O Fim do Castillismo

O camarada peruano Israel Lira, do Centro de Estudos Crisolistas, analisa os eventos recentes no seu país, com a queda do presidente Pedro Castillo.

Em janeiro de 2022, comentamos os detalhes da entrevista que o jornalista Fernando del Rincón concedeu à CNN com o então Presidente Constitucional do Peru, Pedro Castillo, especificando que “… o Castillismo dá indícios inequívocos de que nasceu morto ou está em vias de morrer. Especificamos nessa mesma linha, e quase com faculdades premonitórias (que, dado o desenvolvimento do governo, também não eram muito difíceis de prever) que o Castillismo se aproximava de dois cenários que nos permitimos especular na época, em sentido de que o governo tinha três possíveis finais que, em síntese, delineamos da seguinte forma:

O primeiro deles seria a degeneração progressiva da governabilidade na figura do presidente Castillo devido ao seu envolvimento em suspeitas de corrupção; o segundo, que não necessariamente exclui a primeira, é que Castillo não teria atendido às expectativas dos cidadãos quanto às mudanças estruturais e teria evidenciado sua total incapacidade de dirigir com eficiência as políticas de Estado e de se mostrar forte diante de um Congresso já caracterizado por posições de obstrucionismo e revanchismo político (por vezes fundadas, por vezes com acusações que apelavam à dúvida razoável); e o terceiro, o final mais otimista, mas certamente utópico (no caso de nossa política nacional), é que Castillo teria representado uma ruptura na história política do Peru, superando as barreiras de seu despreparo com bons conselhos, boa gestão pública e uma renovação moral da política peruana, ou seja, que teria mantido sua posição inicial de nacionalismo conservador de esquerda. Dada a situação atual, é fácil reconhecer, como dissemos na época, que o Castillismo se aproximava dos dois primeiros cenários, o das suspeitas de corrupção junto à incapacidade de governar com eficiência.

Pois bem, feitas as primeiras aproximações ao tema, e com os acontecimentos de 7 de dezembro, ou seja, com a declaração presidencial de encerramento do Congresso e já no momento desta intervenção com Dina Boluarte como nova Presidente da República (e que Inclusive já nomeou o gabinete ministerial que a acompanhará em sua gestão até 28 de julho de 2026), podemos fazer um balanço final dos 497 dias (1 ano, 4 meses com 7 dias) que durou a tentativa do governo Castillo (desde o 28 de julho de 2021 até o mencionado 7 de dezembro de 2022), porque se deve ser reafirmado, o Congresso da República não deixou Castillo governar, isso é um fato notório, no entanto, também é um fato que Castillo deu razões gratuitas ao Congresso para que ele tivesse uma postura altamente crítica, altamente revanchista, altamente desdenhosa de todas as políticas de governo que Pedro Castillo estava tentando implementar, e isso é comprovado pela nomeação de pouco mais de 70 ministros em todo o período de seu governo. Quem consegue governar de forma eficiente com tamanha instabilidade dentro do próprio aparato governamental? Ninguém. Com esses detalhes passamos a tocar nos pontos altos da crise peruana:

  1. A data do Congresso: Em sentido formal, como ruptura com a ordem constitucional, pode-se dizer que há uma tentativa de golpe de Estado, como também interpretado pela chamada imprensa internacional, já que nunca houve de fato uma negação de confiança de dois Conselhos de Ministros no sentido literal exigido pelas normas constitucionais peruanas (Art. 134 da Constituição) para que o Presidente possa dissolver o Congresso, o que implica que Castillo queria antecipar o debate em sua terceira moção de vacância (que, pode-se dizer que é a contraparte do poder do presidente de dissolver o Congresso, sendo o poder que o Congresso possui de, posto de forma simples, liquidar o Presidente por diversos motivos previstos no artigo 113 da Constituição, entre os quais está o de incapacidade moral permanente, causas de vacância que não estão definidas na Constituição e por isso têm sido utilizados pelo Congresso em sentido amplo, de julgamento de ética política).

    Vale a pena relembrar brevemente os motivos das duas vacâncias anteriores, a primeira (em novembro de 2021) e a segunda (em março de 2022). Tanto a primeira quanto a segunda foram promovidas por partidos conservadores neoliberais de direita (Fuerza Popular de Keiko Fujimori, Renovación Popular de Rafael López Aliaga e Avanza País de Hernando de Soto), e abordaram várias questões, incluindo a nomeação de ministros incapazes de governar ou ligados ao terrorismo, por declarações que gerariam insegurança econômica como a nacionalização do gás, e sua recusa em prestar contas a empresas por reuniões clandestinas com empresários, políticos e funcionários do Estado fora do Palácio de Governo. Mas essas vacâncias não alcançaram a maioria de votos necessária para sua aprovação (que é o mínimo de 52 deputados). Por fim, a terceira moção de vacância que seria debatida em 7 de dezembro foi basicamente na mesma direção das duas primeiras, destacando as investigações por corrupção no entorno imediato de Castillo. Deve-se notar que no momento Castillo tem seis investigações por corrupção em uma investigação preliminar.

