Do Liberalismo 1.0 ao Liberalismo 2.0: A Virada Pós-Moderna do Liberalismo

É ponto pacífico que vivemos sob uma hegemonia global liberal. Mas o liberalismo de hoje não é idêntico ao liberalismo de Adam Smith e John Stuart Mill. Ainda que o liberalismo original tenha nos trazido exatamente até o liberalismo que conhecemos hoje, é importante compreender o que mudou no liberalismo e como o liberalismo moderno fez essa virada pós-moderna.

A nova virada do liberalismo

Na atual conjuntura histórica, podemos distinguir claramente um fenômeno muito importante: uma nova virada na ideologia liberal. Como qualquer outra ideologia política, o liberalismo está em constante mudança, mas em certos momentos podemos captar mudanças realmente paradigmáticas que nos dão o direito de dizer: aqui algo está terminando e algo novo está começando. Este é o próximo momento. Isso é muitas vezes acompanhado pela queda de um certo regime político ou pelo equilíbrio de poder após uma guerra séria – por exemplo, mundial – e assim por diante. Mas às vezes ela passa despercebida no nível subliminar latente. Certamente, podemos sempre distinguir alguns sintomas das mudanças produzidas, mas sua profundidade e a questão de ter chegado ao ponto de não retorno permanecem, por enquanto, em discussão.

Eu afirmo que neste momento somos testemunhas de uma mudança dramática deste tipo dentro da ideologia política liberal. Chamemos isto de passagem do liberalismo 1.0 para o liberalismo 2.0. Como em qualquer passagem séria, ela exige um certo “rito de passagem”. Interpreto isso como sendo a situação na qual a presidência de Donald Trump culminou em sua derrubada pela elite globalista epitomizada por Joe Biden e sua – mais uma vez! – administração neocon. Mas isso não é nada além de um “rito de passagem” – manifestado em desfiles de orgulho gay, insurgências BLM, ataques imperiais LGBT+, o motim global do feminismo selvagem, e o espetacular advento do pós-humanismo e da tecnocracia extrema. Por trás de tudo isso, há processos mais profundos – puramente intelectuais, filosóficos – que me proponho examinar.

Solidão liberal

Eu gostaria de professar antecipadamente que vou realizar este exame através de minha abordagem estrutural, fundamentada na Quarta Teoria Política. Isto significa que considero a ideologia liberal (ou a Primeira Teoria Política) como a soma da manifestação histórica do próprio paradigma da Modernidade Ocidental, que ao longo do século XX venceu sua batalha épica contra seus principais rivais – os comunistas (Segunda Teoria Política) e fascistas (Terceira Teoria Política), que à época desafiaram a pretensão liberal de ser a mais moderna e se declararam mais modernos que os liberais. Isto foi explicitamente formulado pelo futurismo marxista, mas também era subjacente ao modo de pensar fascista.

Assim, de acordo com esta visão, o liberalismo enquanto ideologia – política, econômica, cultural, social, etc. – venceu no século XX não apenas taticamente, mas estrategicamente, e de alguma forma tornou-se irreversivelmente a ideologia política única depois dos anos 90. Este é comumente chamado de “momento unipolar” (Charles Krauthammer) e foi – prematuramente, como parece agora – batizado “o fim da história” por Francis Fukuyama. Além de todos os detalhes e questões de medir corretamente o momento, a vitória ideológica do liberalismo precisamente naquele período foi irrefutável. O comunismo chinês não é uma alternativa em escala global ao capitalismo liberal, porque desde o governo de Deng Xiaoping, a China se tornou parcialmente inserida na economia política global, numa tentativa de utilizá-la em benefício da força do país, embora aceitando as principais regras liberais e os princípios do mercado livre.

