A anti-política liberal: o caso Schmitt

Lucas Leiroz

A arrogância ocidental parece não conhecer limites. Em geral, liberais não apenas creem cegamente ocupar uma posição de centralidade universal, mas tendem a enxergar como infame tudo aquilo que em algum grau se desvie de sua cosmovisão.

Talvez, em um mundo ideal, liberais devessem ser privados do direito de ler seus críticos. Assim, isolados em suas bolhas de pensamento e alimentados por seus teóricos mesquinhos, privariam a humanidade da desagradável existência de suas “reabilitações” e “resenhas” sobre o legado de autores dissidentes.

Pensar assim é a única reação possível ao ler absurdos como a “resenha crítica” produzida pelo, “famoso-quem?”, jurista britânico Joshua Smeltzer.

Eu admito que não conheço Smeltzer e nada sei sobre seus trabalhos (ou se tem algum trabalho) fora do texto “Carl Schmitt dentro e fora da história”, no qual faz uma revisão crítica das obras de Schupmann e Hohendahl, que propõem uma “reabilitação” de Schmitt enquanto jurista.

Talvez Smeltzer tenha de fato lido Schupmann e Hohendahl, mas claramente não leu Schmitt – pressupondo aqui que Smeltzer saiba ler, uma vez que claramente não sabe escrever.

Toda a questão, porém, tem início nos próprios autores resenhados. Schupmann e Hohendahl, enquanto nada mais do que juristas ocidentais contemporâneos, e que em nada ultrapassam os limites do lugar-comum da Academia, são dois autores que se propõem a reconstruir Schmitt enquanto jurista compatível com o mundo contemporâneo.

Acima, eu toquei no ponto da completa demonização imposta por liberais a seus opositores. Mas há também outra face dessa prepotência e crença cega de centralidade universal: a auto-outorga do direito de “perdoar”, “redimir”, “revisar”, “revisitar” e “higienizar” aquilo que se opõe ao pensamento liberal.

A partir de que maldita posição creem os liberais poderem arrogar-se do direito de “reabilitar” alguém? Em que querem transformar Schmitt? Em um denunciador das falhas da democracia burguesa, ao qual devem os liberais manter-se atentos com o fulcro de “sanar” tais vícios e perpetuar o regime que tanto defendem?

Esse problema, porém, parece perseguir a obra de todos os autores que se propõem a discorrer sobre os escritos do jurista de Plettenberg. Schmitt, quando não tratado com ojeriza, quando não referido como “o jurista maldito”, é lido com a “extrema cautela” típica da mentalidade burguesa (contra-) acadêmica.

Há um ponto ainda mais profundo nesse tipo de leitura quando tratamos de Carl Schmitt, vez que é este o tão referido “jurista da Decisão”, que na extrema-realização de compor a mais perfeita teorização do Político já concebida por mãos humanas, formulou o irretocável conceito da relação amigo-inimigo.

Política é a contraposição entre amigos e inimigos. Quem determina o inimigo é o Soberano – que tem o poder de decidir pela Exceção. Logo, este pode determinar os meios contra aquele, sendo a guerra o mais extremo dos meios, a possibilidade política máxima. Política é consequentemente o que pode levar à guerra – a eliminação física do inimigo.

O liberalismo, logo, é antipolítico. A democracia burguesa é a antítese do político, vez que não contrapõe amigos e inimigos, mas os aglomera no espetáculo parlamentar, que pressupõe a política como um universo singular de interesses.

A cultura burguesa do diálogo e do debate democrático, em contraposição à decisão pela oposição entre amigos e inimigos, não poderia estar mais bem representada do que na leitura pela reabilitação, por parte dos liberais, de Schmitt, um autor que ao longo de toda sua carreira se propôs a superar os inúmeros males trazidos pela ideologia liberal, cujos primeiros frutos no Direito e na Política Internacional já eram precocemente identificados pelo autor na primeira metade do Século XX.

A “reabilitação democrática” da obra de Carl Schmitt é uma corrupção moral e espiritual do legado schmittiano. Isso fica ainda mais evidente quando se tenta mutilar Schmitt, separando as obras pré e pós-Guerra do autor como se de alguma forma se opusessem, quando em verdade se completam e possuem perfeita continuidade.

