Psicanálise à luz da dissidência

A psicanálise pode ser aproveitada pela quarta teoria política? E quais princípios desse campo podem ser absorvidos pela proposta de uma QTP? Guilherme Alvares, estudante de Psicologia e membro da NR-DF, apresenta algumas ponderações sobre esse tema.

Em anos de confusão identitária e disfunções sexuais abundantes, um autor que iniciara sua carreira pela psiquiatria se instituiu por um caminho denominado psicanálise, subversivo em relação à estrutura de sua época. Embora a psicanálise tenha sofrido inúmeras mudanças como teoria ao longo dos anos, seus princípios seguem inalterados. Qual seria o princípio da psicanálise? Segundo Lévi-Strauss, seria o retorno ao xamanismo na sociedade moderna. Como no caso do esquizofrênico, o curador faz a performance das ações e o paciente produz o mito; na cura xamânica, o curador oferece o mito e o paciente faz a performance das ações (Lévi-Strauss, 1963). Há muito na linguagem estudada por Freud que não havia sido devidamente percebido pelo seu autor, mas reestruturado nas bases de Saussure por Lacan.

Introduzindo a primeira tópica de Freud, percebemos uma inconsistência em seus estudos relacionados à histeria, quando ele percebeu a potencialidade dos efeitos da hipnose estudando com Josef Breuer, um renomado médico de sua época. Hipnose agindo com efeitos de descontrole para seus pacientes, sendo esse o momento estabelecido como inconsciente. Aqui inicia a jornada da psicanálise rumo à descoberta de um homem para além da ética de Kant, que, grosso modo, concebe os controles completos e diretos segundo seus desejos. Vale retomar uma fala de Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos:

Eu formalizo um princípio. Todo naturalismo na moral, isto é, toda moral sadia é dominada por um instinto da vida – qualquer mandamento da vida é preenchido com um determinado cânon de “deve” ou “não deve”, qualquer entrave e hostilidade é com isso posto de lado. Ao contrário, a moral antinatural, isto é, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada, volta-se diretamente contra os instintos da vida, – ela é uma, ora secreta, ora ruidosa e descarada condenação desses instintos.”

A hipnose ao longo do tempo se apresentou como ineficaz em relação a alguns casos e logo foi descartada, ao mesmo tempo em que percepção da potência da fala foi resgatada em relação aos sofrimentos dos seus pacientes, não podendo se constituir de qualquer fala, mas em primeira instância naquilo em que há um bloqueio ao ser dito (recalcamento). Eis aqui a semelhança entre o autor anteriormente citado e Freud, o enfrentamento à moralidade instável do enfraquecido período moderno europeu, no qual a espiritualidade e a materialidade se tornaram universos divergentes e incongruentes. Sendo essa barreira proporcional à culpa moderna pela criação ineficaz da sociedade nas crianças, com formas cada vez mais castradoras no viés da Noomaquia de Dugin, tornando seus infantes (do latim, que não tem capacidade de falar) cada vez mais alheios ao mundo, mais odiosos dos seus desejos, que serão constituídos como a ética do sujeito.

Freud, por sua vez, capacitou visualizar a criança como portadora de voz novamente, como uma criança que possui sexualidade em potencial (mesmo que essa esteja sendo produzida simbolicamente em relação ao mundo). O retorno e a compreensão das funções maternas e paternas: a mãe como o seio afetivo no qual a criança irá se inserir nas funções do amor (transferência) enquanto anseia pelo seu alimento e carinho, ocupando a economia libidinal no desejo materno; o pai como a imagem que impede o desejo da mãe se constituir enquanto figura una (aqui sendo o inimigo), mas que ao longo do tempo se torna a imagem exemplar simbólica da sua constituição (Nome-do-Pai – ou imagem da lei, nomeado por Jacques Lacan). Posteriormente em seus casos, visualizou os efeitos de abusos sexuais nas crianças e relatou em seus escritos da Teoria da Sedução (1896):

O que seria essa teoria da Sedução? De acordo com sua construção, o sintoma histérico teria origem em um mecanismo de defesa pelo qual o ego (Ich) procura recalcar uma ideia intolerável que lhe causa desprazer. Essa ideia intolerável consiste na recordação de um trauma sexual que pressupõe uma violência por parte de um adulto pervertido que a realizou, e que teria sido vivida de forma passiva e desagradável.”