    No entanto, e voltando ao assunto da denominação do fechamento do congresso como golpe de estado, em sentido fundamental, tal denominação é questionada porque um golpe de estado, por mais simples que seja, tem ao menos o apoio de um setor das Forças Armadas e aqui Castillo estava completamente sozinho, ele adotou uma medida transcendental sem o apoio de ninguém. Tanto é assim que após a declaração final todos os seus ministros renunciaram em cadeia, sendo Betssy Chávez a última a renunciar ao cargo de Presidente do Conselho de Ministros, a quem se atribui pleno conhecimento da declaração que o Presidente iria fazer naquele dia. Da mesma forma, após o comunicado presidencial, o Comando Conjunto das Forças Armadas apressou-se em declarar seu não acatamento por violação direta da ordem constitucional em seu Comunicado nº 001-2022-CCFFAA-PNP do mesmo dia.

    A medida adotada por Castillo em 7 de dezembro ainda é apresentada a muitos (incluindo setores da esquerda peruana e até o próprio Peru Libre) como um total mistério sobre o motivo pelo qual Castillo tomou tal decisão que não o beneficiou em nada, já que na época do fechamento do Congresso, seus índices de aprovação eram de 24% em dezembro (contra 53% em julho de 2021), enquanto o Congresso não ficou muito atrás com 11% de aprovação. Ou seja, tanto o Executivo quanto o Legislativo tiveram índices de aprovação bastante baixos.
  2. Dina Boluarte: Por outro lado, cabe perguntar agora, quem é Dina Boluarte? Pois bem, Dina Boluarte era vice-presidente de Pedro Castillo, mas seria posteriormente destituída pelo próprio partido Peru Libre. Ao declarar que não se sentia identificada com a ideologia do partido, a Comissão Disciplinar Regional do partido decidiu expulsá-la em Janeiro deste ano por “falta grave” por ter promovido a quebra da unidade partidária e o “descrédito” das suas autoridades e filiados. Em outras palavras, Dina Boluarte foi uma oportunista desde o início (representando a ala mais liberal dentro do Peru Libre, ligada às ideias progressistas sobre políticas de gênero e ao Fórum de Davos que ela participou este ano) e se aproveitou do vácuo de poder gerado pela autodestruição de Castillo. Neste ponto não temos dúvidas de que Dina Boluarte pode ter tido algo a ver com isso, pois é impressionante que, no início e antes da primeira moção de vacância, ela afirmou que se derrubassem Castillo, ela também sairia. Suas exatas palavras foram “Se o presidente Pedro Castillo for derrubado, irei com ele.” Ao contrário disso, agora a vemos entronizada como Presidente da República, ou seja, Castillo foi usado descaradamente, ou pelo menos assim parece, por uma esquerda liberal, e Dina Boluarte também chegou ao poder com sérias questões sobre corrupção, particularmente seu envolvimento em lavagem de dinheiro de ativos para financiar o Peru Libre.
  3. As crises políticas periódicas: No entanto, também deve ser reafirmado que essas crises políticas, e deve-se enfatizar que são apenas políticas, pois o Peru continua mantendo sua posição como uma das economias mais estáveis ​​da região latino-americana e o Caribe, isso no nível macroeconômico, já que no nível microeconômico é onde se encontram as deficiências que o povo peruano sempre critica a forma atual de entender o modelo de economia social de mercado, pois para muitos ainda falta a ênfase nesse elemento social. Como mencionamos, as crises políticas não são de agora, começaram com o ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski, depois com Martín Vizcarra, para continuar com Manuel Merino e terminar (ou assim se acreditava) com Francisco Sagasti e depois com a vitória de Pedro Castillo nas eleições de 2021, e agora com Dina Boluarte. Ou seja, um total de 6 presidentes em um período que vai de 28 de julho de 2016 a 7 de dezembro de 2022 (6 anos, 4 meses e 7 dias).

