Considerando certas revelações que indicariam um certo grau de “proximidade” (sendo bastante bondoso) entre o governo e as milícias, urge começar a expor as milícias por aquilo que elas realmente são: tão somente uma variação do crime organizado brasileiro, apesar de possuir características próprias.
A origem fundamental dos dois fenômenos, porém, é o mesmo. O abandono de largas faixas territoriais do Brasil pelo Estado. Tal como dizia Enéas Carneiro, a favela não era nada além de uma manifestação do “Estado Mínimo”. Contrariando clássicas lógicas “centro/periferia”, a maioria das favelas são periferias localizadas no centro, nos corações das principais metrópoles brasileiras.
E apesar de estarem no centro, são espaços abandonados, onde o Estado é ausente. Mas em uma verdadeira lição sociológica, a história brasileira recente demonstra que ao Estado se substitui outro Estado. De modo que a ausência do Estado não foi respondida por qualquer tipo de “auto-organização espontânea”, mas sim pelo surgimento de governos paralelos garantidos pelo monopólio da força nas áreas das favelas.
O fenômeno do encastelamento de facções do tráfico de drogas em favelas brasileiras precede o surgimento das milícias. Trata-se de um fenômeno que se seguiu ao crescimento acelerado das favelas no início e metade do regime militar, e se apoiou na máfia do “jogo do bicho”, a qual estava intimamente relacionada ao baixo oficialato do regime militar.
O fenômeno das milícias começa a se desenvolver logo em seguida, nos anos 80, com o pagamento, por parte de comerciantes, a policiais para que estes impedissem a favela de Rio das Pedras de ser tomada pelo tráfico de drogas. À primeira vista, apesar da ilegalidade formal, e das conexões com grupos de extermínio, até poderíamos tomar a situação como algo compreensível, considerando a realidade material da fragilidade e insegurança do cidadão diante das organizações criminosas.
O problema é que as milícias não pararam por aí.
Dos anos 80 para o novo milênio as distinções entre tráfico e milícia foram se tornando cada vez menores. Afinal, se o “sentido” da milícia é que ela cobra proteção de moradores e comerciantes para garantir a paz e fornecer serviços públicos em um determinado lugar abandonado pelo Estado, o Comando Vermelho, o Terceiro Comando Puro e o Primeiro Comando da Capital também poderiam reivindicar o mesmo.
Se assaltantes levam tiro na mão em favelas ocupadas pela milícia, o mesmo ocorre em favelas ocupadas pelo tráfico. O abismo entre os dois tipos de poder paralelo foram minguando até desaparecerem.
Porque apesar da realidade das milícias variar conforme a favela e as relações de poder de cada favela, bairro ou vizinhança, a milícia tem praticado ou protegido o jogo do bicho, e até mesmo o tráfico de drogas para garantir sua lucratividade.
Quem vive no Rio de Janeiro, por exemplo, sabe que as propagandas de “carne de rã” nas paredes de prédios ou em muros do Centro da cidade fazem referência a clínicas clandestinas de aborto e que todas elas, sem exceção, pertencem a milicianos. Também sabem que boa parte da prostituição está nas mãos de milicianos.
Ah se as milícias fossem apenas grupos de filantrópicos agentes de segurança recebendo “por fora” para dar uma segurança extra a cidadãos comuns cansados da criminalidade! Mas a realidade é que se você, por qualquer motivo, se opuser ou denunciar as ações das milícias, você pode ser o mais bondoso, justo e cristão dos cidadãos: você ainda será executado pela milícia, não raro por métodos semelhantes aos usados pelo tráfico.
Esses policiais têm por função manter a ordem urbana, prender criminosos, proteger os cidadãos. Eles são pagos para isso. Mas de uniforme não exercem a contento as funções que cumprem sem uniforme, um dado bastante interessante nessa história toda.
O governo não deve ver problema nisso, provavelmente se pensa que o problema é da lei, que não permite aos pobres milicianos cumprirem por ”vias legais” aquilo que fazem pelas sombras. É o mesmo raciocínio aplicado a outras questões também já defendidas por Jair, como sonegação de impostos. Esses crimes seriam a defesa do ”cidadão de bem” contra a ordem legal que impede a felicidade cotidiana.
A coisa complica quando se sabe que essas milícias se envolvem em uma série de outros ilícitos. As regiões dominadas por elas se tornam quase que um monopólio comercial de redes ilegais de venda de gás, oferta de TVs a cabo [gatonet] e transporte alternativo. Os policiais que fazem parte dessas gangues encontraram um filão de ouro, um ramo de ”negócios” que explode nas costas dos cidadãos assustados com a violência.
E há também um fenômeno novo no Rio de Janeiro, a aliança de determinadas milícias da zona oeste da cidade com facções do tráfico de drogas. Assim, os esquadrões de justiceiros acrescentaram mais um item no seu perfil: eliminam de uma região uma organização do narcotráfico para abrirem espaço para outra que lhes seja aliada.