Schmitt começara a detectar a crise do político com o vigor da democracia burguesa na Alemanha. Porém, como grande visionário, o autor já enxergava à época como o fenômeno que se abatia sobre a Alemanha se fazia uma tendência mundial no pós-Primeira Guerra, quando, com a satânica invasão americana da Europa, foi testemunhado o soterramento do Jus Publicum Europaeum e o nascimento de uma ordem jurídica internacional universalista, que só viria a se consolidar plenamente após a Segunda Grande Guerra e os infames Tribunais de Nuremberg e Tóquio.

A escolha de Schmitt pelo Nazismo não apenas não implica em nada na validade de seus escritos como se faz absolutamente compreensível quando tomamos por nota que o Partido Nacional-Socialista se apresentava como a única esperança para os alemães que então se encontravam insatisfeitos com os rumos da democracia burguesa. Schmitt não poderia enxergar em outra figura senão o Führer o grande Soberano, o Guardião da Constituição – Decisão Política Fundamental.

Mas, a bem da verdade, Schmitt e o Nazismo eram dois mundos diferentes e que não queriam se conhecer a fundo, ainda que as relações entre ambos tenham de alguma forma sido mutuamente proveitosas num dado momento. Sua filiação ao NSDAP não durou mais do que míseros três anos. Aliás, por muito pouco Schmitt não fora contado como mais uma das vítimas fatais do Nazismo.

Schmitt já se encontrava fora das fileiras do NSDAP quando do lançamento de sua Grossraumlehre, que em nada mais consiste do que na mais brilhante teoria já escrita em matéria de Direito Internacional. Schmitt já propunha, nos idos anos 1930, uma solução para um problema que ainda hoje atormenta a sociedade internacional: o universalismo liberal sob o imperialismo ocidental.

Por alguma razão, Schmitt não prosseguira com a Teoria dos Grandes Espaços ao fim da Segunda Grande Guerra. As razões são especuláveis, mas se tornam minimamente desinteressantes quando no mesmo período o autor lança sua obra magna, Der Nomos der Erde (1950), na qual traça toda a história do Direito Internacional como nunca antes – nem depois! – fora um jurista capaz de fazer.

A questão, porém, para além da corrupção da obra schmittiana deflagrada quando de sua leitura e revisão em prol de uma “adaptação” aos nossos tempos, toca num ponto ainda mais profundo: o verdadeiro totalitarismo que decorre do discurso e da práxis liberais.

Contra quem tenta corromper Schmitt, entre os liberais, há quem tente destruir por completo qualquer resquício da obra schmittiana. Há quem o rejeite como um autor completamente infame, que não merece sequer ser lido e interpretado de acordo com suas respectivas circunstâncias históricas. Há quem pregue o seu completo esquecimento, seu lançamento na lixeira da história. E é justamente essa a intenção de figuras medíocres como Joshua Smeltzer.

Smeltzer conclui, após longas e dispensáveis páginas, que uma leitura perspectivista de Schmitt, que tente analisá-lo de acordo com suas circunstâncias históricas apenas pode fornecer uma “imagem mais clara do inimigo”, não devendo ser utilizada para o resgate e adaptação higienizada do autor para nossos tempos.

Não queremos de forma alguma higienizar Schmitt. Seu trabalho é aceitável exatamente como está dado. Devemos revisitá-lo, criticá-lo, complementá-lo e adaptá-lo à realidade vigente, sem dúvidas. Mas não é de nosso feitio a práxis liberal de olhar com ressentimento a obra de um autor pelo fato de ter sido filiado a tal ou qual partido por três anos de sua vida de quase um século.

Lemos e criticamos Schmitt com a intenção de aprimorá-lo, não de rebaixá-lo ou usurpá-lo, como, respectivamente, o fazem os liberais quando pregam seu esquecimento ou sua higienização.

A infame resenha de Smeltzer traz o sujo falando do mal lavado. Liberais que digladiam desde diferentes formas de ressentimento por formas mais eficazes de manchar o nome de Schmitt.

A desculpa para toda essa difamação, no caso de Schmitt, pode ser sua filiação ao NSDAP. Mas a real razão todos sabemos: os liberais são totalitários. Odeiam e buscam eliminar, corromper e aniquilar tudo o que fuja de seu pensamento.

Por fim, sugerimos a Smeltzer que leia Schmitt e que, na impossibilidade de criticá-lo de forma honrosa e respeitosa – considerando a inviabilidade de tais ações para um liberal -, que pelo menos sofistique sua escrita e seus argumentos.