    Nesse sentido, a pergunta que nos assalta é: Qual é a origem dessa constante instabilidade política peruana? Entre muitos fatores, consideramos que um fator chave é a estrutura político-jurídica constitucional estabelecida pela ditadura neoliberal fujimorista e que permite que o Executivo e o Congresso se destruam mutuamente. Isso, como se vê, é uma faca de dois gumes, pois pode nos livrar da má gestão presidencial e nos sujeitar a uma ditadura parlamentar e vice-versa. A partir disso, também podemos afirmar que essas crises periódicas são a consequência inevitável do esgotamento do sistema político liberal peruano de democracia representativa (diante de uma forte demanda por políticos preparados e honestos e uma oferta espúria de políticos dessas características) e de uma república constitucional (onde se perdeu o equilíbrio na separação dos poderes devido a uma crescente ingerência do Poder Legislativo na política nacional que, ao invés de ser percebido como controle do Poder Executivo, emerge como concorrente revanchista). Não é de estranhar que em torno deste se fale, desde os tempos de Pedro Pablo Kuczynski, de uma ditadura parlamentar (quando o Fuerza Popular, partido de Keiko Fujimori, era maioria no Congresso, com 73 dos 130 parlamentares).
  4. Requiem in Pace Sr. Castillo: Finalmente, o legado do Castillismo na história política nacional foi a expressão máxima de como uma figura política pode gerar um colapso total da representatividade em nível nacional ao não conseguir renovar o vínculo representativo com os cidadãos pela falta de preparo, e neste último citamos o próprio Castillo que soube reconhecer isso: “…sou…um homem do campo que está pagando pelos erros de sua inexperiência” (12.07 .2022). Sendo este o marco característico dos 497 dias de governo de Castillo, onde exceto por (i) uma Segunda Reforma Agrária que foi anunciada com grande entusiasmo; (ii) o anúncio de que a Petroperú retornará à produção de Petróleo e Gás após 25 anos, bem como a estabilização do preço do GLP e a redução do preço do Gás, destinando 200 milhões ao FISE (Fundo de Inclusão Energética Social); e (iii) a cobrança de dívidas milionárias de grandes empresas pelo Tesouro no valor de S/. 5.400 milhões; sendo que os efeitos de tudo isso ainda não foram vistos, não há conquistas de grande impacto por parte do governo, caracterizadas pela já mencionada rotatividade insana de ministros. O Castillismo junta-se a outras tentativas na história do nosso continente, como o tristemente lembrado Ollantismo, que pretendia ser uma ruptura na história política nacional, como um nacionalismo de esquerda conservadora, mas que mais tarde acabou no espectro da esquerda liberal (já que em seu discurso de encerramento do Congresso, Castillo, contrariando a ideologia original do Peru Libre, que pedia a superação da orientação neoliberal da Economia Social de Mercado pela da Economia Popular com Mercados, acabaria exaltando o modelo atual sem nuances como: “…tanto mercado quanto seja possível e tanto Estado quanto seja necessário…”) devido às pressões midiáticas e políticas de empresas e partidos de direita que criam a estrutura para que o controle político e narrativo esteja sempre voltada para seus interesses, mas sem contrapropostas envolvidas, mas simplesmente como manutenção do status quo e revanchismo político, já que no final de Castillismo, Castillo já não contava com o apoio do Perú Libre como bancada e isso se reflete nas declarações do porta-voz do partido, Flavio Cruz: “Não sei o que deu na cabeça do Presidente para realizar praticamente um golpe de Estado” (12.08.2022). O fim desses eventos não poderia ser outra oportunidade perdida para a esquerda peruana de mostrar ao povo peruano que pode governar com eficiência. É por isso que os protestos em curso têm motivos variados, um setor minoritário claramente quer a reintegração de Castillo, enquanto um setor majoritário quer um adiantamento das eleições gerais. Veremos nos próximos dias como se desenrolam os acontecimentos nesta terra dos Incas e é porque esse é sempre o desejo peruano, parafraseando Flores Galindo, a busca de um Inca, de um governante virtuoso e sábio que possa resolver de uma vez todos os problemas do país em suas formas mais românticas, característica da grande maioria dos utopismos andinos.

    Como colofão fica claro que, se a democracia liberal é falha, é hora de buscar outra forma de democracia. Uma democracia iliberal. Para que opções de governo soberanas e patrióticas se sustentem no tempo e com isso vejam concretizados os seus programas e propostas políticas de renascimento nacionalista, pois temos a certeza de que antes do aparecimento de um movimento autêntico, que até agora não mostrou a sua luz (já que até o momento só fomos tocados por espasmos e pareidolias), e diante de algumas medidas de reestruturação do Estado por um Executivo de amplo espírito reformista, o Congresso (como está hoje) não hesitaria em obstruir as grandes transformações que parecem contrariar seus interesses lobbistas como parte de um círculo vicioso pró-status quo (não dizemos e vice-versa, pois no momento não nos lembramos de nenhum Congresso peruano que tenha tido um espírito verdadeiramente reformador na história do Peru, geralmente, as grandes transformações sociopolíticas e econômicas do Peru vieram através de Decreto-Lei).

Fonte: Centro Crisolista

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Israel Lira

Bacharel em Direito e Ciência Política pela Universidade de Lima. Diretor Adjunto do Centro de Estudos Crisolistas (CEC) e chefe do Departamento de Estudos em Filosofia do CEC, membro do Conselho Diretivo da Sociedade Peruana de Filosofia (SPF) para o período de 2019-2020, Coordenador Geral do Coletivo de Jovens pela Segunda República, investigador independente, colunista e ensaísta. Assessor Técnico-Legal em Contratações com o Estado, Mediação e Junta de Resolução de Disputas.

Artigos: 598

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