Tião Carreiro, Tradição e as quatro virtudes morais do caipira

Os donos do mundo com golpes vibrantes
Meu sertão gigante fez adormecer
Velhas tradições caíram pra sempre
Ficando somente a brisa a gemer
Descendo serra entre verde mato
Soluça o regato despertando a fonte
Até a lua que era risonha
Parece tristonha lá no horizonte
Sertão vazio devagar vai morrendo
Em silêncio sofrendo a destruição.

(Tião Carreiro & Paraíso – Sertão Vazio)

“Um, por si, de nada não sabia; mas a montoeira deles, exata, soubesse tudo.”

(João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas)

Na modernidade ainda não existiu uma teoria política que se guiasse realmente pela Tradição, que a interprete de forma correta, compreendendo o que nela habita e para onde conduzem seus caminhos. Nossa jornada é a da construção dessa teoria, um pensamento que emane de fato do povo e seja ferramenta de sua autodeterminação e soberania. Nossa missão, auto imposta, é mergulhar profundamente, organicamente, na fonte da sabedoria popular. Apenas assim poderemos entender as mais diversas camadas que estruturam nossos povos. Carregando também dentro da política, de modo sincero e natural, a moralidade popular.

E qual seria essa moralidade, essa ética popular? Só posso falar do que minhas raízes me ensinam. Devemos admirar e estudar diversas culturas, mas a verdade é que podemos entender, em sua totalidade, apenas aquela tradição que nos pariu. Portanto, minha ferramenta de análise sempre será a cultura caipira. É ela que vivo e é ela que pretendo preservar.

O grande historiador e sociólogo Oliveira Viana, em sua obra de 1920, Populações Meridionais do Brasil, nos conta que são quatro as principais qualidades morais do caipira: fidelidade à palavra dada, integridade, respeitabilidade e independência moral. Vale a pena também citar, à guisa de recomendação de leitura, o julgamento de Zé Bebelo, em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, como exemplo dessas virtudes, além das obras de Valdomiro Silveira.

Onde mais podemos encontrar exemplos dessa visão de mundo?

A música caipira raiz, a tradicional, é muito mais do que mera música. É documento histórico, crônica social e código moral. O caipira, mais do que qualquer outro povo brasileiro, cantou a própria história, registrada em disco desde o final da década de 1920. Em muitas dessas composições podemos encontrar exemplos das quatro virtudes caipiras elencadas por Oliveira Viana. Muitas duplas sertanejas cantaram a moralidade rural, mas a obra de Tião Carreiro e de seus vários parceiros é sempre a mais lembrada quando falamos da weltanschauung caipira.

Meu mestre é Deus nas alturas
O mundo é meu colégio
Eu sei criticar cantando, Deus me deu o privilégio
Mato a cobra e mostro o pau
Eu mato e não apedrejo
Dragão de sete cabeças também mato e não aleijo
Estamos no fim do respeito
Mundo velho não tem jeito
a vaca já foi pro brejo

(Tião Carreiro & Pardinho – A Vaca Já Foi Pro Brejo)

A lua é dona da noite o sol é dono do dia
Admiro as mulheres que gostam de cantoria
Mato a onça e bebo o sangue furo a terra e tiro o ouro
Quem sabe aguentar saudade não aguenta desaforo
Eu ando de pé no chão piso por cima da brasa
Quem não gosta de viola que não ponha o pé lá em casa
A viola está tinindo cantador tá de pé
Quem não gosta de viola brasileiro bom não é

(Tião Carreiro & Pardinho – Chora Viola)

O caipira é uma criatura nascida da saudade, da nostalgia, como bem narra a canção Tristeza do Jeca. Geração após geração, entoamos um canto choroso por um mundo que já se foi. Da maneira típica do homem do campo, é um lamento pela morte da Tradição. E nesse novo e moderno mundo, parece não haver mais lugar para aquelas tais quatro virtudes morais. No Brasil, quem de fato são os protetores da tradição? Politicamente falando, quase ninguém. Sem falsa modéstia, com pouquíssimas exceções, apenas nós da Nova Resistência, munidos das ferramentas teóricas corretas, somos guardiões das identidades tradicionais? O que existe, além disso? De um lado, nojo do povo. Do outro, traição ao povo.