De forma alguma, contudo, Smeltzer represente um caso isolado. É um quadro sintomático. O ódio a Schmitt no Ocidente denota algumas das razões para o atual cenário político e geopolítico das democracias burguesas. Por outro lado, sua obra está entre as preferidas de cientistas políticos chineses. Isso diz absolutamente tudo o que precisa ser dito.

A história dará razão a Schmitt e o absolverá.

Segue, abaixo, a resenha de Smeltzer.

Resenha: Carl Schmitt dentro e fora da história

Tradução: Franciele Graebin

Fonte: https://blogs.lse.ac.uk/lsereviewofbooks/2019/06/19/long-read-review-carl-schmitt-in-and-out-of-history/

Em 9 de Novembro de 2018, o Bundespräsident (Presidente Federal) alemão Frank-Walter Steinmeier fez um discurso para o Bundestag alemão para marcar o centenário de abdicação do Kaiser Wilhelm II e a proclamação de Philipp Scheidemann da República de Weimar das janelas do Reichstag. Este dia do destino, para seguir Steinmeier, continua a representar “o avanço da democracia parlamentar” na Alemanha, um projeto que teve o apoio dos feitos intelectuais de estimados “especialistas das leis estaduais”, tais como “Gerhard Anschütz, Richard Thoma, Hermann Heller ou Hans Kelsen”. Liberais como Moritz Julius Bonn e Ernst Troeltsch também entraram na lista honorária de amigos da República de Weimar de Steinmeier.

Quando chegou a hora dos inimigos intelectuais de Weimar, contudo, a lista de Steinmeier foi muito mais curta: ela estava “acima de toda a longa tradição do pensamento antiliberal que envenenou a cultura política da república”, uma tradição que encontrou sua expressão mais clara nos anos da República de Weimar no pensamento de “intelectuais como Carl Schmitt”. Mais do que qualquer dos apoiadores da República, é Schmitt – o homem indignamente conhecido como “o jurista coroado do Terceiro Reich” – que se tornou onipresente na teoria política e jurídica contemporânea como a personificação de teorias diversas – e contraditórias – tais como radical democracia, liberalismo autoritário, conservadorismo revolucionário, modernismo reacionário, anti-modernismo, anti-imperialismo, estatismo e conservadorismo pós-moderno, para citar apenas alguns. Pareceria então que, mais de 30 anos após a morte de Schmitt em 1985, há tantas concepções do jurista alemão quanto convicções políticas.

O livro de Benjamin Schupmann Carl Schmitt’s State and Constitutional Theory apresenta ainda outro conceito da obra de Schmitt: que Schmitt, um “advogado quase nato” (20), “defendeu a autoridade do estado e da constituição contra a subversão de baixo elevando o status legal dos direitos básicos acima e contra a vontade do povo” (25). Como resultado, Schupmann oferece uma leitura de Schmitt que “mostrará o que [ele] pode oferecer teoricamente aos liberais democratas hoje” (25). Ao fazê-lo, Schupmann trabalha como uma vasta gama de fontes e, diferente de grande parte da pesquisa de língua inglesa recente sobre Schmitt, ele deve ser saudado por seu engajamento minucioso com as fontes primárias e a pesquisa de língua alemã. De fato, parte do mérito do projeto de Schupmann se deve a ele ser capaz de avaliar ensaios mais curtos de Schmitt, indisponíveis em tradução para o inglês na época de sua publicação, para oferecer uma interpretação mais ampla do pensamento de Schmitt. Assim, textos frequentemente negligenciados tais como “On TV Democracy”, “On Friedrich Meinecke’s Idea of raison d’état” e “Basic Rights and Basic Duties” todos encontraram seu caminho no relato de Schupmann sobre o estado de Schmitt e a teoria constitucional.

