As raízes metafísicas das ideologias políticas

Por Alexander Dugin

Tradução: Matheus Iale

Texto escrito em 1988, publicado pela primeira vez na revista Mily Angel em 1991, posteriormente publicado no livro Konservativnaya Revolyutsiya em 1994 e no livro Konspirologia em 2005.

A confusão das definições na ciência política

Na ciência política moderna, na sociologia e nas disciplinas que se tornaram inseparáveis destas, como a história da religião, a etnologia e a antropologia (que em tempos recentes se renderam à estatística e ao economicismo), o caos reina em relação às definições fundamentais de tendências políticas tais como fascismo, comunismo, socialismo, democracia, etc. Além do fato de que os próprios comunistas, fascistas e democratas definem, por via de regra, vaga e contraditoriamente suas posições ideológicas (um fato explicável em considerável medida por objetivos puramente propagandísticas objetivos), ao mesmo tempo todas as proporções foram finalmente distorcidas em meio à popularidade particularmente elevada das metodologias da Nova Esquerda, às quais a própria palavra “fascismo” se tornou sinônimo para tudo de ruim e comunismo (leia-se “liberdade de vontade”) para tudo de bom. Por outro lado, entre os democratas moderados e os liberais moderados, outra definição tornou-se popular, a dos soviétologistass, de que “comunismo é fascismo”. Quando se trata de fatores como religião, governo autoritário, especificidade nacional e cataclismos ecológicos , as estruturas lógicas desmoronam e qualquer razoabilidade nas definições é às vezes substituída por paixão, emoção e simpatias individuais e nacionais, etc.

Tudo isso é, em certa medida, até mesmo característico  de nossa ciência política russa, cuja condição se deteriorou devido não apenas à considerável aleatoriedade da ciência política estrangeira, para a qual muitos sociólogos russos se orientam, mas também devido aos muitos anos em que era necessário “dormir” intelectualmente ou simplesmente esconder a opinião em questões de política, que, no final, levaram ao domínio de “declarações indiretas” expressas com um olhar no dogma totalitário de cuja forma não se podia distanciar nem um único passo. Deste modo, não apenas nossa ciência política como disciplina que estuda os espectros e a razão das ideologias, mas também nossa própria política, isto é, a esfera das afirmações ideológicas realmente diretas (não analíticas), acabou sendo composta de teses irracionais e contraditórias, discussões grotescas e absurdas, e um sistema de alusões que formaram o “argo” soviético que só pode ser decifrado com o conhecimento de códigos particularmente sofisticados entendidos apenas pelas próprias “elites” e “sovietologistas ocidentais”. Seja como for, a necessidade de definições claras para os princípios e relações de diferentes tipos de ideologias continua premente e relevante, na medida em que a possibilidade de declarações ideológicas sem censura poderá em breve tornar-se a norma na Rússia.

Nesta situação, propomos nossa própria variação de um esquema político fundacional que, em nossa opinião, ajudará a cortar o nó górdio das contradições políticas e isolará os principais complexos ideológicos irredutíveis ou “extremos” ideológicos, cujas variações e numerosas combinações formam o multicolorido espectro da política global contemporânea. De forma alguma afirmamos que nosso entendimento é absoluto, pois permanece apenas um esquema e, portanto, deve ser tomado com uma aproximação bastante grosseira. Ao mesmo tempo, porém, estamos convencidos de que nenhum quadro sintético ou holístico pode ser obtido aprofundando-se em detalhes e nuances. Pelo contrário, aplicar o princípio ao concreto é sempre uma tarefa fácil e puramente técnica. Além disso, em nossa opinião, é o medo da esquematização e do compromisso com o método analítico que levou a ciência política ao estado miserável em que se encontra hoje, um estado de “pobreza luxuosa”. Em nosso estudo, empregaremos diversas esferas do pensamento humano, partindo naturalmente dos conceitos religiosos e metafísicos, pois é neste nível, direta ou indiretamente, afirmativa ou negativamente, que as especificidades das diferentes plataformas políticas são predeterminadas.

O dogma metafísica por trás das cenas

Nós acreditamos que as origens da política e da autodeterminação política do homem derivam, antes de tudo, de certos dogmas metafísicos e só mais tarde extraem slogans e clichês da realidade social específica pela qual esses dogmas encontram sua expressão direta.  Além disso, na maioria dos casos, esses próprios dogmas permanecem inteiramente nos bastidores, e não apenas os representantes comuns de uma ideologia, mas também seus expoentes ou “criadores”, às vezes, nem sequer têm a menor idéia disso. Esses dogmas metafísicos podem enraizar-se em uma pessoa através da implicação semântica dos símbolos e signos tradicionais (o fator cultural e social), por meio de atitudes psico-mentais inatas (o fator psicogenético) ou pela reação existencial do homem ao Ser (o fator existencialista). Em qualquer caso, os dogmas metafísicos que predeterminam a ideologia são experimentados pelo homem como algo interno, incondicional e como algum tipo de imperativo existencial. Talvez seja por isso que as tentativas de identificar esse dogma em sua forma pura são tão frequentemente repugnantes e provocam reações repulsivas. Isso pode ser visto também em um nível mais superficial, quando o portador de uma doutrina política específica, muitas vezes, acha difícil determinar a essência de sua principal posição (e não alguma posição específica em relação a um dado assunto), identificando, em vez disso, sua posição como algo auto-evidente. Por exemplo, há comunistas que desconhecem o fato de que a ideologia comunista pertence à categoria de ideologias de “esquerda”, uma categorização que é consistente com sua posição objetiva, acreditando que o comunismo não é nem de direita, nem de esquerda, mas “de centro” ou  naturalmente “verdade”.

