Esquerda: Antes uma solução, hoje um problema

Diego Fusaro critica a metamorfose da esquerda em prólogo incisivo: De baluarte socialista a aliada do neoliberalismo, a esquerda contemporânea é acusada de trair suas raízes na crítica aguda de Fusaro ao livro de Carlos X. Blanco. Argumentando que a esquerda adotou as visões de seus antigos adversários, Fusaro apela para uma renovação ideológica que transcenda as divisões tradicionais e reacenda o compromisso com a emancipação social e a justiça.

O livro de Carlos X. Blanco é uma crítica inteligente da atual esquerda neoliberal, hegemônica hoje no Ocidente. Não se trata de um livro escrito por um intelectual de direita ou, simplesmente, por um liberal clássico. Pelo contrário, é um texto de um acadêmico que não critica a esquerda como tal, mas sim sua tendência liberalista e atlantista contemporânea, contrastando-a com seu próprio passado socialista e anti-imperialista.

Esquecida de si mesma e de seu passado, a neo-esquerda pós-comunista e de vanguarda, especialmente depois de 1989, internalizou totalmente o olhar e o horizonte dos vencedores, ou seja, de seus próprios inimigos tradicionais. E fez isso, muitas vezes, com uma cumplicidade obscenamente reivindicada com o orgulho daqueles que escolheram estar do “lado certo da história”, ou seja, do lado (pelo menos por enquanto) dos vencedores.

A nova esquerda acabou se convertendo à lógica do inimigo impugnador que havia esculpido sua própria história e identidade. Em outras palavras, ela se tornou aquilo contra o que lutou. Em sua forma finalizada desde a década de 1990, a esquerda, em quase todo o quadrante ocidental do planeta, aparece como completamente desproletarizada e desprovida de referências ao mundo do trabalho, uma mera representante do individualismo competitivo liberal-libertário das mercadorias e dos direitos civis, ou seja, dos direitos do consumidor individualizado e cosmopolita. Ele não luta mais contra a abstração muito concreta que é o capitalismo, mas para que o capitalismo se afirme nas esferas reais e simbólicas que ele ainda não conseguiu colonizar. Ele não luta mais pela superação do mundo da mercadoria, mas por sua defesa contra tudo que possa colocar em risco sua dominação.

Como Mattia Pascal, o protagonista da obra-prima de Luigi Pirandello de 1904, a esquerda também considerou possível mudar sua identidade. E optou por viver uma “nova vida”, rompendo qualquer relação residual com a antiga. Uma vez que a esquerda vermelha e socialista foi, na modernidade, a verdadeira força que prometeu uma emancipação coral e um curso compartilhado de salvação superior à mera aceitação do existente, mostrar como ela se tornou agora – em seu trânsito do vermelho para o fúcsia e o arco-íris, do anticapitalismo para o ultracapitalismo – aquilo contra o qual lutou representa um primeiro passo necessário para atualizar os mapas e perceber que a bússola está fora de ordem. E que, como demonstrei amplamente em Demofobia, seguindo os passos do meu mentor Costanzo Preve, é necessário abandonar a esquerda (junto com a direita) ao seu destino desonroso, para fundar em novas bases uma filosofia política de comunitarismo socialista e democrático, internacionalista e populista, visando à redenção dos últimos e, com eles, da sociedade como um todo.

Antropologicamente, a neo-esquerda arco-íris pós-comunista produziu, à sua própria imagem e semelhança, um presépio deplorável (ou, se preferir, um inferno dantesco), povoado por radicais chiques sitiados e megalomaníacos do caudilhismo, por neófitos zelosos e convertidos arrogantes no caminho de Damasco, por oportunistas arrependidos, por “servidores voluntários”, por porteiros profissionais e por Mattia Pascal, cuja irresponsabilidade só é igualada por seu cinismo: Uma tribo muito diferenciada internamente, mas cujos habitantes estão unidos pelo trânsito, convencido ou resignado, para a defesa do lado contra o qual lutaram e, sinergicamente, pelo abandono, por esquecimento inconsciente ou vontade reivindicada, de uma história e de uma tradição que deram voz e organização a esses últimos e a seus desejos por melhores liberdades.