O livro é organizado em grande parte em torno de conceitos do pensamento de Schmitt, com capítulos dedicados ao “O Conceito do Político”, “The Absolute Constitution” e “O Guardião da Constituição”. A maioria dos conceitos tratados no estudo de Schupmann surgem das publicações de Schmitt durante a segunda metade da República de Weimar, mas Schupmann frequentemente usa textos posteriores como parte de seu quadro interpretativo. Esta estratégia interpretativa, contudo, levanta uma questão mais ampla de fundamental importância para o pensamento de Schmitt: faz sentido falar de um estado unificado e teoria constitucional na obra de Schmitt através do tempo? O título do livro de Schupmann claramente responde a esta questão de forma afirmativa e de fato o projeto mais abrangente é baseado nesta premissa. Citando Schupmann: “este livro se envolve com os escritos de Schmitt pré e pós Weimar e argumenta que um núcleo teórico coerente pode ser extrapolado a partir deles” (27). Esta premissa é supreendentemente aparente nas notas de rodapé também: textos escritos durante a República de Weimar aparecem lado a lado com aqueles que aparecem sob o Nacional Socialismo e a República Federal.

Contudo, não  está claro que tese de continuidade de Schupmann pode de fato ser sustentada quando se faz referência às próprias afirmações de Schmitt sobre a historicidade dos conceitos políticos. “Uma verdade histórica é verdade somente uma vez”, ele alegou em “Dialogue on New Space”. Ao republicar uma coletânea de ensaios sob o título Positions and Concepts in the Struggle with Weimar – Versailles – Geneva, Schmitt citou a máxima de Heráclito que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio. Assim, Schmitt reivindicou que estes ensaios fossem republicados como documentos históricos. O mesmo sentimento é expresso no prefácio para sua coleção de Constitutional Essays: “todos [estes ensaios], contudo, rastreiam em suas teses e conceitos as situações concretas e observações”. Pode-se também olhar para “O Conceito do Político”, onde Schmitt notoriamente declara que “todos os conceitos políticos […] têm um significado polêmico. Eles estão focados em um conflito específico e inclinados a uma situação concreta.” Dado que o capítulo introdutório do volume de Schupmann reconstrói o contexto discursivo do pensamento jurídico alemão precedente ao criticismo de Schmitt ao positivismo legal, é possível que se tenha esperado que Schupmann seguisse uma abordagem mais histórica ao longo de seu estudo; entretanto, no relato de Schupmann, parece que o pensamento jurídico é contextualmente informado apenas até Schmitt começar a publicar.

Ao abordar a obra de Schmitt como um sistema coerente através do tempo, o texto de Schupmann é confrontado por um problema metodológico sério, um que se mantém intocado ao longo do livro: como os pesquisadores deveriam abordar os escritos de Schmitt entre 1933 e 1945 em relação a suas outras publicações? Schupmann, em grande parte, evita a questão. Por exemplo, em um capítulo sobre “Direitos Básicos”, Schupmann salta de Preussenschlag de 1932 para o comentário de Schmitt de 1949 sobre o Grundgesetz para chegar à conclusão de que Schmitt foi um defensor das liberdades individuais (200). Pareceria então que a continuidade somente pode ser alcançada se textos distantes forem omitidos. De fato, se é o caso da obra de Schmitt formar uma teoria constitucional e de estado coerente, então deve-se esperar um tratamento de seu panfleto de 1933 State, Movement, People, a tentativa de Schmitt de criar uma teoria de estado para o Nacional Socialismo. Pode-se perguntar, por exemplo, como a seguinte afirmação se encaixa com a teoria do estado de Schmitt apresentada na República de Weimar: “Somente desde a vitória do movimento Nacional Socialista existe realmente a possibilidade de superar os conceitos constitucionais de burguesia social pensados por meio de outra estrutura de estado, movimento e povo.”

Da mesma forma, pode-se ter que explicar o argumento de Schmitt, apresentado em seu State Structure and Collapse of the Second Reich, de 1934, que “o estado constitucional e o estado baseado na regra da lei eram o monopólio [dos liberais]. Eles criaram seu próprio conceito de lei e constituição, e tudo o que eles fizeram e exigiriam assomou-se assim como uma luta, não pela lei liberal e uma constituição liberal […] mas sim pela constituição e o Rechtsstaat, por liberdade e igualdade em geral.” De fato, se há algo como uma teoria constitucional unificada na obra de Schmitt, as Schupmann supõe, por que seus textos de antes de 1933 deveriam ter prioridade em relação aos que vieram depois? Dado que a grande maioria dos textos citados no estudo de Schupmann se origina anteriormente ao Machtergreifung (tomada do poder) de Hitler, talvez o verdadeiro título do volume devesse ser Carl Schmitt’s State and Constitutional Theory of the Weimar Republic.