Independente dos protestos de partidários comuns de certas visões políticas ou de cientistas políticos analíticos sofisticados, não é outro senão a generalização de princípios ideológicos e os dogmas metafísicos de ideologias que permite navegar de alguma maneira as complexidades dos processos políticos contemporâneos. Livros como “Fanáticos do Apocalipse” de Norman Cohn, “O Fenômeno Socialista” de Igor Shafarevich e os trabalhos de Alain Besançon (escritos como tentativas de generalizações em escala global), apesar de todo o ceticismo a cerca deles, mais cedo ou mais tarde se tornarão pontos de referência para a maioria dos especialistas no campo e modelos mais detalhados e com maiores nuances serão construídos a partir deles. Nesse sentido, enquanto generalizarem algo, até mesmo os quase irracionais ideólogos dos Novos Filósofos (como Lévy e Glucksmann) serão frequentemente tomados como pontos de partida para o estudo de sociólogos e cientistas políticos mais “sóbrios” e “racionais”. Ademais, é precisamente no nível das generalizações globais que os representantes de cosmovisões diametralmente opostas freqüentemente adotam uma única e mesma imagem objetiva do espaço ideológico. Apesar do fato de que eles poderiam naturalmente colocar ênfase moral e valorada em polos opostos deste espaço, ao mesmo tempo, sem essas generalizações, o próprio uso de certos termos por um grupo político ou outro é tão diferente que a impressão é de que pessoas que aderem a diferentes ideologias pertencem a universos completamente diferentes, sem qualquer terreno comum. No entanto, é precisamente o acordo sobre a imagem objetiva do espaço ideológico entre antagonistas políticos, acordo produzido por generalizações globais e esquematizações, que trouxe vida ao cunho da “união entre extrema direita e extrema esquerda”.  Este cunho, que seria completamente sem sentido se o entendêssemos literalmente, é, na verdade, apenas um tipo distorcido de averiguação do “acordo sobre generalização objetiva” entre os mais profundos ideólogos das mais diferentes orientações que, com a maior clareza, compreendem os dogmas metafísicos subjacentes às suas próprias posições.  Isto contrasta com o portador ordinário de idéias que age mais por inércia ideológica e não separa a causa do efeito ou, em outras palavras, a idéia de seu portador, isto é, de si mesmo. Foi isso que Dostoiévski tinha em mente quando descreveu o personagem Kirillov em seu romance “Os Dêmonios” como tendo sido “comido por sua idéia”.

Podemos, portanto, falar de extremismo apenas no sentido etimológico da palavra, ou seja, como a penetração “final” (o “extremo”, o “limite”) da essência de suas próprias posições e das dos outros. Em vez de uma “coincidência” ou “fusão” de opostos, na realidade estamos lidando com os proponentes da “compreensão” das ideologias opostas (ou falta desta, que não seria mais “extremismo”) das origens profundas e dos dogmas metafísicos que emergem através dos pragmaticamente avançados slogans propagandísticos, idéias e doutrinas de forças políticas específicas. Na vida ideológica real, como na realidade em geral, os opostos não coincidem, pois, de outro modo, a luta espiritual das posições metafísicas e a própria realidade seriam espetáculos ilusórios desprovidos de qualquer significado último.

Paradigmas nas sociedades tradicionais

Na busca por termos que seriam adequados para caracterizar essas tendências filosóficas fundamentais que empregaremos em nosso esquema, seria melhor apelar para a história das sociedades tradicionais, isto é, aquelas sociedades nas quais os dogmas metafísicos eram expressos diretamente na linguagem metafísica.

Em nenhuma sociedade é mais fácil de encontrar do que nas sociedades tradicionais “casos limítrofes” daqueles princípios que sempre – fora do tempo – permaneceram os fatores determinantes na história ideológica da humanidade, aqueles que não expiram ou desaparecem, mas apenas mudam suas formas ao longo da história,  bem como um corpo humano que não muda dependendo do estilo em moda, mas é, no entanto, diferente em proporções como, por exemplo, entre várias raças.

Ideologia Paraíso-Polo

O primeiro tipo de ideologia que podemos distinguir é a ideologia do Paraíso-Polo, que se manifestou historicamente na tradição gnóstica, no esoterismo e na doutrina interna e secreta dos ensinamentos religiosos, e no nível político como o sagrado imperialismo dos gibelinos na Idade Média e, por fim, como o Nacional Socialismo alemão no século XX. A essência dessa posição se resume a afirmar o Sujeito da Natureza Divina que repousa no coração (no polo ou no meio) de e completamente dominando (portanto “paradisíaco”) o cosmos sacralizado, o cosmos espelho, no qual nada se reflete além o próprio sujeito, o sal da Terra e do Céu. O Sujeito Divino não tem nada fora de si mesmo, sobre ele, ao seu redor, ou por baixo dele, não tem nenhum princípio metafísico mais elevado para se levar em conta espiritualmente, e é, portanto, absolutamente livre e inseparável de Deus. Deus está dentro dele. Essa posição corresponde à afirmação de Cristo da máxima do Antigo Testamento no Evangelho: “Eu disse: sois deuses”. Não há Deus fora dele. Assim, no cosmos, na natureza e na Terra há apenas a reflexão do Sujeito Divino; a natureza sendo, assim, sinônimo do Paraíso – não um obstáculo à sua Vontade, mas a extensão de sua Vontade, a realização de sua Vontade, seu“grande corpo ”. Tais são os princípios essenciais da cosmovisão polar-paradisíaca. Onde quer que esta cosmovisão surja, imediatamente emergem temas tais como o Herói, a Divina Encarnação, o Santo Imperador, o Líder Angélico e o Profeta, por um lado e, pelo outro, o Cosmos Sagrado e a sombra e extensão do sujeito não oposta a ele. “Outro Mundo”, “mundo melhor”, “Reino de Deus na Terra”, “Império Sagrado”, “Novo Céu e Nova Terra”, “Novo Paraíso”, “Reich de Mil Anos”, etc. – todos esses podem ser sinônimo de tal cosmo sagrado. Quaisquer que sejam as formas históricas desse tipo de ideologia, todas elas se desenvolvem a partir desse paradigma intrínseco de Polo-Sujeito e Cosmos-Paraíso. A ênfase sempre recai sobre a ausência de uma distância intermediária entre esse polo imanente e o Absoluto, o Princípio Transcendental que se abre de dentro do Polo-Sujeito como este próprio Sujeito, como sua dimensão interna.

Por via de regra, a cosmovisão Paraíso-Polo é, de forma estrito, monarquicamente orientada, isto é, na história ela se esforça para elevar ao máximo a figura do Governante, a necessariamente Uno e Angelizado do “lado polar”. Junto a isso, ela tende a horizontalizar a distribuição do poder deste Governante através da expansão imperial e atraindo para a esfera das coisas sujeitas ao Governante, e a esfera da reflexão de sua personalidade, uma quantidade máxima de espaço cósmico, que é assim convertida em Paraíso (o Império Sagrado) ou no campo da dimensão sacro-celestial restaurada. Aqui, no entanto, deve-se ressaltar que tal monarquismo e “imperialismo” nem sempre correspondem a monarquias e impérios históricos, na medida em que o fundamento dessa cosmovisão polar-paradisíaca está necessariamente em conjunto com a totalidade.  A falta de subjetividade do monarca ou a falta de uma dimensão celestial do cosmo , mesmo em meio à sua presença nominal, leva à revolução gnóstica que, por sua vez, busca restaurar o Polo e o Paraíso em todo seu volume metafísico, sem espaço para relatividade, circunstâncias ou “Acordo coletivo.”