Essa articulação entre milícias e facções do narcotráfico deixou de cabelos em pé os militares responsáveis pela intervenção na Segurança Pública do Rio de Janeiro. E não é pra menos, já que constitui uma teia de criminalidade muito difícil de ser combatida, que toma o aparelho jurídico-policial do Estado por dentro.
O leque de atividades exercidas pelas milícias é comandada de cima, tudo indica, pelos reis da contravenção no Rio, aquelas máfias ligadas ao jogo ilegal e que são popularmente conhecidas pelo jargão de ”Jogo do Bicho”. Revelações recentes do Ministério da Justiça indicam que os esquadrões da morte do Rio são sustentados pelos grandes ”bicheiros”. A própria cúpula da Polícia Civil no Estado estaria envolvida.
Os ”bicheiros” no Rio são responsáveis por uma imensa rede de corrupção entre forças de segurança e judiciais, e isso não é de hoje. Estamos falando aqui de uma máfia poderosa, cujos tentáculos tocam organizações criminosas de outros países.
Todos esses elementos são abordados com olhar complacente pelo governo. Milícia é bacana, esquadrão da morte é útil, fazer uma fezinha em cassinos ou em bancas de bicho é maneiro, redes de cafetões comandando legiões de prostitutas não são problemáticas, policiais ofertando serviços ilegais a comerciantes e moradores do Rio é ato digno de louvor, e por aí caminhamos.
É fácil notar como a Família Bolsonaro está mergulhada nesses esquemas que envolvem policiais corruptos, esquadrões da morte, oferta ilegal de serviços em bairros populares, prostituição, jogatina, aliança com facções do tráfico e, finalmente, comando do Jogo do Bicho.
A família Abrahão David, ”dona” da jogatina em boa parte do Grande Rio, apoiou o mesmo Flávio Bolsonaro que se apodera dos vencimentos de seus assessores. Eles panfletaram juntos em Nilópolis, em plena luz do dia, inclusive com presença do infame Simão Sessim, que também recebeu propinas no Petrolão, segundo a Operação Lava-Jato.
Tudo indica que as milícias estão envolvidas ainda na grilagem de terras no Rio de Janeiro. Ou seja, na expulsão de famílias e no confisco de suas terras, pela força das armas se necessário. E que essa teria sido a causa do assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco.
Não é, portanto, tão diferente assim das relações do PSDB paulista com o PCC. Na prática, várias forças políticas brasileiras têm, nos subterrâneos, organizações criminosas armadas como parte de sua base de apoio, demonstrando a situação de nosso país como Narco-Estado (e agora recordemos que Bolsonaro parece estar preparando o Dória para 2022…).
O “moralismo olavo-bolsonarista” prometeu livrar o país dos esquemas de propina dos grupos ”de dentro” do governo nos últimos vinte anos. Mas seus próceres representam outros grupos mafiosos que têm seus próprios esquemas, que envolvem igualmente corrupção, violência, negociatas e ligações com o crime organizado.
Saem os canalhas que favoreciam empreiteiras e o governo de ocasião em troca de cargos, propinas e permissão pra roubar. Entram os safardanas que criaram todo um Estado paralelo baseado em jogo ilegal, corrupção policial, esquadrões de execução, extorsões.
Traficantes, bicheiros, cafetões, grileiros e aborteiros, é isso que é a milícia, e é isso que o “conservadorismo de Schrödinger” da Família Bolsonaro tem como base de apoio.
A vitória de Bolsonaro não interrompeu a ascensão do Narco-Estado no Brasil. Serviu apenas para fortalecê-la.
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O passado do Rio de Janeiro, que foi maior mercado de escravos do continente Americano, condena a cidade a isso mesmo: o caos, a miséria, a violência.
Não é surpreendente, não se pode esperar outra coisa, não podemos mudar o passado. Nada que o conde Gobineau não tenha previsto.
Não vou ao Rio nem para passar férias. Não suporto coexistir com bandidos. E, no Rio, o que não falta é bandido. Estão por todo lado, ocupam as favelas e os palácios.
Pior: o Rio de sangue e merda é o Rio da alegria vã e boçal do carnaval. Eu não tenho saúde para aguentar tanta diversidade, tanta desigualdade, tanta contradição.
Mas os gringos gostam, eles se deliciam com as cabritas que fodem nos quartos com vista para o mar de seus hotéis. Também antropólogos franceses costumavam deleitar-se com mundo tão pitoresco. Hoje, porém, a etnografia negra pode ser estudada na própria França, também chamada Francarabia.
Aquela que foi a ex-capital de meu país só me faz sentir abandono e vergonha. Aquilo lá não é uma pólis, mais semelha uma colônia de animais marinhos, embora num coral não haja violência nem podridão.
Não, para o Rio eu não vou nem a passeio, mas eu iria para matar e morrer na luta pela libertação da cidade e do Brasil.