A esquerda e a direita não compreendem as tradições populares brasileiras. A primeira, no afã de preservação, na verdade um mero fetiche, quer esvaziar as culturas de seu conteúdo metafísico e de sua moralidade rural. A segunda, dissimulada e burra, utiliza a visão de mundo das pessoas simples como alimento de um conservadorismo baseado na essência de povos estrangeiros, traindo suas raízes.

A atual esquerda brasileira, alienada, isolada em suas universidades, preocupadíssima com infinitas discussões hermenêuticas sobre a obra do milésimo autor que deturpou a obra de Lênin, se esqueceu do povo. Em alguns casos, é nítido o nojo que alguns progressistas sentem por qualquer coisa que seja genuinamente popular. Falam de proteção das identidades, mas se escandalizam, como as criaturas delicadas que são, com a moralidade do brasileiro simples. O proletário, o lavrador e a benzedeira não querem saber de candidatos trans, querem sim é saber de pão na mesa e se sua identidade no mundo irá sobreviver. É desonesto pregar reforma agrária e proteção do folclore no mesmo ativismo que defende pautas completamente alheias à imutável mentalidade popular, pois tal mentalidade é nossa essência metafísica. Tal desonestidade só afasta as massas que, desorientadas, tentando resistir, elegem vermes traidores da pátria, como o atual demente que nos governa. Enquanto isso, em saraus de falsa cultura popular, universitários tocando viola acham que são o povo, mesmo tendo nojo do boia fria que abomina Pablo Vittar. O verdadeiro povo do campo é o cantado nas modas de Vieira & Vieirinha e que, para o espanto dos tradicionalistas de apartamento, ainda existe.

A direita conservadora consegue ser ainda pior, pois, ao menos, a esquerda consegue reconhecer e, mesmo de modo incorreto, o que é popular. Não há necessidade aqui de, uma vez mais, abordarmos o viralatismo cultural da direita brasileira, assunto que já analisei em outros textos. A questão aqui é o fato desses vendilhões da pátria utilizarem a moral popular como justificativa de seu conservadorismo liberal. Como um povo que tem em suas raízes a lembrança dos mutirões na roça, de solidariedade entre vizinhos e compadres, poderia ter em sua natureza um pensamento tão individualista, tão estrangeiro como esse defendido pelos traidores do Brasil? De certa forma, podemos dizer que no mutirão caipira está latente uma forma de comunitarismo, ousa até mesmo dizer um proto-socialismo. Desses elementos é que pode e deve nascer uma forma de ordenação social natural ao nosso povo. O que a direita faz aqui, manipulando o povo que não se identifica com a esquerda aberrante, é manipular e deformar uma das quatro virtudes morais do caipira. A independência moral, pervertida por uma ideologia política asquerosa, se transforma nesse falso conservadorismo social individualista e economicamente liberal, típico do maior inimigo do nosso povo: o anglo.

Tampouco os fascismos entenderam a cultura popular, pois, na realidade, não são Tradição. Em Giovanni Gentile está a chave para compreendermos que tradicionalismo e fascismo são incompatíveis. A terceira teoria política também é um fenômeno da modernidade que tanto pretendemos superar. Gentile, na obra La Riforma Della Dialettica Hegeliana, critica Hegel com o argumento de que o alemão, em sua dialética, “recai em um platonismo”, elemento a ser eliminado na intenção de completar a reforma kantiana. Facilitemos, portanto: Alexandr Dugin afirma que as ferramentas mais importantes na filosofia hegeliana, para a construção do pensamento quarto-teórico, estão, pasmem, em seu elemento platônico. É a partir desse elemento que podemos empreender uma verdadeira ressacralização do mundo.
O Volksgeist brasileiro, no seu mais profundo avesso a esses cancerosos sintomas da modernidade, é um espírito coletivo mestiço, que exala sacralidade, igualmente filho de um Portugal pré-moderno e de índios e negros, povos profundamente espiritualizados e guerreiros. Sendo assim formado, por tão nobre mistura, nosso destino coletivo não caminha por sendas comuns às dos anglos. Nosso único destino desejável é ser, como profetizado por Darcy Ribeiro, a Nova Roma tropical. Fora disso, existe apenas a extinção enquanto povo.

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Luiz Campos
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