Como uma tendência fundamental, a ideologia polar-paradisíaca nunca esteve confinada apenas à esfera política, mas projetou-se no reino da pura especulação, ensinamentos religiosos e das “ciências sagradas”. Na tradição hermética do Ocidente Medieval em particular, o símbolo central era o “Rei Alquímico”, o “Enxofre Vermelho”. Na tradição hindu, existe uma escola inteira de prática iniciática e realização espiritual chamada Raja Yoga, ou “Yoga Real”. Além disso, os termos “Rei”, “Monarca” ou “Czar” são mais comuns na maioria dos escolas esotéricas, como entre místicos cristãos (o Rei Celestial), muçulmanos (especialmente xiitas), lamaístas, gnósticos judeus (cabalistas), etc.

De fato, esses dois lados da ideologia polar-paradisíaca, política e a religião, nunca foram completamente dissociados – nem na antiguidade, quando os padres participavam do processo de governo monárquico nos antigos estados do Oriente, nem na modernidade, como na Alemanha nas décadas de 1910 e 1920, quando os esoteristas de sociedades herméticas secretas se caracterizavam por particularidades raciais (os herdeiros dos portadores da ideologia polar-paradisíaca na Idade Média – os Templários e Gibelinos)participaram ativamente da formação do Nacional-Socialismo. O mesmo pode ser dito em relação à Gnose xiita centrada na persona do Imam Escondido, um análogo ao Sujeito Divino que é inseparável dos eventos políticos contemporâneos que se desdobram no Oriente Médio e especialmente no Irã.

Pode-se também apresentar o exemplo dos rosacrucianos europeus, cujos símbolos fundamentais, a Rosa e a Cruz, significam os quatro rios do Paraíso na Terra (a Cruz) e o espírito do Iniciado encontrando-se no Polo, no centro do Paraíso, no ponto de convergência dos quatro rios (a Rosa). O próprio chefe da organização Rosacruz carregava o título de “Imperator”, que torna todo o sistema de correspondências totalmente genuíno.  A influência dos rosacrucianos no processo político na Europa foi extremamente considerável, como no caso dos autênticos Rosacruz até 1648, participando ativamente da Reforma e de outros fenômenos políticos pós-medievais mais importantes, bem como no caso das organizações pseudo-rosacrucianas como a Societas Rosicruciana em Anglia, Golden Dawn no exterior, HB de L., A.M.O.R.C., etc., que no final do século XIX e início do século XX estavam envolvidos em todos os eventos políticos e geopolíticos mais importantes da política ocidental.

Ideologia  Criador-Criação

O segundo tipo de ideologia é a ideologia “Criador-Criação”, que pode ser chamada de puramente conservadora. Essa ideologia corresponde ao lado externo e exotérico dos ensinamentos religiosos, mas também pode se manifestar e predominar nas sociedades não-religiosas em virtude da inércia. A forma mais pura dessa ideologia pode ser vista em organizações da Igreja do tipo católico ou na Ummah Islâmica (principalmente os sunitas). Em geral, seria mais preciso aplicar os termos “teocracia” ou “clericalismo” para tal. Este tipo também pode ser definido como a cosmovisão do “Paraíso perdido” onde, ao contrário do princípio polar-paradisíaco, este tipo de cosmovisão coloca o sujeito não no centro do Mundo (no polo), mas na sua periferia. O mundo em si é equacionado aqui não com o céu ou o paraíso, mas com a Criação que separa o sujeito do Criador. Consequentemente, este sujeito periférico, um sujeito pós-Queda que foi expulso do Paraíso, não é mais reconhecido como o Mestre Divino a quem o cosmos é completamente subordinado como uma extensão de sua vontade. Ele se torna um proscrito, separado do Criador pela Criação, que se torna um território ambíguo na medida em que, por um lado, esta Criação esconde o Criador (o aspecto negativo), enquanto por outro lado, carrega o selo do Criador, o que significa que indiretamente o revela (o aspecto positivo). É com este postulado que o pensamento religioso começa a se desenvolver e pode se desenvolver das mais diferentes formas, desde o puro apofático (negando a possibilidade de se conhecer o Criador através da Criação) até o puro catafático (afirmando a possibilidade de se conhecer o Criador na Criação até o ponto em que panteístas igualam os dois).

A ideologia Criador-Criação ou “criacionismo” (do latim creare – criar) em todas suas formas e variações está empre oposta à abordagem gnóstica da ideologia polar-paradisíaca para a qual o tema da Criação ou a separação entre Criador e Criatura é totalmente estranho. De fato, a frente principal da luta ideológica na história corre entre esses dois tipos de ideologias. Examinemos isso em maior detalhe.

O sujeito divino está no centro do mundo e o mundo está sujeito e subordinado a ele. Neste caso, se este estado das coisas for violado, a ideologia polar-paradisíaca não altera seus princípios, mas, simplesmente, ao reconhecer um desvio das circunstâncias da norma, esforça-se para restaurá-la. Na ideologia polar-paradisíaca, o sujeito divino não pode ser expulso do Paraíso na medida em que residir no Paraíso é uma categoria inalienável de sua identidade. Isso significa que o Sujeito Mestre nunca pode ser transformado em um sujeito proscrito. O primeiro pode meramente se esconder – juntamente com o Paraíso (o Imam Oculto dos Xiitas, o Imperador Adormecido dos Gibelinos, etc.). Aqueles seres que não conhecem nem o Sujeito Divino nem o Paraíso são, do ponto de vista da cosmovisão polar-paradisíaca, simplesmente desprovidos da realidade fundamental, dominados pela ficção e, portanto, não têm o direito de estabelecer uma nova metafísica como a do tipo  Criador-Criação, na medida em que não existe um sujeito proscrito ou, em outras palavras, um proscrito não pode ser o sujeito. Por conseguinte, surge a forma extrema do anti-clericalismo gnóstico e a noção do Criador Mau, o Demiurgo Maligno. A noção do Demiurgo Maligno se baseia no pressuposto de que, se o fato da separação do Criador e da Criação não pode ser aceito por qualquer motivo, nem o Criador nem a Criação são espiritualmente positivos. Assim, seguindo esta lógica, o Criador não é outro senão o Usurpador Maligno (‘Awtad dos gnósticos ou o Samail dos Albigenses) e a Criação é nada mais que uma ilusão maléfica e temporária, um véu sobre o Paraíso. É importante salientar que aqueles que sustentam a cosmovisão polar-paradisíaca se opõem ao sujeito não-polar e ao cosmos não-paradisíaco (fora da totalidade dos quais as noções de Deus-dentro-e-sem, Deus-o-Objeto, e o Criador Distante emergem), não a idéia do Espírito ou do próprio Deus.

