Shinzo Abe foi primeiro-ministro do Japão de 2012 a 2020, quando renunciou por razões de saúde. Ontem, às 23h30 da noite (hoje, 11h30, no horário de Brasília), estava dando um discurso em apoio à eleição de seus aliados na cidade de Nara quando Tetsuya Yamagami lhe desferiu três tiros de espingarda pelas costas, acertando-o com dois. Ao menos um atravessou seu peito. Yamagami foi desarmado e preso no local.
Logo em seguida, vieram mais notícias mórbidas pela NHK: o primeiro-ministro sofreu falência cardiorrespiratória. No Japão, este diagnóstico costuma ser usado para antecipar respeitosamente uma declaração formal de morte enquanto não houve exame por um médico legista.
O Japão tem uma das políticas de desarmamento civil mais rigorosas e eficazes do mundo, o que deixa muito a pensar para desarmamentistas.
Para nós, enquanto colaborador estratégico do imperialismo estado-unidense, Abe encarnou os ideais do inimigo nobre e respeitável. Seu avô foi o estadista imperial Nobusuke Kishi, que combateu os interesses empresariais na Manchúria em favor dos interesses estatais japoneses. Seu pai foi Shintaro Abe, a quem sucedeu na liderança do Conselho de Análise Política de Seiwa, facção parlamentar nacionalista do Partido Liberal Democrata. Estreitou relações simultaneamente com os EUA e com seus vizinhos, a fim de favorecer a remilitarização do Japão.
A retórica de Abe contra a Rússia e a China se tornou extremamente inflamada neste ano, chegando subitamente à classificação da operação militar especial russa como “imperdoável” e à sugestão de uma defesa ostensiva de Taiwan pelos EUA. Por outro lado, sempre compreendeu que o Japão não tem nada a vencer intervindo na Ucrânia, tomando a atuação da Rússia na região mais como um desvelamento de sua política externa. Chegou a comparar Putin com o controverso daimiô (senhor feudal) japonês Oda Nobunaga, “um extremo pragmatista, que fundamentalmente acredita no poder”.
Vale a pena buscar entender Abe através de paralelos com as posições diplomáticas hostis do primeiro-ministro Fumio Kishida, do Kouchikai, facção do Partido Liberal Democrata por um lado mais moderada em relação à remilitarização do Japão e à pressão geral sobre a China, e por outro mais disposta a expandir a pressão sobre a Rússia para além dos conflitos no Pacífico. Em suma, sua facção é mais interessada na submissão do país aos interesses ocidentais, até mesmo em sua relativa calmaria em relação à China. Afinal, por força do Tratado de Cooperação Mútua e Segurança, os Estados Unidos seriam obrigados a intervir.
Kishida afirmou que o Japão estava pronto para colaborar com a OTAN e a União Europeia na questão ucraniana, sendo um dos únicos países fora da América do Norte e da Europa a serem classificados como hostis pela Rússia. O jornal japonês Sankei Shimbun anunciou que o país enviaria um militar para Taiwan. Fragatas russas e chinesas começaram a navegar águas próximas às Ilhas Diaoyu, região disputada entre o Japão e a China na qual barcos chineses não eram vistos desde 2016. Enfim, Kishida sugeriu um teto internacional para a importação de petróleo e gás chineses, o que a Rússia respondeu com restrições à pesca nas Ilhas Curilas do Sul, disputadas entre ambos os países, e a suspensão de acordos energéticos.
Evidentemente, o comportamento de Kishida passou a preocupar tanto a Rússia e a China quanto setores da sociedade japonesa que acreditam que estratégias mais diplomáticas possam trazer maiores benefícios econômicos e de segurança nacional. Se foi a ação de um desses setores ou de um lobo solitário, talvez saibamos em breve.
Aqui, como os japoneses, respeitamos os mortos. Que a memória de Shinzo Abe seja eterna.
P.S.: Horas após a conclusão deste texto, a morte foi confirmada oficialmente.