Intervindo em um contínuo debate sobre se o famoso conceito de Schmitt do político foi de fato intrinsicamente völkisch [racial] ou meramente acomodou os propósitos völkisch depois de 1933, Schupmann desce diretamente a segunda posição (88). Todavia, em State, Movement, People, Schmitt postula a necessidade de um “Artgleichheit incondicional [ed: uma similaridade existencial] entre o Führer e seus seguidores” para unificar os elementos tríplices de sua teoria de estado Nacional Socialista. No mesmo texto, Schmitt defende purgar a profissão legal de ‘elementos estrangeiros’, argumentando que ‘um elemento estrangeiro’ [Artgleichheit] pode se comportar criticamente e se esforçar com astúcia, ele pode ler livros e escrever livros; ele pensa e entende de forma diferente, porque ele é diferente em seu tipo [anders geartet ist] e permanece em cada linha de pensamento decisiva nas condições existenciais de seu tipo.” Infelizmente, a natureza e significância de tais afirmações não são seriamente consideradas na análise de Schupmann.

Schupmann termina seu livro com um apelo a pesquisadores contemporâneos ao transcendente ‘agnosticismo [que] conduz em parte ao ocasionalismo biográfico de Schmitt e a facilidade com que ele juntou-se ao partido nazista uma vez que ele tomou o poder. Nós podemos fazer melhor” (215). Certamente, se poderia esperar isso. Contudo, não se segue então que ‘nós podemos combinar a análise formal de Schmitt do estado e da constituição com um comprometimento filosófico ao liberalismo’ (215), nem se segue que nós deveríamos reabilitar Schmitt como um teórico de estado liberal. Talvez, em lugar disso, os historiadores deveriam continuar a explorar as teorias de Schmitt dentro de seus múltiplos contextos históricos.

***

Perilous Futures: On Carl Schmitt’s Late Writings, de Peter Uwe Hohendahl, apresenta uma imagem espelhada do estudo de Schupmann: onde Schupmann vê continuidade no pensamento de Schmitt através do tempo, Hohendahl incita um ‘retorno às raízes históricas de Schmitt’ através da ‘[exposição] da obra mais tardia de Schmitt como parte de uma constelação histórica específica’ (3). Em vez de focar em conceitos políticos e jurídicos discretos, Perilous Futures é organizado em torno de textos específicos. Enquanto o primeiro capítulo olha para os diários e ‘pequenos ensaios’ de Schmitt, os capítulos subsequentes se voltam a sua monografia Theory of the Partisan e a sua Political Theology II. O capítulo de Hohendahl sobre Schmitt e ‘O Destino do Colonialismo Europeu’ faz uma correção importante às recentes interpretações da obra de Schmitt: que, longe de ser o proto anti-imperialista que Andreas Kalyvas o tornou recentemente, Schmitt meramente lamentou a perda alemã de suas colônias depois da Primeira Guerra Mundial e a aparente hipocrisia do ‘imperialismo moderno’ americano.

Da mesma forma, seu capítulo de conclusão, intitulado ‘Existe um Schmitt utilizável?’, pergunta a importante questão de como foi que a recepção na cultura anglo-americana se tornou tão radicalmente distinta das leituras mais históricas e críticas encontradas na academia alemã. Parte disso, Hohendahl argumenta, surge da mobilização de Schmitt pela esquerda contemporânea – Hohendahl toma Slavoj Žižek e Chantal Mouffe como exemplos paradigmáticos – como um crítico de teoria liberal, particularmente como uma resposta para o domínio de Jürgen Habermas e John Rawls (182). Como Hohendahl coloca: “Schmitt, o fora da lei dos anos recém pós-guerra, se havia tornado agora o salvador da oposição de esquerda” (182). Para Hohendahl, a esquerda política é responsável pela imagem higienizada de Schmitt agora dominante em sua recepção anglo-americana. No entanto, isso nos leva a questionar o papel desempenhado pelos relatos mais antigos e altamente excludentes do pensamento de Schmitt em inglês, The Challenge of the Exception, de George Schwab, e Carl Schmitt: Theorist for the Reich, de Joseph Bendersky, na construção da versão higienizada do pensamento de Schmitt de que a esquerda se apropria hoje.