Por outro lado, a ideologia Criador-Criatura, exotérica e clerical, considera os portadores da doutrina do Paraíso-Polo subversivos contra os próprios fundamentos da Religião e da Fé, na medida em que rejeitam ambas as figuras fundamentais dessa ideologia: o sujeito proscrito e o Criador por trás da Criação. Além disso, eles são vistos como colocando-se logicamente (em virtude de estarem envolvidos direta ou indiretamente com o Sujeito Divino) no mesmo nível que o próprio Criador, e às vezes acima dele. Tais conclusões lógicas permitem que a consciência clerical identifique os seguidores das cosmovisões polar-paradisíacas como luciferianos, satanistas, como inimigos de Deus e do Homem. De fato, estas próprias noções servem para caracterizar tipicamente o “orgulho polar-paradisíaco”.

A negação fundamental dos gnósticos a um sujeito proscrito, no entanto, não impede o reconhecimento de tal figura, embora sem postulá-la como portadora de subjetividade. Isto logicamente leva os gnósticos a um dualismo antropológico e à afirmação de irremediável desigualdade. Todas as pessoas são, para o Sujeito Polar, divididas em duas categorias: Homens-Deuses, Sujeitos Divinos e Super-homens (a elite, aristocracia espiritual, pessoas 1superiores, “Sonnenmenschen”, “Filhos da Luz”, etc.) e animais não-subjetivos (plebeus, pessoas inferiores, sub-humanos, “Tiermenschen”, “Filhos da Escuridão”). Aqui surge as diferenciações de castas, raciais ou intelectuais encontradas em todos os ensinamentos puramente esotéricos. O sujeito proscrito da ideologia Criador-Criação é naturalmente entendido pelos gnósticos como pertencente à categoria inferior de pessoas. Tal abordagem confirma todas as suspeitas exoteristas do gnosticismo.

Deve-se notar, no entanto, que a tradição cristã em si era originalmente polar-paradisíaca em relação ao clericalismo judaico, no qual a ideologia Criador-Criação é expressa de forma mais óbvia e pronunciada, devido a sua afirmação do“Novo Homem” dos Apóstolos, nascido do reconhecimento da encarnação da Palavra de Cristo-Emanuel (isto é, “Deus está conosco”). Em poucos séculos, a gnose cristã, insistindo na dominante polar-paradisíaca, entrou em conflito com a já florescente ortodoxia puramente cristã, não judaica, isto é, a versão clerical do cristianismo, na qual o tema Criador-Criação veio cada vez mais a tomar o lugar do “Paraíso reconquistado”. O complexo gnóstico foi gradualmente deslocado e retirado para o reino de organizações esotéricas secretas e, às vezes, de seitas heterodoxas. Os albigenses e os cátaros foram os últimos representantes do “cristianismo polar” na Idade Média. Esse complexo polar-paradisíaco reapareceu mais tarde no anabatismo e na reforma, embora em forma consideravelmente distorcida.

Vários aspectos essenciais da ideologia Criador-Criação são sua catolicidade característica, fé e estabilidade conservadora. Sua catolicidade (do grego katolikos que significa “tudo tomado em conjunto”) é o resultado da não-divindade do sujeito proscrito que, tendo perdido a posição central no mundo, não é mais auto-suficiente e, portanto, precisa de integração social, isto é, entrar em diálogo com outros sujeitos proscritos. Esta catolicidade é necessária para os adeptos da ideologia Criador-Criação, uma vez que somente através do envolvimento de um número excessivamente grande de indivíduas proscritos do Paraíso no processo de busca pelo caminho de retorno, a consciência clerical vê uma oportunidade de mudar a condição do sujeito não-divino. A catolicidade pode e deve assumir hierarquia, mas essa hierarquia é construída a partir de baixo, enquanto a personalidade mais “católica” deve estar no topo. Em contraste, a hierarquia da consciência polar-paradisíaca é construída a partir do topo, começando com o Sujeito Divino que não é católico ou composto, mas absolutamente integral, com o grau de não-integralidade aumentando à medida se distancia nos degraus hierárquicos abaixo. Essas diferenças podem ser traçadas no exemplo dos pressupostos sunitas e xiitas sobre o poder político. Os sunitas (o ramo exotérico do Islã) representam o poder eleitoral em que a maioria avalia as qualidades religiosas de um determinado candidato, enquanto os xiitas insistem no direito do poder hereditário destinado a assegurar a continuidade genética da raça do primeiro Santo Imam, Ali.

A necessidade da fé decorre do fato de o Criador estar oculto por trás da Criação, que para o crente supõe uma consciência puramente religiosa como algum tipo de ato volitivo de afirmação do não-evidente. A fé é uma qualidade integral do sujeito proscrito. A posição do Paraíso-Polo, pelo contrário, é fundada no conhecimento. Daí, o título característico de “gnosis” (“conhecimento”) e “gnóstico” (sabendo). O conhecimento pressupõe o contato direto e já estabelecido com Deus de dentro e a evidência do Deus interno, que torna a fé redundante. A consciência exotérica acredita que a reinvidicação gnóstica ao “conhecimento” é Satanismo e auto-exaltação desqualificada.

Por fim, a estabilidade conservadora da ideologia Criador-Criação repousa em sua atitude neutra em relação ao Ser como um todo. Esta atitude não pressupõe transformações súbitas, traumáticas ou abruptas, e esta neutralidade está fundamentada em uma atitude fundamentalmente ambivalente em relação à Criação. As abordagens apofática e catafática assumem uma duração indefinida que é tão indefinida quanto os limites da própria Criação. Em outras palavras, pode-se arbitrariamente e, enquanto desejar, considerar o aspecto positivo do cosmos e nele encontrar as marcas do Criador, assim como indefinidamente distinguir os contrastes da Criação com o Criador, pois tal não pode mudar a condição essencial do sujeito proscrito ou do Deus -Criador. O princípio da catolicidade é, por definição, incapaz de se desenvolver para o princípio da indivisibilidade e o princípio da Fé não pode se tornar o princípio do Conhecimento sem ir além da estrutura da ideologia Criador-Criação. Tal é, de fato, o caso da história com aqueles clericalistas que trataram a noção de Criador-Criação como algo transitório, concebido apenas para realizar o verdadeiro nascimento do Sujeito e a verdadeira descoberta do Paraíso. Se eles queriam intelectual e doutrinariamente formar suas aspirações espirituais e não estavam contentes com a misteriosa realização espiritual “do eremita”, então instantaneamente “caíram em heresia”, isto é, ficaram fora da ideologia religiosa exotérica e foram excomungados.