Aqui então iniciamos a segunda tópica freudiana: Eu (também chamado de Ego), o Id (ou Isso) e o Super-Eu (ou Superego). Poderíamos colocar aqui de forma abrupta a relação do Id com o desejo (ou pulsões nesse caso) incontido, não desligado do Eu. A função primária do Eu é realizar a contenção de certas pulsões inatas, sendo sua função relacionada à razão e circunspecção, como disse Freud. Já o Super-Eu estando mais afastado da consciência ou a imagem que irá produzir um efeito de contenção do Eu, denominado por ele como caráter. Aqui o autor já expressava seus interesses pela sociedade grega, percebendo em seus mitos como o de Eros e Psiqué¹ uma constituição do desejo de necessitar barreiras, sendo esses entraves o prazer da sua realização.

Existe uma linha subversiva e dissidente de Freud, enquanto na sua época encontram vias conflitivas de compreender o que seria a fantasia, ele reestrutura de uma forma básica e autêntica de sua necessidade. Fantasia então seria durante a construção do ego, a criança escutar algo como seus pais copulando e transformar isso numa compreensão do que acontece. A imagem construída para a criança não é real, mas é autêntica, e o fato dela nunca poder ser materializada conduz a criança a um mundo de possibilidades. Tal qual nós adultos fantasiamos e construímos diversos pensamentos que estão para além de nós realizarmos, se constrói uma subjetividade o fato de não podermos efetivá-los, se constrói ideias.

Seguindo por linhas posteriores, Lacan reorganiza em forma de linguagem três estruturas: Imaginário, Simbólico e Real, postulando o universo simbólico como preexistente ao ser humano. Antes de seu nascimento, sua estrutura simbólica já se expressa pelas questões de sua região. Aqui podemos vincular, por alto, um retorno da compreensão de Tradição, pois a criança se capacita da possibilidade de se efetuar na sua Tradição regional, e posteriormente será criado o seu universo imaginário, em que podemos visualizar o surgimento do Eu, ou a função da criança em visualização frente ao espelho (Estádio do Espelho), quando sua autoimagem irá se construir em relação aos seus próximos. O Real sendo nomeado como o que não pode ser simbolizado, explicado, articulado, dizível. Aqui já se estabelece um princípio metafísico para o norteador religioso, como nos Mantras budistas tibetanos, não há o que interpretar o que há de ser sentido.

A relação de Freud com a guerra se dá por formas que geram apenas incertezas, em primeira instância em sua carta para Einstein, quando este requisitou sua participação para uma conferência na Liga das Nações para discutir sobre uma resolução pacífica para o fim dos conflitos, de maneira apologética recusou-se a ponto de dialogar com tais ideias absurdas de passividade de Einstein:

Receio que eu possa estar abusando do seu interesse, que, afinal, se volta para a prevenção da guerra e não para nossas teorias. Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Como consequência de um pouco de especulação, pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado pulsão de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. O organismo preserva sua própria vida, por assim dizer, destruindo uma vida alheia. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. Foi-nos até mesmo imputada a culpa pela heresia de atribuir a origem da consciência a esse desvio da agressividade para dentro. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano. Por outro lado, se essas forças se voltam para a destruição no mundo externo, o organismo se aliviará e o efeito deve ser benéfico.”

Vale sublinhar aqui que o conceito de pulsão de morte abordado acima por Freud foi de extrema aversão ao academicismo de sua época, considerado vigorosamente contra a constituição do homem moderno um sujeito que pensasse em violência de forma tão “selvagem”. Assim como descartado o próprio Nietzsche do academicismo alemão, rejeitadas suas ideias por conter valorização da guerra em sentido engrandecedor, em suas palavras: “A guerra e o valor têm feito mais coisas grandes do que o amor do próximo. Não foi a vossa piedade, mas a vossa bravura que até hoje salvou os náufragos”. Durante os seus estudos e nos escritos “Mal-estar na civilização”, apesar de que tenham negado friamente que existissem influências de Nietzsche, se estabelecem correlações cada vez mais claras entre os autores ao longo dos seus escritos, como em Totem e Tabu e em uma de suas últimas obras, Moisés e o Monoteísmo, no intento de reescrever um mito, uma função que abarcasse as idiossincrasias de suas teorias (similar ao Assim falou Zaratustra de Nietzsche), sendo duramente criticado por um aspecto arrogante de antropologia anos depois por Lévi-Strauss, servindo como uma leitura complementar para quem envereda-se no caminho da psicanálise.

