Vigiar e Punir: A Sociedade de Vigilância em Tempos Covidianos e Pós-Covidianos

Nunca se falou tanto de sociedade de vigilância como desde que os governos começaram a introduzir o “passaporte sanitário”. Mas o coronavírus apenas desempenhou um papel acelerador neste caso. A vigilância é parte do projeto liberal e do capitalismo globalizado desde sempre.

O que o faz dizer que a sociedade de vigilância é a “última etapa do liberalismo”?

Meu objetivo neste livro é destacar um impensado do liberalismo. O liberalismo visa emancipar o indivíduo das restrições coletivas. Mas seria uma ilusão acreditar que isso marca o fim de todas as formas de controle social. Na verdade, isso coincide com a transformação de um tipo de controle social em outro. No mundo pré-moderno, o controle social é principalmente informal: todos respeitam seus compromissos, ou o domínio dos outros, porque existem relações de confiança pessoal, uma ética envolvendo honra, a reputação de toda uma linhagem ou comunidade, etc. Em resumo, é a inserção em uma comunidade que garante a ordem social. Diante disso, o liberalismo é um processo de descompartimentalização do indivíduo, que pretende se emancipar de todos os laços comunitários. Em tal mundo de indivíduos, a “liberdade individual” por si só não é suficiente para manter uma ordem social estável, para garantir o respeito à propriedade ou aos contratos: ela requer em paralelo o desenvolvimento de uma vasta superestrutura legal impessoal. Estamos entrando no mundo dos contratos escritos, advogados, notas de rodapé, vários intermediários, e assim por diante. Um mundo no qual não é mais a relação pessoal que garante estabilidade e confiança, mas a conformidade com uma ordem abstrata. Esta superestrutura de controle é o primeiro passo em direção à sociedade de vigilância.

O que distingue o que você chama de “liberdade liberal” da concepção clássica de liberdade? E por que a própria liberdade parece ser propriedade, para não dizer o monopólio, apenas dos liberais?

O termo “liberalismo” é uma fonte de muita confusão, pois sugere que os liberais defenderiam a “liberdade” enquanto os antiliberais se oporiam a ela. Tal visão é intelectualmente insustentável: o liberalismo é um produto da modernidade (digamos, por simplicidade, do século XVIII), enquanto o conceito de liberdade existe e é discutido desde a antiguidade. Portanto, é necessário distinguir, como faço no livro, uma concepção liberal de liberdade, que se opõe a uma concepção clássica de liberdade. Classicamente, as liberdades são sempre o resultado de um pertencimento político ou comunitário: em Atenas eu sou livre porque sou ateniense. Essas liberdades são sempre concretas, territorializadas e têm deveres como contrapartidas. A liberdade proclamada pelos liberais, por outro lado, é puramente individual e, portanto, desligada de qualquer comunidade. Enquanto tal, ela é abstrata, universal, idêntica para todos os homens, e sem deveres (porque os homens gozam dela antes de qualquer inserção no mundo social). Esta liberdade pode parecer infinitamente mais ampla. Isto pode ser verdade no abstrato, mas eu argumento que não é verdade na prática – precisamente porque estas liberdades são puramente abstratas. Por exemplo, pode-se proclamar o direito à vida, mas isso não impede os massacres. De modo mais geral, e pelas razões explicadas acima, a ascensão do liberalismo foi concomitante com a ascensão dos Estados centralizados e das grandes corporações, ambos têm cada vez mais corroído a vida humana em normas jurídicas, processos abstratos e padronizados, etc.

A vigilância está associada a Orwell, 1984, Big Brother, sociedades totalitárias. Mas as sociedades pós-totalitárias desenvolveram regimes de vigilância de um tipo diferente. O que muda do primeiro para o segundo em termos de controle e vigilância social?

Antes de destacar as diferenças, creio que seria útil especificar o que estes dois tipos de sociedade têm em comum, ou seja, sua visão do homem, sua antropologia. De um ponto de vista liberal, o homem é um ser despojado de todo pertencimento, de toda ancoragem comunitária, de todas as raízes. Assim, privado de tudo o que o torna especial, ele não é mais do que um ser indiferenciado entre bilhões de outros. Podemos ver aonde isto leva subrrepticiamente: no final das contas, ele não é nada mais que um átomo indistinto, um número, um código de barras ou um QR code. Esta visão do ser humano como indivíduo é também a de regimes totalitários. Do ponto de vista do atual governo chinês, por exemplo, cada indivíduo nada mais é do que um identificador digital, cuja “pontuação” (crédito social) sobe ou desce todos os dias de acordo com os códigos que ele ou ela escaneia em um ou outro lugar, os lugares onde ele ou ela é identificado pelo reconhecimento facial, etc. Em relação a estas semelhanças, as diferenças são superficiais, e residem principalmente no discurso que estas sociedades têm sobre si mesmas. As sociedades “totalitárias” assumem a tarefa de esmagar o homem em favor da totalidade abstrata. As sociedades liberais o esmaga, desenraizando-o e deslocando suas raízes comunitárias. Seu modelo é mais parecido com o Admirável Mundo Novo do que 1984. Mas as consequências são quase idênticas e, com o tempo, a convergência dos dois modelos será cada vez mais óbvia.

Então seria um abuso de linguagem falar de sociedades liberais (quando são cada vez mais liberticidas) e de sociedades abertas (quando são cada vez mais fechadas)?

Em certo sentido, sim. No que diz respeito ao termo “liberalismo”, como já dissemos, esta filosofia proclama liberdades abstratas, que muitas vezes nada mais são do que palavras vazias, sem alcance concreto. Com relação ao termo “sociedade aberta”, as coisas são um pouco diferentes. O liberalismo, ao quebrar as filiações comunitárias, gradualmente esbateu uma distinção que estruturava todas as sociedades tradicionais: a do próximo e do distante. Na sociedade medieval, por exemplo, não se comportava da mesma forma com um vizinho, ou um membro da mesma aldeia ou da mesma guilda, como com aqueles que eram estranhos. Ao dissolver os âmbitos do “próximo” e “distante”, o liberalismo efetivamente “abriu” novos horizontes para o indivíduo, notadamente os horizontes geográficos: é mais fácil para o indivíduo ser um migrante ou um turista, assim como é mais fácil para o empresário relocalizar sua produção para o outro lado do mundo. Neste sentido, a sociedade é mais “aberta”. Mas a contrapartida desta abertura tem sido uma proliferação de controles formais, superestruturas legais, padronização e uniformidade, etc. No final, o mundo pode estar completamente aberto, mas sob o controle de um governo mundial altamente procedimental. A diversidade do mundo, e as mil maneiras pelas quais as pessoas experimentam a liberdade na prática, terão desaparecido.

Fonte: Éléments

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Guillaume Travers

Economista francês.

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