Deve-se notar também que a cosmovisão polar-paradisíaca está longe de ser conservadora, sendo escatológica, pois a suposta ausência de polaridade paradisíaca no Ser é sentida como um mal absoluto. Como se segue, uma luta profunda e intransigente deve ser travada contra quaisquer condições não-paradisíacas (enquanto a condição da Criação-Criador não é paradisíaca aos olhos dos próprios conservadores). A cosmovisão polar-paradisíaca que se esforça para pôr fim ao Ser não-paradisíaco, isto é, o Fim do Mundo (daí a escatologia, a “ciência do fim”), representa uma tendência desestabilizadora constante dirigida definitivamente contra a própria abordagem conservadora, contra a manutenção do status quo religioso. Encontramos este pathos escatológico em todos os tipos de cosmovisão polar-paradisíaca, desde os gnósticos cristãos e xiitas extremistas (islamistas) até a Reforma Luterana e a revolta nacional-socialista que proclamava o início do Reich milenar, o Terceiro Reich, ou o reino do Espírito Santo do místico cristão Joaquim de Flora (o primeiro reino é do Pai, o segundo do Filho e o terceiro do Espírito Santo).

Ambas as posições ideológicas, Criador-Criação e Paraíso-Polo, freqüentemente coexistem dentro da mesma sociedade, a mesma tradição, ou dentro de um sistema político. No entanto, isso de forma alguma nega a enorme diferença entre elas. Estes tipos ideológicos são irreconciliáveis, como fogo e água e luz e escuridão, e é entre eles que as batalhas tão ferozes (a Cruzada Albigense, o Califado Fatimida, a Guerra entre Guelfos e Gibelinos, a Revolução Francesa, etc) foram travadas, que seriam, de outro modo, impensáveis entre tradições, religiões ou sistemas políticos meramente diferentes.

A forma política da ideologia Criador-Criação pode encontrar expressão na “teocracia” exotérica, bem como no estado jacobino, o Estado-Nação. Como o brilhante cientista político Carl Schmitt mostrou, a “teologia do estado” é preservada, independente de organizações estritamente religiosas manterem posições centrais na sociedade ou não. O princípio Criador-Criação na forma também determina a especificidade tipológica da teocracia wahhabi da Arábia Saudita ou o “estado absoluto” fascista de Giovanni Gentile, que desenvolveu as teses hegelianas para suas conclusões finais e lógicas. Uma das marcas mais características de tal posição ideológica arquetípica e particular é o seu anti-escatologismo obrigatório e fundacional, que é igualmente peculiar tanto aos regimes seculares quanto às ideologias com acentuadas conotações religiosas. De fato, o anti-escatologismo religioso da ideologia Criador-Criação tem seu lugar mesmo quando a própria religião é explícita e inequivocamente escatológica, como é o caso do Cristianismo, em que se afirma doutrinariamente que Cristo vem ao mundo imediatamente antes do fim de seu fim, bem como no caso do Islã, que os muçulmanos consideram ser a última revelação pré-escatológica.  Isto também explica, em particular, o “anti-nazismo” de muitos países ocidentais, como a Inglaterra e os EUA, por um lado, e o anti-iranismo contemporâneo de muitos regimes do Oriente Médio e Norte da África, por outro. Em ambos os casos, a questão fundamental tomada é rejeitar o pathos escatológico, seja do Super-homem Ariano no primeiro caso ou da Revolução Islâmica Mundial associada ao aparecimento do Imam do Tempo no outro.

A Ideologia da “Matéria Mágica”

A terceira posição fundamental é a do “materialismo místico”, a ideologia da “Matéria Mágica” ou “panteísmo absoluto”. Este tipo de ideologia nega tanto os pares do Paraíso-Polo quanto os do Criador-Criação. Pode, também, ser igualado ao ateísmo puro. Aqui o sujeito é visto não como o Senhor Polar cujo eu interior é o próprio Deus, nem é um proscrito do Paraíso separado de um Deus externo, o Deus-Objeto, ou a Criação. Neste caso, o sujeito é levado a fazer parte do cosmos em que o próprio cosmos é refletido e nada mais. Em outras palavras, o sujeito não tem Deus interno ou externo e é em si nada mais que um espelho do mundo externo e, ao mesmo tempo, um elemento deste mundo. Assim, o ateu puro ou “materialista místico” de fato atribui ao cosmo a qualidade da divindade na medida em que as noções de Razão e Deus convergem essencialmente. Isto nos dá fundamentos para identificar essa ideologia como “panteísmo” ou “todo-divindade”, a identificação de todo o Cosmos e do Mundo com Deus. Uma das variedades mais marcantes dessa posição é o cosmismo, que pode, em princípio, ser considerado sinônimo de panteísmo.

Inseparável deste terceiro tipo ideológico é o conceito de evolução, isto é, a melhoria gradual e unidireccional da qualidade do cosmo até ao ponto da perfeição. Se os adeptos do ideal do Paraíso-Polo se esforçam para realizar o salto de uma vez por todas do não-paraíso e não-sujeito para o Paraíso e o Sujeito, e se os adeptos da idéia Criador-Criação estiverem interessados ​​em preservar o status quo ontológico (no qual a abordagem apofática seria equilibrada pela catafática), então a “matéria mágica” está acima de tudo interessada em melhorar contínua e gradualmente o cosmo cujo curso inercial é, em última instância, o auto-aperfeiçoamento em si e por si mesmo. No nível da ideologia, o significado de evolução e progresso pode ser reduzido não a algum tipo de criatividade particularmente excessiva, mas simplesmente seguindo o fluxo natural de eventos, eliminando ao longo do caminho esses obstáculos incorporados sobretudo aos conservadores clericais e imperialistas escatológicos. Estritamente falando, o sujeito da ideologia místico-materialista é o “servo da evolução”, ou seja, um espelho que reflete o processo evolutivo com a máxima distinção e clareza.