Esse foi o momento decisivo que separou simbolicamente o velho liberalismo do novo liberalismo, o liberalismo 1.0 do liberalismo vindouro 2.0. Então, nos anos 90, pudemos registrar a gestação de uma profunda mutação semântica da Primeira Teoria Política. A vitória épica do liberalismo no século XX criou duas importantes mudanças ideológicas:

O advento das alianças vermelho-marrom ou “nacional-bolchevistas”, baseadas numa profunda compreensão da derrota irremediável tanto do comunismo histórico como do fascismo para o liberalismo e na vontade de criar uma frente comum antiliberal direita-esquerda (mas esta permaneceu uma tendência politicamente marginal, incomparavelmente pequena em comparação com a seriedade do perigo que tal projeto ideológico representa para a dominação liberal);
• A solidão do liberalismo, que perdeu ambos os seus principais inimigos ideológicos, que constituíam (como ensina Carl Schmitt ao enfatizar a importância da distinção amigo/inimigo para a própria definição da identidade política e ideológica) um elemento importante da autoafirmação do liberalismo.

Na medida em que o nacional-bolchevismo iliberal não representava uma ameaça política real, o problema da solidão permaneceu essencial.

Nacional-Bolchevismo como conceito provocado pela vitória do liberalismo

Filosoficamente, o Nacional-bolchevismo coincidiu com a mudança paralela de paradigma que chegou com a Pós-Modernidade. Autores pós-modernos, vindos principalmente da extrema-esquerda, tornaram-se muito críticos do comunismo de estilo soviético e parcialmente chinês, e assim adotaram a estratégia de uma aliança ideológica – sempre mais e mais “antifascista” e também anti-NB – com liberais de esquerda. Assim, o pós-modernismo foi estabelecido como uma espécie de terreno comum para que os ex-comunistas se tornassem cada vez mais liberais (individualistas, hedonistas e assim por diante) e para que os liberais de esquerda adotassem a epistemologia de vanguarda dos pensadores radicais que promovem teorias e práticas extremas de libertação – de regras, normas, identidades estáveis, hierarquias, fronteiras e assim por diante. Aqui é onde o liberalismo 2.0 tem suas raízes. Mas para se tornar explícito na forma da nova versão da ideologia política liberal, foram necessários mais 30 anos de vida política dramática. O fenômeno Trump foi o último e mais decisivo período que fez com que toda a estrutura do liberalismo 2.0 aparecesse tal como é.

A principal característica do liberalismo 2.0 é seu reconhecimento de um inimigo interior, uma quinta-coluna dentro do liberalismo enquanto tal. Na ausência de inimigos ideológicos bem representados – comunistas e fascistas – os liberais solitários foram obrigados a reconsiderar o próprio mapeamento de sua hegemonia que havia se tornado mundial. Ideologicamente, a fraca tendência vermelho-marrom parecia ser mais importante do que poderia ser julgado por sua aparência como um movimento com impacto insignificante.

Mas se considerarmos este nacional-bolchevismo em termos mais amplos, o quadro geral muda drasticamente. O ressurgimento da Rússia de Putin pode ser avaliado como uma nova mistura da estratégia de estilo soviético da política anti-ocidental e do nacionalismo tradicional russo. Caso contrário, o fenômeno de Putin continua enigmático. Ele foi aproximadamente equiparado ao “nacional-bolchevismo”, o que corroborou o principal quadro ideológico da era liberal unipolar. A mesma aproximação poderia ser usada para interpretar o fenômeno chinês. Caso contrário, seria difícil ou simplesmente impossível explicar a política da China e, sobretudo, a linha de Xi Jinping. Aqui, novamente, vemos o comunismo chinês especial misturado com um nacionalismo chinês cada vez mais observável. O mesmo pode ser dito do crescimento do populismo europeu, onde a distância entre a esquerda e a direita estava diminuindo drasticamente até o ponto da criação simbólica da aliança amarelo-esverdeada no governo italiano baseada no acordo entre a Lega Nord (populismo de direita) e 5 Estrelas (populismo de esquerda). Uma convergência análoga foi pré-configurada na revolta populista dos Coletes Amarelos contra Macron na França, na qual os seguidores de Marine Le Pen lutavam contra o centro liberal ao lado dos seguidores de Jean-Luc Mélenchon.