Podemos enxergar que a teoria de Freud, por mais vacilante que viesse a ser, sempre acabava na condição de tentar desconectar a ideia de “inconsciente” como algo alheio tanto à razão, quanto ao corpo, contrário à ideia de substância cartesiana. Eis o trunfo de sua ideia, mostrar que a divisão dualista de corpo e mente se estabelecia como um engano, uma vez que não há divisórias e ambos se influenciam reciprocamente a todo momento, tornando possível pensamentos em que não é necessário retirar a condição de desejo dos princípios éticos, separar a razão do homem de seus desejos (ou alma). Desejo como Lacan descobriu em relação aos estudos de Madre Tereza, ou no retorno aos textos de Antígona², provém de condições que podemos chamar espirituais, constitutivas socialmente por um vínculo pré-estabelecido e simbólico, o qual iremos tentar superá-lo da sua forma material passada, mas sua essência se manterá como a tradição.

Tal como Foucault criticou o modelo psicanalítico de Freud afirmando ser uma teoria reguladora do comportamento em sociedade, Lacan provou algo que faltava na visão pós-estruturalista: há uma condição humana de impasse para que exista o que chamamos de amor, só pode haver amor se houver amor com restrições e bloqueios. Assim se dá a formação da fantasia anteriormente dita por Freud, o impedimento que gera frutos. Não devemos confundir desejo por meios materialistas exclusivos, o desejo é inconsciente, estruturado por linguagem e, por isso, então é condição para além de si o contato com o Outro. Diferente da compreensão pós-moderna, para a qual devemos realizar todas nossas fantasias, o filósofo Žižek reescreve a compreensão lacaniana de fantasia numa crítica à sociedade efêmera atual:

É assim também que deveríamos ler a tese de Lacan sobre a “satisfação das pulsões”: a pulsão traz satisfação porque […] transforma fracasso em triunfo – nela, o próprio fracasso de atingir a meta, a repetição desse fracasso, a circulação sem fim em torno do objeto, gera uma satisfação própria. Como explica Lacan, o verdadeiro alvo da pulsão não é atingir a meta, mas sim circular interminavelmente em torno dela.”

O que nos conduz, enfim, à última prerrogativa da psicanálise como ferramenta social para uma condição de cura através das angústias, ao contrário do que temos hoje como induções de anestesias até por vias das sociedades de aceitações de identidades, como no caso da “gordofobia” e diversas fobias que se constroem pela mídia, a psicanálise segue o caminho de que não são títulos novos que devem ser impostos em nossas angústias para amortecer nosso sofrimento, mas a única construção de autonomia em sociedade é gerada pelo enfrentamento aos títulos que nos incomodam. Freud descobriu a função do sofrimento em sociedade. Em primeira instância, suas tentativas e erros geraram inúmeras descobertas, mas a essência da sua compreensão não deve ser ignorada ou ridicularizada, há muito a ser compreendido, tal como a escola de psicanálise argentina ressuscitou o legado de Freud durante o peronismo e isso se tornou benéfico. Se a mesma escola de psicanálise recentemente convidou Aleksander Dugin para um seminário sobre a quarta teoria política, então podemos considerá-la uma das correntes que está do nosso lado da trincheira!

¹ Eros considerado Deus da Paixão, ou traduzido como Desejo ardente do grego, apaixonou-se por Psique (traduzido como alma, mente ou funções orgânicas como respirar), uma humana e ambos enfrentaram diversas dificuldades frente a Afrodite (mãe de Eros), enciumada de seu filho e castradora da paixão de Eros, quando Zeus por fim necessitou intervir e tornar Psique em uma deusa com a ambrósia (néctar divino).
²Antígona, filha de Édipo-Rei, recusou a ordem de seu tio, de deixar seu irmão Polinices apodrecer no campo de batalha e sua alma condenada a vagar cem anos nas margens do rio até o mundo dos mortos sem poder ir para o outro lado. Sendo, segundo Sofócles, condenada e enterrada viva após sequestrar o corpo do irmão e fazer um ritual post mortem digno.

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Guilherme Alvares

Estudante de Psicologia, adepto do zen budismo e membro da NR-DF.

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