Apesar de sua intransigência, o conflito entre gnosticismo e conservadorismo sempre (ou quase sempre) ocorre dentro dos ensinamentos religiosos. Afinal, não há dúvida de que até mesmo os piores hereges nunca rejeitaram a própria idéia de Deus. No nível da “teologia do estado”, nem gnósticos nem “exoteristas” negam a necessidade da existência do Estado. O primeiro insisti intransigentemente no Império, enquanto o segundo está satisfeito com o estado-nação. Por sua vez, o materialismo místico é essencialmente não-religioso ou ateísta na medida em que a Razão (Deus) não está apenas oculta (atrás do cosmos ou dentro do ego humano), mas é simplesmente óbvia e sempre visível para os portadores da ideia da Matéria Mágica,  cercando-os na medida que esta razão seria o cosmos pelo qual não há motivo para se procurar em outro lugar. O mesmo vale para a idéia de estado, que é estranha em suas raízes para o materialista místico (como a tese de Marx sobre o desaparecimento do estado sob o comunismo, etc.).

Enquanto a ideologia do Paraíso-Polo fala do Divino, do Sujeito Central e do mundo a ele subordinado, e a ideologia Criador-Criação apresenta um sujeito proscrito para a periferia de onde permanece alienado, porém ainda indicativo da existência de Deus (enquanto, ao mesmo tempo, o esconde), “materialistas místicos” conhecem nenhum sujeito. De acordo com a revelação do famoso marxista, György Lukács, o sujeito e o objeto coincidem dentro do proletariado, isto é, a figura central das doutrinas materialistas mais radicais. O proletariado é a máquina humana ou espelho humano ideais. O mesmo pode, essencialmente, ser dito da noção de “noosfera” que “deduz” a mente a partir do desenvolvimento evolucionário da matéria. Sem dúvida, esta mente é um espelho do mundo externo.

Tal abordagem ao sujeito produz uma catolicidade particularmente materialista que idealmente implica a abolição da hierarquia por completo, mas na prática cria uma hierarquia especial baseada em graus de “cosmicidade”, isto é, classificação baseada na maior afinidade à natureza material do cosmos externo. Surge aqui a necessidade de colocar um objeto ou máquina no topo do coletivo ateu como uma concentração de pobreza espiritual. Daí a doutrina bastante característica da “ditadura do proletariado”.

Característici dos “servos da Matéria Mágica” é o puro agnosticismo, um terceiro caminho entre a Gnose e a Fé. O agnosticismo do materialismo místico é condicionado pela inadmissibilidade do sujeito questionar o conhecimento, uma vez que o sujeito, como parte integrante do cosmos, é apenas um dos fatos deste cosmos e nada mais, logo a capacidade reflexiva do sujeito (sua mente) não pode adicionar ou subtrair nada do fluxo do cosmos. Nesta perspectiva, o conhecimento é idêntico ao fato cósmico, mas na medida em que o cosmos está em movimento, o conhecimento é identificado com a prática, ou seja, é simplesmente descartado. Em outras palavras, o agnosticismo é o resultado da ausência do par de “conhecedor” e “conhecido” que é necessário para o próprio conhecimento. Para os proponentes da Matéria Mágica, a superfície absoluta do mundo coincide com sua profundidade absoluta. Aqui seria interessante relembrar o aforismo de Nietzsche a respeito de como “uma mulher precisa encontrar profundidade em sua superficialidade”. Tal analogia não é por acaso, já que a ideologia da Matéria Mágica tem um caráter abertamente ginecológico e matriarcal, sendo, em certo sentido, uma projeção do subconsciente feminino fechado para si mesmo.

Apesar do fato de que, em sua forma mais pura, a ideologia da Matéria Mágica surgiu recentemente (o materialismo doutrinário aberto e verdadeiro é relativamente jovem, com cerca de dois ou três séculos), a tendência “panteísta” existia anteriormente como algum tipo de realidade anti-religiosa oculta dentro de uma cosmovisão religiosa. De tempos em tempos, o materialismo estava presente dentro desta cosmovisão apenas indiretamente, seja na forma da exegese panteísta ou “cosmisista” da religião como o oposto absoluto da exegese polar-paradisíaca, gnóstica e puramente iniciática.  A tradição cristã, por exemplo, pôde se tornar ao mesmo tempo a base do gnosticismo cristão histórico (até os cátaros da Idade Média), o judeo-cristianismo canônico (Criador-Criação) e, por fim, o cosmismo das doutrinas neo-espiritualistas de Fedorov e de Chardin, nas quais o panteísmo puramente ateu, evolutivo, está por trás de um apelo nominal aos símbolos cristãos. No entanto, o que Fedorov e de Chardin expressaram de forma explícita e clara pode ser velado por outros pensadores pseudo-religiosos. De qualquer forma, desde o início da disseminação do cristianismo (e com o budismo antes deste, que se tornou a doutrina favorita dos panteístas orientais), tentativas foram feitas por teólogos individuais para reinterpretar a religião em um espírito panteístico. No Cristianismo, isto se manifestou com ênfase na humanidade do Verbo Encarnado e, como se segue, na “nova sacralização” do mundo material depois da Encarnação, apesar de todo o absurdo de tais idéias de “nova sacralização total” que foram completamente refutada nos Evangelhos e nas Epístolas dos Apóstolos, onde está claramente declarado que o “mundo jaz no maligno” e um novo cosmos sagrado é discutido como iminente não depois da Primeira, mas da Segunda (!) Vinda de Cristo.

Similarmente, se alguém pode realmente falar de algum tipo de continuidade entre o comunismo russo e a ortodoxia russa (como alguns autores fazem, em particular Berdyaev), então isso só pode ser relacionado ao cristianismo cosmista, panteísta e mágico-materialista que completamente desconsidera o dogma essencial em ambas dimensões esotérica (Paraíso-Polo) e exotérica (Criador-Criação) e desenvolve um tipo especial de cosmovisão materialista e, em última instância, ateísta, que não tem a menor relação com o Cristianismo genuíno.

Este mesmo cosmismo pode ser visto no Budismo Hinayana, que enfatiza a natureza espelhada e composta do sujeito como um “coágulo” temporário de energias cósmicas ou “dharmas” que não possuem nenhuma autonomia espiritual (nem mesmo o status de um sujeito proscrito). É precisamente este ramo do budismo que pode ser chamado de “ateísmo místico”. No entanto, o Budismo Hinayana, em contraste com a ideologia da Matéria Mágica em sua totalidade, carece do evolucionismo necessário para o cosmismo ortodoxo, tornando-o um pouco diferente de outros formas de cosmovisão tipologicamente próximas.