A consequência, trágica e ao mesmo tempo irresistivelmente cômica, deve ser bem conhecida. Na estrutura reificada da sociedade de mercado global do capitalismo absoluto, na qual o culto ao valor de troca e a Nova Esquerda se transformam dialeticamente um no outro, être de gauche (“ser de esquerda” em francês) significa ser docilmente servil aos ditames dos mercados financeiros e das agitadas bolsas de valores, mas também às invasões humanitárias de países soberanos decididas por Washington. Novamente, significa tomar as classificações das agências de classificação como referência e a austeridade depressiva como horizonte político. E, assim, encontrar-se falando a mesma neolinguagem cinzenta que os funcionários do Fundo Monetário Internacional, os tecnocratas do Banco Central Europeu e os “especialistas sem inteligência” (de acordo com a fórmula de Weber) do sistema bancário sem fronteiras.

Significa, além disso, lutar contra qualquer coisa que possa interferir de alguma forma com a ordem dos mercados (identificada sem reservas com o progresso) e, assim, deixar para os direitistas a tarefa de contestar, pelo menos em parte (e, de qualquer forma, apenas verbalmente e para obter consenso, ça va sans dire), esse léxico e essa mentalidade. Em uma palavra, é uma questão de celebrar o mundo como ele é, contestando qualquer possível retificação operacional dele, assimilando-o ideologicamente a priori ao retorno do fascismo e do totalitarismo. Por meio de uma catábase às vezes dolorosa no submundo da hipocrisia e da subalternidade, mas também por meio da incapacidade histórica de decifrar a realidade e seu ritmo de desenvolvimento, essa é, em suma, a silhueta obscena da neo-esquerda que encontramos hoje no Ocidente: uma nova esquerda que, assimilando a perspectiva dos grupos dominantes no cenário mundial e des-historicizando totalmente sua visão, aderiu sem reservas ao projeto, ao léxico e às categorias dos grupos dominantes contra os quais tradicionalmente lutou. É a “esquerda dos executivos-chefes” (Federico Rampini), que combina a indiferença e a idiossincrasia em relação às classes trabalhadoras e aos trabalhadores com a celebração indolente – no ápice da subalternidade – do mito de Steve Jobs (chefe da Apple) e Sergio Marchionne (CEO da FIAT com um salário milhares de vezes maior do que o de seus funcionários): em outras palavras, duas figuras que a esquerda “vermelha” e anticapitalista teria considerado modelos negativos, se não inimigos de classe.

Diante do novo cenário de conflito de classes, a neo-esquerda descafeinada não tem nada a objetar. E, na maior parte de sua articulação, ela está – direta ou indiretamente – do lado do bloco oligárquico neoliberal, apoiando seu programa de classe escondido atrás da categoria persuasiva de “progresso”. A dissolução da união explosiva entre a esquerda e o povo resultou, portanto, na queda do povo no abismo da desigualdade, da irrelevância e da mortificação mais indecente e, ao mesmo tempo, na ascensão da esquerda ao topo dos grupos dominantes, na defesa de sua visão de mundo e de seus interesses materiais.

Subsumida (pelo menos tanto quanto a direita) pelo capital, a nova esquerda arco-íris não aspira mais à transcendência do cosmos da morfologia capitalista; uma transcendência que, pelo contrário, ela se esforça para tornar impensável e impraticável. Seu imaginário de plena mercantilização coincide com o dos vencedores do globalismo, segundo o qual a liberdade nada mais é do que a possibilidade de autoafirmação e automodelagem do átomo da startup no espaço do mercado reduzido a um plano suave de competição planetária e ao livre fluxo omnidirecional de mercadorias e pessoas mercantilizadas.

(…)

Um último ponto em que eu gostaria de insistir, e ao qual Carlos Blanco corretamente dedica muito espaço, diz respeito à metamorfose pró-imperialista da esquerda arco-íris. A esse respeito, Domenico Losurdo falou sobre a “esquerda imperial”. Como sabemos, a luta pela emancipação do trabalho e a luta pela libertação nacional do imperialismo representaram, no plano político stricto sensu, as duas pedras angulares do pensamento e da ação da esquerda vermelho-vermelha e, nesse caso, daquela união fundamental da crítica glacial da reificação de classe e do sonho acordado de uma felicidade maior do que a disponível que era o marxismo.

