acontecendo com nosso país.

Vamos combinar: não existem elementos concretos suficientes para explicar os incêndios que assolam o Brasil. Ainda não há provas das quais específicas e objetivas e, sendo intencionais e coordenados, de quais seriam os seus objetivos.

Mas a dúvida e a paciência, que são o fundamento de toda sabedoria, não vendem jornais, não seguram audiência na TV e rendem poucos cliques nas redes sociais. De modo que não há praticamente ninguém entre mídias e influenciadores relevantes que não tenha vomitado cachoeiras de narrativas sobre os incêndios.

Essas narrativas são tão completas e tão bem amarradas, que dão até a impressão de que os seus emissores estão envolvidos, ou que eles são poderosos bruxos, videntes, paranormais; porque eles sabem os nomes dos responsáveis, as figuras poderosas que estão por trás, as intenções, etc., tudo nos mínimos detalhes. Assombroso!

Mas aí nos deparamos com o fato de que, na verdade, cada microbolha está apontando em uma direção diferente. Sempre – é claro – na direção que mais lhes convém narrativamente.

Isso, para mim, é sinal claro de que ninguém (entre jornais e palpiteiros virtuais, entre políticos e acadêmicos) faz a menor ideia do que está acontecendo no Brasil. Mas é um fenômeno, no mínimo, interessante de ver essa imensa desintegração narrativa no nosso país, diante de um fenômeno tão importante.

Me parece ser uma situação na qual os principais mitos de cada microgrupo aparece de maneira fundamentalmente clara.

Uma das primeiras narrativas que apareceram, entre direitistas, foi a de que era o MST o responsável pelas queimadas. Segundo essa narrativa, o MST, que é uma perigosa organização comunista revolucionária, estaria incendiando o Brasil para espalhar o caos e o terror entre os produtores rurais, para assim alcançar – por vias misteriosas e insondáveis – o “comunismo”, terror das criancinhas.

Uma outra narrativa, bastante fascinante, e vinculada muito de perto à esquerda, diz que o agronegócio está incendiando as próprias terras, prejudicando com isso o solo e impondo dificuldades de plantio para os próximos anos, basicamente para sabotar o governo Lula. Os produtores rurais, que não estão interessados no lucro, sendo na verdade fanáticos e perigosos fascistas, estariam querendo espalhar a dúvida, a insegurança e o terror no “paraíso brasileiro” criado pelo governo atual. Afinal, por essa narrativa, se o agronegócio desaparecesse o Brasil seria como nos encartes das Testemunhas de Jeová.

Na mídia de massa, porém, a narrativa segue uma outra direção. Para a Globo News e semelhantes, é Gaia nos punindo por nossos pecados mortais contra a natureza. A ousadia humana de seguir tendo filhos, seguir comendo carne e seguir dirigindo carros, faz com que haja queimadas. Trata-se, fundamentalmente, de uma questão moral. Enquanto não cumprirmos nossas penitências ambientais, desastres ecológicos seguirão ocorrendo e nenhuma ação humana – excetuando as penitências ambientais e o ascetismo misantrópico – poderá impedi-los. “Penitenziagite!”

Uma narrativa que pelo menos parece estar fundada em conflitos sociais concretos e elementos objetivos, é a oferecida por um grupo de produtores rurais, os quais alegam que os incêndios são coordenados e implementados por gente ligada (direta ou indiretamente, conscientemente ou não) ao PCC. A ação seria, simultaneamente, retaliação e meio de pressão, por causa dos interesses do PCC no setor usineiro e de postos de gasolina, os quais teriam sido afetados por causa de recentes investigações que contaram com o apoio e colaboração dos produtores de etanol. Essas atividades econômicas, cada vez mais sob controle do PCC, seriam um de seus principais meios de lavagem de dinheiro.

Por sua vez, o próprio governo de São Paulo, um dos estados mais afetados pelos incêndios, afirma que não há qualquer coordenação nos incêndios. Que alguns são criminosos, mas a maioria é natural. E que os incêndios criminosos estão sendo realizados por pessoas sem qualquer vínculo entre si. Teria sido, aparentemente, uma grande epifania dos piromaníacos, fazendo-os incendiar o país de forma simultânea e sincrônica por um “mistério dos mistérios”, talvez uma egrégora. “Naturalmente”…o governo de São Paulo não está promovendo essa narrativa por saber que pegaria mal admitir que o estado foi posto de joelhos por uma facção criminosa…

Existem, ainda, outras micronarrativas.

Alguns nacionalistas, por exemplo, especulam sobre a possibilidade de que os incêndios estejam sendo desatados por ONGs ambientalistas, interessadas em um “casus belli” para uma intervenção internacional direta no Brasil, sob a justificativa ambiental. Improvável? Sim. Impossível? Não.

No fim do dia, ninguém sabe o que está acontecendo. E é bem mais maduro e responsável simplesmente admitir isso: não sabemos o que está acontecendo. Não há “respostas prontas” e qualquer um que ouse apresentar “respostas prontas” e “soluções” mágicas está tentando te enganar.

A única certeza parece ser a incapacidade do Estado brasileiro de controlar e sufocar esses incêndios.

De resto, é sempre fascinante testemunhar como diferentes cosmovisões resultam em representações completamente dissonantes (em alguns casos, psicodélicas) de uma mesma realidade.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 45

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