O aspecto cosmisista é extremamente desenvolvido em mais uma doutrina mística, a saber, a maçonaria européia. As doutrinas maçônicas são descendentes das formas ocidentais do gnosticismo, ou seja, a ideologia polar-paradisíaca, que em um certo estágio histórico foi reinterpretada em uma veia cosmisista e sujeita à ateização e à materialização. A cosmovisão maçônica teve um enorme impacto na consciência européia, mas foi mais oculta e latente do que a influência direta do Cristianismo. Gradualmente ao longo do século XVIII e especialmente no século XIX, a Maçonaria alterou drasticamente suas orientações espirituais e ideológicas e, embora mantendo alguns atributos externos, alterou completamente, diametralmente, seu conteúdo interior. A partir de então, o evolucionismo, o panteísmo, o materialismo e o cosmismo começaram a desempenhar um papel extremamente importante na cultura e na ciência ocidentais. O próprio fato de que quase todas as proeminentes figuras culturais e científicas foram membros de lojas maçônicas é negligenciado por completo ou é considerado uma formalidade simples, uma espécie de modismo. Na verdade, porém, a Maçonaria possui uma doutrina fundamental que corresponde a um tipo particular de consciência religiosa que não pode deixar de moldar posições específicas dos maçons. Muitos dos desenvolvimentos culturais e científicos no Ocidente nos séculos XVII, XVIII e XIX tinham correlações definidas nas modificações empreendidas nas doutrinas e status maçônicos, tanto em certos ramos da Maçonaria quanto na Maçonaria como um todo. A ateização dos status maçônicos deu origem instantaneamente à difusão do cosmismo e do evolucionismo “científico” europeu, tanto na esfera puramente metodológica quanto na científica, bem como na forma de movimentos neo-ocultistas, essencialmente panteístas (como a teosofia, o ocultismo, o neo-espiritualismo, etc.).

Assim como a cosmovisão polar-paradisíaca pode reinterpretar em seu espírito qualquer forma religiosa, a doutrina da Matéria Mágica, apesar de seu caráter essencialmente anti-religioso, pode usurpar uma forma religiosa para afirmar seus princípios. Enquanto isso, a posição Criador-Criação, por via de regra, evita a exegese radical das doutrinas religiosas, a fim de mantê-las intactas, mesmo ao custo de torná-las relíquias e carcaças sem vida.

As implicações políticas de dogmas metafísicos

Podemos agora resumir as posições sócio-políticas do século XX das três principais ideologias que distinguimos. Os proponentes do Paraíso-Polo defendem um novo império escatológico, celestial, formado em torno do Líder-Polo sobre-humano (o Terceiro Reich e o Führerprinzip do Nacional-Socialismo Alemão). Os apoiadores da posição Criador-Criação se posicionam do lado da democracia e do liberalismo moderados, buscando preservar o status quo social de indivíduos autônomos “proscritos do Paraíso” sem abandonar a busca pelo Princípio perdido, mas, mesmo assim, não insistindo em tal empreendimento (isto é especialmente verdade para os regimes democráticos da Europa Central e para os estados Norte-Americanos dos séculos XVIII-XIX). Por fim, a doutrina da Matéria Mágica, aberta e originalmente ateia, manifestou-se em sistemas políticos socialistas e comunistas, cujos tipos variam do cosmismo totalitário absoluto, como o Juche Coreano e o experimento Pol Pot cambojano (em que a noção pavloviana dos reflexos adquiridos do homem-objeto encontrou sua aplicação mais ampla), aos modelos americanos e suecos contemporâneos da “sociedade de consumo”, em que o cosmos natural e grosseiro dos “socialistas primitivos” foi substituído por um industrial, tecnológico, artificial e socializado. “Cosmos” – um verdadeiro sonho tornado realidade para materialistas místicos.

Essas três posições que distinguimos nos permitem explicar certas contradições na história das ideologias que até hoje intrigaram muitos estudiosos. Em primeiro lugar, fica claro em nossa classificação que essas posições são essencialmente incompatíveis entre si e, estando envolvidas em uma única e mesma forma ideológica tradicional, elas certamente caminharão, mais cedo ou mais tarde,  para um conflito interno em que cada uma dessas posições afirma sua independência. A cosmovisão Paraíso-Polo pode ser imperceptível por um longo período de tempo na tradição cristã em geral, mas cedo ou tarde a Cruzada Albigense e os Cátaros Gnósticos são queimados em suas igrejas cristãs, incendiadas pelas mãos dos portadores da ideia Criador-Criação. Quanto a outro exemplo, os socialistas podem convenientemente permanecer indistinguíveis dos liberais ou democratas moderados, mas cedo ou tarde, se os socialistas conseguirem tomar o poder, então os democratas e liberais serão os primeiros enviados à guilhotina ou às masmorras da Cheka por serem fundamentalmente incompatíveis com as idéias de “servir à evolução” e por querer preservar o status quo e obstruir o progresso. É verdade que incêndios crimosos e as câmaras de tortura da Cheka são extremos, mas é um fato que esses três tipos de ideologias não podem estar em conflito entre si e, mais cedo ou mais tarde, isso sempre se manifestará de uma forma ou de outra.

A esta altura, nos resta a abordar ainda outro aspecto. Quais destes três tipos de proto-ideologias, ou como diriam os alemães, Urideologien, são fundamentalmente incompatíveis entre si e quaos podem entrar em uma aliança?  Em princípio, suas inter-relações não são simétricas. Pode-se dizer, por exemplo, que a ideologia do Paraíso-Polo é a ideologia da Direita Absoluta, enquanto a ideologia Criador-Criação a do Centrismo Absoluto, e o materialismo místico é a Esquerda Absoluta. Aqui, a palavra “absoluto” é empregada para traduzir essas definições da esfera da política concreta para o domínio de suas origens metafísicas. Podemos também propor esta relação na seguinte ordem:

Direita Absoluta  Sujeito acima de Objeto

Centrismo Absoluto – Sujeito ao lado do Objeto

Esquerda Absoluta Objeto acima do Sujeito

ou

Direita Absoluta – História como a Queda; a necessidade da Restauração instantânea; a primazia da escatologia.