Assim, na ordem mundial unipolar os liberais eram de alguma forma obrigados a aceitar a ameaça do nacional-bolchevismo – no sentido amplo do termo – como algo sério. E assim eles começaram a lutar contra tal convergência, minando suas estruturas e índices onde quer que aparecessem. Mas para não ajudar na promoção de uma alternativa eficaz autoimposta ao domínio liberal globalista, as elites globais minaram a importância deste fenômeno na superfície, enquanto que, na realidade, elas têm lutado contra ele por todos os meios. Se Putin, Xi Jinping, os populistas europeus e os movimentos islâmicos anti-ocidentais (do mesmo modo, nem ideologicamente comunistas demais nem nacionalistas), bem como as correntes anticapitalistas na América Latina e na África, estariam conscientes de que se opõem ao liberalismo a partir de uma posição ideológica de alguma forma unida, aceitando o populismo de esquerda/direita ou integral como seu terreno explícito, o que teria reforçado consideravelmente sua resistência, multiplicando seu potencial. Assim, para que isso não acontecesse, os liberais utilizaram todos os meios, sobretudo a quinta e sexta colunas (liberais bem enraizados nas estruturas governamentais e formalmente leais aos líderes soberanos dos respectivos regimes), que procuraram suprimir qualquer movimento ideológico nessa direção.

O inimigo interior

Mas foram justamente seus sucessos nesta contenção do potencial surgimento de uma ideologia nacional-bolchevista – iliberal – no status de um inimigo formal que tornou os liberais cada vez mais solitários. Eles não ousavam deixar o inimigo formal aparecer, mas o preço para isso era a gestação de um inimigo interior dentro dele. Este é o ponto crucial no nascimento do liberalismo 2.0.

A ideologia política não pode existir quando o par de inimigo/amigo é apagado. Ela perde sua identidade e não pode continuar a ser eficaz. Não ter um inimigo significa suicídio ideológico. Portanto, um inimigo externo pouco claro e indefinido não era suficiente para justificar o liberalismo. Com toda a demonização da Rússia de Putin e da China de Xi Jinping, os liberais não puderam ser totalmente convincentes. Mais do que isso: aceitar a existência de um inimigo ideológico formal e estruturado fora da zona de influência liberal (democracia, economia de mercado, direitos humanos, tecnologia universal, rede total, etc.), após o início do momento unipolar ter sido presumidamente global, seria equivalente a reconhecer algum grave fracasso. Portanto, logicamente, era necessário aparecer um inimigo interior. Isto era teoricamente necessário no desenvolvimento de processos ideológicos após os anos 90 do século XX. E o inimigo interior chegou bem a tempo, precisamente quando era mais necessário. Ele tinha um nome: Donald Trump.

Sendo rotulado desde o momento de sua aparição nas eleições americanas de 2016, Donald Trump começou a desempenhar um papel extremamente importante – o do inimigo. Ele incorporou a linha de fronteira entre o liberalismo 1.0 e o liberalismo 2.0. Ele se tornou a parteira do liberalismo 2.0, ajudando-o finalmente a nascer plenamente. Inicialmente, havia a fraca ideia de tentar ligar Trump ao Putin vermelho-marrom. Isso causou danos reais à presidência de Trump, mas, ideologicamente, era inconsistente. Não apenas por causa da ausência de relações reais entre Trump e Putin e pelo puro oportunismo ideológico de Trump, mas também porque o próprio Putin, que parecia um “nacional-bolchevista” que se opunha conscientemente ao liberalismo global, na realidade é muito mais um realista pragmático. Como Trump, ele é um populista em busca de aprovação, e também como Trump, ele é mais um oportunista sem nenhum interesse em ideologia.