De fato, enquanto o renovado foco histórico de Hohendahl é um corretivo bem-vindo para a apropriação frequentemente anacrônica e, às vezes, superficial da obra de Schmitt na teoria crítica contemporânea, Hohendahl não oferece uma leitura precisa histórica de Schmitt. De fato, o leitor de mentalidade histórica pode se perguntar quando exatamente os ‘Late Writings’ de Schmitt devem começar. É no período depois de 1945, que Hohendahl descreve como uma ‘cesura afiada’ devido à derrota do Nacional Socialismo (19)? Ou é anterior, onde o livro de Hohendahl em si começa, com a publicação de Schmitt de sua teoria Großraum (grandes espaços), com ensaios individuais aparecendo em 1938? E qual é a justificativa de Hohendahl para periodizar a obra de Schmitt onde quer que ele de fato a delimite?

Para Hohendahl, parte do caráter do trabalho ‘tardio’ de Schmitt é sua ‘perspectiva nova, internacional’, e aqui ele cita a história pós-guerra da lei das nações, O Nomos da Terra (1950), como um exemplo chave. O problema com esta interpretação, contudo, é que o interesse de Schmitt e os escritos dele sobre política internacional começou muito antes. Schmitt não apenas foi um co-diretor do Institute for International Law and Politics na Universidade de Bonn, começando em 1923, mas também publicou uma tremenda variedade de artigos sobre direito internacional e política durante a República de Weimar. Estes artigos abordaram discussões da Liga das Nacões, a ocupação do Rhineland, as formas de imperialismo moderno e muitos outros tópicos relacionados ao direito internacional e a política internacional do período entreguerras. Assim, uma vez delimitado dentro de seu corpo de trabalho mais amplo, pareceria que uma ‘perspectiva internacional’ não pode ser, em si mesma, a característica determinante dos ‘Late Writings’ de Schmitt.

Por vezes, parece que Hohendahl não levou em conta muito do trabalho de Schmitt ou da inundação mais ampla da literatura secundária de Schmitt desde os anos 1980. Por exemplo, ao discutir o Glossarium de Schmitt, Hohendahl afirma que “ele começou um novo diário em agosto de 1947 e continuou escrevendo até agosto de 1951”. Daí, ele percebe que “da densidade mais baixa em 1951, torna-se aparente que a forma do diário perdeu usa importância crucial para o autor” (33). Esta observação então torna-se uma importante ferramenta interpretativa para o resto do capítulo de Hohendahl. Infelizemente, a premissa fundamental é factualmente incorreta: Schmitt não parou de escrever em 1951, mas os registros em seu Glossarium extenderam-se até 31 de dezembro de 1958. Hohendahl estava simplesmente usando a primeria edição do Glossarium, que foi arbitrariamente mutilada por seu editor para terminar em 1951. Além disso, a morte da esposa de Schmitt, Duschka Schmitt, em dezembro de 1950, parece ter escapado à atenção de Hohendahl como a possível explicação para o reduzido número de registros no início de 1951.

Há também várias outras afirmações problemáticas no texto de Hohendal. Por exemplo, Hohendahl alega que “Schmitt não retornou à Doutrina [Monroe] em seus escritos pós-guerra, embora teria sido uma ferramenta útil para uma crítica continuada do liberalismo dos E.U.A.” (87). De fato, Schmitt dedicou um capítulo inteiro de Nomos da Terra, intitulado ‘The Western Hemisphere’, para uma discussão das origens históricas da Doutrina Monroe. Da mesma forma, a Doutrina Monroe aparece em múltiplos registros em Glossarium. Além destes erros factuais, há alguns problemas de tradução que modificam o sentido do argumento de Schmitt. Por exemplo, Hohendahl cita  Ex Captivitate Salus de Schmitt criticando uma “tecnocracia completamente profana” (50). O termo alemão, contudo, não é ‘Technokratie’ mas sim ‘Technizität’, geralmente traduzido em inglês como ‘technicity’, que, de forma alguma implica uma forma de regra.