Centrismo Absoluto – História como Continuidade; a necessidade da preversação do equilíbrio entre o Espiritual e o Material.

Esquerda Absoluta – História como Progresso; a necessidade da contribuição para a continuação e aceleração do progresso por todos os meios.

Estas classificações metafísicas determinam a possibilidade de coalizões entre essas três posições. O Centro Absoluto e a Esquerda Absoluta podem se unir contra a Direita Absoluta (por exemplo, as forças Aliadas na Segunda Guerra Mundial). Contudo, para a Esquerda Absoluta, o Centro Absoluto também é “fascismo” (como na propaganda stalinista ou para os Novos Filósofos). Portanto, a Esquerda Absoluta é basicamente incompatível com o Centro Absoluto e procura destruí-lo. Às vezes, a luta contra o Centro Absoluto pode levar a Esquerda Absoluta a estabelecer uma aliança pragmática com a Direita Absoluta, mas, por via de regra, tal se dissipa muito rapidamente (como no Pacto Molotov-Ribbentrop ou na aliança Nacional Bolchevique entre Lauffenberg e o nazista Strasser na Alemanha na década de 1930).

Tudo isto nos permite entender a lógica daqueles que inflam o nazismo (a Direita Absoluta) e o Comunismo (a Esquerda Absoluta). Tal identificação é possível apenas para uma pessoa do Centro Absoluto, um defensor do conceito Criador-Criação. Curiosamente, pensadores políticos diametralmente opostos como o patriota russo Shafarevich e o famoso russófobo, judeu e soviético Besançon, apesar de divergirem completamente sobre praticamente todas as questões concretas, podem exibir uma surpreendente unanimidade em seu ódio mútuo ao socialismo soviético (a Esquerda Absoluta) e ao nacional-socialismo alemão (a Direito Absoluta). Para Shafarevich, tanto o primeiro quanto o último são essencialmente manifestações de um impulso suicida, tanatofílico e escatológico na civilização, cujas fontes ele vê nos babilônios, em Platão e, mais tarde, nos cátaros e anabatistas. Uma semelhante mistura do Paraíso-Polo com a Matéria Mágica é característica de autores patrióticos russos (como Lev Gumilev e Yuri Boroday). Podemos até ver a mesma coisa na obra de Besançon quando ele chama socialistas soviéticos e nazistas alemães de “marcionismo”, ou seja, emblemáticos das tendências anti-judaicas, anti-criacionistas e gnósticas do cristianismo primitivo incorporadas na figura de Marcião de Sinope. Movimentos escatológicos medievais também são vistos como os precursores dos regimes comunistas e nazistas pelo intrigante cientista político, historiador e judeu Cohn. Desta forma, tanto os judeus russófobos quanto os patriotas russos podem encontrar uniformidade na ideologia metafísica além da extrema oposição de suas visões políticas particulares. Esperamos ter explicado suficientemente os aspectos essenciais das raízes metafísicas da ideologia, a fim de eliminar as coincidências ou a aleatoriedade deste ou daquele autor. Além disso, algo semelhante pode ser dito de vários outros intelectuais, cuja metafísica (às vezes nem mesmo conscientemente percebida) estabelece laços de princípios, mesmo quando os detalhes políticos presumem uma lacuna intransponível.

Falar de um potencial equilíbrio ou harmonização entre essas três proto-ideologias é impossível com base em relatos históricos, já que na realidade a relativa harmonia surge somente quando os regimes de governança ideológica são tomados pelos proponentes de uma dessas posições por pressionar ou lançar para a periferia as demais. Todas as receitas para reconciliação são utópicas e irreais. Além do mais, tais iniciativas muitas vezes vêm de círculos cosmistas que estão tão convencidos da razoabilidade e, mais importante, da positividade da evolução que podem até mesmo justificar a necessidade de barreiras à evolução no interesse da evolução (este é basicamente o caso com alguns projetos neo-maçônicos, certas organizações mundialistas como o Clube de Roma, a Comissão Trilateral, etc., bem como algumas das idéias de de Chardin, que propõe que democratas, fascistas e comunistas se unam em um único sistema político).

Por outro lado, existe algum tipo de continuidade na história entre esses três tipos de proto-ideologias. Quanto mais se aprofunda na antiguidade, mais claro e mais “totalitário” é o tipo de ideologia da Absoluta Direita, o complexo polar-paradisíaco. Na antiguidade tardia, o tipo Criador-Criação começou a adquirir predominância e recebeu sua forma doutrinária mais pronunciada no judaísmo tardio e nas outras religiões abraâmicas. Também neste período de “totalidade”, as estruturas da ideologia Criador-Criação exalavam ciclicamente as tendências polares-paradisíacas, desta vez pelo desejo por uma “Revolução da Direita” colorida com todo o escatologismo em ascensão. Por fim, com a modernidade e no período contemporâneo, as tendências da Esquerda Absoluta têm desfrutado da maior propagação, engolfando e desnaturando os vestígios das formas tradicionais anteriores (Cristianismo Cosmisista, Hinduísmo e Budismo Cosmista, Social-Democracia, neo-maçonaria ateia, Iluminismo Judaico, etc.). No entanto, mesmo sob o domínio da Matéria Mágica, as tendências do Centro Absoluto e da Direita Absoluta nunca foram completamente apagadas e em cada primeira oportunidade elas acumulam energia de oposição que produz uma revolução teocrática ou polar-paradisíaca. Desta forma, apesar dos períodos e regimes em mudança, nossas três tendências ou tipos de cosmovisões não podem ser fundidas ou reduzidas em número. Pelo contrário, as oportunidades oferecidas pelas formas externas que essas proto-ideologias podem tomar, dependendo das circunstâncias, não são limitadas. Mesmo os mais complexos modelos sincréticos destinados a fundir elementos da Direita Absoluta, do Centro Absoluto e da Esquerda Absoluta não podem, no entanto, aliviar o proponente de tal esforço de pertencer intrinsecamente e invariavelmente a uma proto-ideologia, cujas variações ideológicas ou formas alternativas seria precisamente o que compreende este modelo sincrético.

Embora não desejemos finalizar com uma nota de total relatividade e pluralidade, gostaríamos de expressar nossa crença de que o segredo da história das ideologias globais ainda tem uma solução assaz direta. Mais cedo ou mais tarde, uma dessas três posições metafísicas se revelará a única genuína e única verdadeira. Exatamente qual delas , no entanto, o tempo dirá.

Imagem padrão
Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

Artigos: 596

Um comentário

Deixar uma resposta