Na fase do capitalismo dialético, être de gauche significava, acima de tudo, a) aspirar a uma transformação (revolucionária ou reformista) do sistema socioeconômico, de modo que as assimetrias desaparecessem ou, pelo menos, fossem atenuadas, e b) contestar a violência colonialista e imperialista do capital, defendendo o caso dos povos oprimidos com vistas à sua libertação nacional (esse segundo ponto, na verdade, aplica-se acima de tudo à esquerda comunista).

A direita, como sabemos, tem sido o lócus fundamental de propulsão e legitimação do imperialismo. A novidade notável parece ser a recente reconversão da própria nova esquerda fúcsia às “razões” do bombardeio ético, do intervencionismo humanitário, dos embargos terapêuticos: em uma palavra, às razões do “mau universalismo” do imperialismo norte-americano, que coincide de fato com o “braço armado” da globalização mercantilista. E que, a rigor, longe de se enquadrar como uma figura do universalismo, é a expressão de um etnocentrismo exaltado, que simplesmente busca estender seu próprio modelo e domínio sem limites, ideologicamente contrabandeado como válido no universal.

Se, como foi apontado ad abundantiam, a característica fundamental da antiga esquerda era o universalismo, é preciso reconhecer que a nova esquerda o abandonou pela defesa do imperialismo americano-cêntrico, não menos do que por seu apoio à lógica da sociedade competitiva de livre mercado, em cujos espaços reificados o paraíso de poucos se ergue contra o inferno de muitos. A sociedade competitiva do capital é, por sua vez, o triunfo de uma classe sobre as outras ou, se preferirmos, o nexo de senhorio e servidão que torna possível o sucesso de um grupo por meio da dominação de outros. O verdadeiro universalismo consistiria, portanto, em combater o imperialismo e a sociedade de mercado, o que a nova esquerda há muito deixou de fazer, tornando-se uma neo-esquerda global-imperialista e liberal-niilista.

A estrutura econômica de direita (imposição do mercado e dos interesses dos grupos dominantes) encontra sua contrapartida na superestrutura cultural de esquerda (ideologia intervencionista dos direitos humanos). Na verdade, o imperialismo do Leviatã das Estrelas e Listras sempre procede, em suas justificativas, com um duplo registro: o da direita cínica e o da “bela alma” da esquerda. A direita cínica defende abertamente a invasão imperialista sem pretensões, em nome do “benefício do mais forte” (de acordo com o teorema de Thrasymachus) e do interesse econômico e geopolítico da força dominada. A bela alma esquerdista, por outro lado, tenta justificar a invasão imperialista com a retórica bombástica dos direitos humanos ou até mesmo fingindo adotar o ponto de vista do mais fraco, a quem a própria operação imperialista defenderia.

Considere, a título de exemplo, como em 1999, com a guerra imperialista na Sérvia, os cínicos celebraram o “esforço de guerra” em nome do interesse aberto de Washington no âmbito das relações de poder alteradas pela virada de 1989, enquanto as “belas almas” da esquerda liberal, como (entre muitos outros) Norberto Bobbio e Jürgen Habermas, justificaram o imperialismo norte-americano em nome dos direitos humanos e da defesa dos sérvios subjugados pelo ditador neo-Hitler da época. Há muitos outros temas nos quais Carlos Blanco insiste em seu excelente estudo, e o leitor os encontrará, como ele diz, “ao longo do caminho”. É um livro que merece ser lido, pois ajuda a entender a necessidade de abandonar a esquerda sem se voltar para a direita: em vez disso, é necessário, tanto para mim quanto para Carlos X. Blanco, ir além da direita. Blanco, ir além da direita e da esquerda, para combater a globalização turbo-capitalista e retomar o caminho da busca operativa pelos desejos de melhores liberdades e maior felicidade do que a disponível na forma de mercadoria.

Fonte: Geopolitika.ru.

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Diego Fusaro

Analista político e ensaísta italiano de orientação nacional-revolucionária. @DiegoFusaro

Artigos: 54

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