Espiritual e contemplativo, Nostalgia, de Andrei Tarkovski, retrata o drama do homem apartado de sua pátria.
O cinema de Tarkovski possui signos distintivos que, em linhas gerais, se originam dos pressupostos filosófico-estéticos do realizador, cuja centralidade recai na compreensão da linguagem cinematográfica como captura de fatos reais, concretos, e temporalmente situados; matéria-prima para o que o cineasta russo chamou de “esculpir o tempo”. Nesse itinerário, a filmagem aparece como uma peça de mármore, ao passo que o filme como resultado de uma subtração criativa operada sobre a mesma, tal como em uma escultura, dando origem a obra de arte. Arte que, no entendimento de Tarkovski, deve sempre apontar para questões fulcrais e metafisicamente relevantes à existência humana.
Segundo o próprio realizador, em uma passagem de extrema lucidez e atualidade:
Creio que um dos mais desoladores aspectos da nossa época é a total destruição na consciência das pessoas de tudo que está ligado a uma percepção consciente do belo. A moderna cultura de massas, voltada para o “consumidor”, a civilização da prótese, está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual [1].
É a partir destas considerações hermenêuticas que Nostalgia (1983), uma das últimas obras do alquimista soviético, deve ser apreciada.
A questão metafísica que impregna a película é nada mais que a profunda dependência do homem, entendido enquanto Pessoa (em oposição ao Indivíduo atomizado), de sua terra, de seu solo, de seus iguais (em sangue e em espírito), de seus vínculos e nexos comunitários, de seus caminhos e descaminhos, de suas rotas comuns e de todos os fatores que determinam os campos semióticos a partir dos quais é possível a ele acessar a realidade. O filme, silencioso e com pouquíssimas linhas de roteiro (especialmente em proporção às suas mais de duas horas de duração), apresenta um protagonista (o escritor e poeta Andrei Gorchakov) alienado, desorientado e perdido num mundo que lhe é alheio – falando um idioma que não lhe pertence e caminhando pelas veredas tortuosas da saudade e da melancolia.
(É digno de nota que Gorchakov esteja “a trabalho” na Itália colhendo informações sobre uma personalidade de seu país, o compositor Pavel Sosnovsky, que após uma longa estadia fora da Rússia, volta à sua terra natal e lá comete suicídio).
Não seria exagerado entender a angústia impressa em toda a atmosfera psico-emocional da película como uma derivação de algo como uma angústia metafísica kierkegaardiana. Pois, uma vez que a pátria emerge como realidade última e causa primeira das estruturas de subjetividade que orientam o homem em sua passagem pelo mundo, o evento da ruptura nada mais é que uma analogia para a perda do sopro de vida, ou melhor, para o desligamento do ser-no-mundo de suas fontes sacras vitais.
O fenômeno da nostalgia, portanto, se configura como um olhar profundo e doloroso nos olhos da morte espiritual; ou: um estado de degenerescência insidiosa da própria alma frente ao rompimento com suas raízes orgânicas.
Os planos longos e estendidos de Nostalgia comunicam esse silêncio aterrador e, simultaneamente, contemplativo em que o protagonista está sub-imerso. A neblina em cena, enquadrada numa fotografia de cores frias, comunica esse caráter nebuloso do drama do forasteiro, contrastando apenas com os tons cinzas de seu mundo onírico (que logo se esvai no despertar do sono, do devaneio ou do delírio). É como se estivéssemos diante do universo interior desnudo da criatura ante aos nossos olhos, cuja afecção parece não poder ser remediada nem mesmo pelo corpo desejante de uma bela mulher ou pela iminência de altas realizações profissionais. Nada parece aquietar a alma de um sem-pátria errante em uma nação estrangeira: a saudade da pátria é inquietação.
Nostalgia é um filme espiritual em um sentido amplo que dificilmente pode ser vivenciado (porque a arte não se compreende: se vive) por quem está deveras contaminado pela ideologia liberal-cosmopolita do globalismo sem fronteiras. Em outras palavras, a figura do Cidadão do Mundo, pós-liberal, desenraizado e nômade é a antípoda do tipo de personalidade que Tarkovski visa apresentar em Nostalgia.
Finalizo Salta a memória as seguintes considerações de Pablo Neruda sobre sua própria nostalgia
Creio que o homem deve viver em sua pátria e creio que o desarraigamento dos seres humanos é uma frustração que de uma maneira ou de outra entorpece a claridade da alma. Eu não posso viver senão em minha própria terra. Não posso viver sem pôr os pés, as mãos e o ouvido nela, sem sentir a circulação de suas águas e de suas sombras, sem sentir como minhas raízes buscam em seu barro pegajoso as substâncias maternas [2].
Notas:
[1] Tarkovski, Andrei. Esculpir o Tempo. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (p. 48).
[2] Neruda, Pablo. Confesso que Vivi. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992 (p. 123).