Além do mais, o valor do Glossarium para uma leitura histórica da obra de Schmitt parece ser negligenciada: estes registros do diário mostram exatamente quando Schmitt estava desenvolvendo certos argumentos pós-guerra e eles frequentemente incluem alvos polêmicos, elucidações e modificações que não aparecem em textos publicados. Entretanto, ao focar na forma estilística mais do que em conteúdo e contexto, Hohendahl pula para uma série de conclusões estranhas. Por exemplo, Hohendahl argumenta que Schmitt usou línguas estrangeiras em seus diários para “identificar-se com o autor que citou” (33). Isto conduziria a uma interpretação de Schmitt verdadeiramente espantosa, pois implicaria que Schmitt identificava-se com autores como Aldous Huxley (14 dez. 1947), bem como com R.P. Bruckberger, um membro da Resistência Francesa (26 nov. 1949). Em vez disso, o próprio Schmitt oferece uma franca explicação em seu registro no diário de 14 de dezembro de 1947. Escrevendo em inglês, Schmitt afirma que “Huxley (Uma nação) pode apenas ser condenado fora de sua própria boca.” Usando línguas estrangeiras em seu diário pode assim tomar a forma de uma estratégia polêmica de usar as próprias palavras de um autor contra ele mesmo.

Enquanto a abordagem histórica para interpretar Schmitt é certamente desejável em teoria, há, supreendentemente, pouca pesquisa histórica envolvida para uma leitura histórica do pensamento de Schmitt. De fato, pode-se esperar que pelo menos algum compromisso com o arquivo de Schmitt em Duisburg, ou com a interpretação de suas monografias com seus ensaios mais curtos a seu contexto (geo)político e discursivo imediato. Em vez disso, Hohendahl fornece um sumário superficial de um pot-pourri dos textos de Schmitt sem entregar algo muito novo no que concerne a documentos não publicados, correspondências ou marginalia. Perilous Futures é, assim, dificilmente a última palavra sobre o histórico Carl Schmitt.

***

Ao fim de seu centenário discurso, o Bundespräsident Steinmeier apelou por “mais atenção, mais sangue vital e sim, também mais recursos financeiros, para os lugares e os protagonistas da história de nossa democracia”. Tal projeto é certamente necessário, já que o status de quase-celebridade de Schmitt continua a eclipsar o trabalho de seus contemporâneos tais como Heller, Ernst Fraenkl e Hans Wehberg, particularmente dentro da academia anglófona. Essa distorção é parcialmente uma questão de tradução: o magnum opus de 1927 de Heller sobre Soberania: Uma contribuição para a teoria do direito público e internacional somente apareceu em tradução inglesa em 2019, enquanto relativamente poucos dos textos de Wehberg sobre pacifismo e direito internacinal apareceram em inglês durante a sua vida. Os ‘protagonistas’ da democracia alemã, portanto, continuam inacessíveis para uma audiência acadêmica mais ampla.

Em contraste, a maioria das monografias de Schmitt já estão disponíveis em inglês, com um movimento crescente em direção à tradução de seus ensaios menores, resenhas de livros e até mesmo artigos de revista. Há, contudo, uma notável exceção: os panfletos Nacionais Socialistas que Schmitt publicou depois da tomada do poder de Hitler, tais como State, Movement, People e State Structure and Collapse of the Second Reich, bem como ensaios como “The Logic of the Intellectual Submission”. A ausência de uma edição crítica e acadêmica destes textos continua a distorcer a recepção internacional de Schmitt, obscurecendo as próprias fontes que podem conduzir falantes alemães a ver Schmitt com nada menos que repugnância.

Para seguir Steinmeier, a tarefa de ir adiante para uma história intelectual da democracia alemã é, portanto, dupla. De um lado, ela deve recuperar as contribuições dos ‘protagonistas’ que foram negligenciados, recapturando não apenas o seu trabalho, mas também as extremas consequências que muitos deles enfrentaram como resultado destas visões. Ao mesmo tempo, porém, há uma responsabilidade de desbastar a recepção higienizada de figuras como Carl Schmitt, que tem frequentemente preferido ignorar ou minimizar seu envolvimento com o Nacional Socialismo. Tal projeto não é apenas sobre a precisão acadêmica e sobre desmascarar os persistentes mitos que circundam o jurista de Plettenberg; antes, seguir uma das citações preferidas de Schmitt do poeta Theodor Däubler: “o inimigo incorpora nossa própria questão.” Posicionar Schmitt no passado dentro de seu contexto histórico pode apenas nos fornecer uma imagem mais clara de nosso inimigo, e, no processo, iluminar questões que nos confrontam hoje.

Joshua Smeltzer é um estudante de doutorado da Universidade de Cambridge buscando PhD em Política e Estudos Internacionais, com foco no pensamento político alemão do século vinte.

Imagem padrão
Lucas Leiroz

Ativista da NR, analista geopolítico e colunista da InfoBrics.

Artigos: 597

Deixar uma resposta