O cenário alternativo de apresentar Trump como “fascista” também era ridículo. Como isso foi usado em demasia por seus rivais políticos, causou problemas para Trump, mas também era algo totalmente inconsistente. Nem o próprio Trump nem nenhum de seus funcionários eram “fascistas” ou representantes de qualquer tendência de extrema-direita há muito tempo totalmente marginalizada na sociedade americana e existindo apenas como uma espécie de franja libertária da cultura kitsch.

Assim, lidando com Trump no nível ideológico (e não apenas na propaganda, onde todos os métodos são aceitos se funcionarem) os liberais foram obrigados a definir sua posição de outra forma. E aqui nos aproximamos do ponto mais importante de nosso estudo. Trump foi e é um representante do liberalismo 1.0. Este foi descoberto como sendo precisamente o principal – e desta vez realmente interior – inimigo do novo liberalismo. Se deixarmos de lado todos os regimes estrangeiros que se opõem à ideologia liberal em sua prática política como não apresentando nenhum problema sério, em vez disso sendo apenas casuais, obstáculos desarticulados no caminho para o inevitável triunfo do progresso liberal, resta apenas um verdadeiro inimigo do liberalismo – o próprio liberalismo. A fim de prosseguir, o liberalismo teve que fazer um expurgo interior.

Aqui aparece uma divisão interna, claramente vista e definida. O novo liberalismo, fundado na convergência contínua com o pós-modernismo de esquerda, deixou de se reconhecer no antigo liberalismo. E precisamente este antigo liberalismo foi identificado na figura simbólica de Donald Trump. E ele foi julgado como sendo o Outro. Isto explica tudo na implantação ideológica da campanha de Biden – “voltar à normalidade”, “construir de novo melhor” e assim por diante. A “normalidade” em questão é uma nova normalidade – a normalidade do liberalismo 2.0. O liberalismo 1.0 – nacional, claramente capitalista, pragmático, individualista e de certa forma libertário – foi julgado doravante como uma “anormalidade”. A democracia como governo da maioria, a plena liberdade de expressão e pensamento, a possibilidade aberta de expressar qualquer posição desejada, qualquer escolha religiosa, o direito de ter uma família e de organizar as relações de gênero em qualquer base, religiosa ou secular – tudo isso, plenamente reconhecido pelo liberalismo 1.0, tornou-se inaceitável. Daí em diante: o politicamente correto, a cultura do cancelamento, a prática de envergonhar todos aqueles que não aceitam este liberalismo de esquerda como algo necessário, justificado e normal.

Assim, o liberalismo 2.0 evoluiu pouco a pouco para algo totalitário. Não foi assim – pelo menos explicitamente – quando ele lutou contra ideologias muito mais explicitamente totalitárias – o comunismo e o fascismo. Mas ao ser deixado sozinho, o liberalismo veio a manifestar sua característica inesperada. Se o liberalismo 1.0 não era totalitário, então o liberalismo 2.0 é totalitário. De agora em diante, ninguém tem o direito de não ser liberal. O velho liberalismo recusaria imediatamente tal tese, porque ela é uma contradição clara e direta aos próprios fundamentos da ideologia liberal baseada na livre escolha. O direito de ser iliberal havia sido respeitado, assim como o direito de ser liberal. Mas não agora. Não mais. Assim, um liberalismo acabou – apenas recentemente, no momento em que Trump deixou a Casa Branca. O outro liberalismo reina a partir de agora. Aqui, a liberdade não é mais livre. Ela é um dever. E o significado de liberdade não é arbitrário. É claramente definido pelas novas elites dominantes liberais (2.0). Quem discorda está condenado a ser cancelado.

Friedrich von Hayek: O Começo

Podemos traçar a evolução ideológica do liberalismo 2.0 seguindo a evolução, às vezes não muito articulada, das ideias dos principais ideólogos do próprio liberalismo do século XX. Temos aqui três estações principais – Friedrich von Hayek, Karl Popper, e George Soros. Eles pertencem à mesma tradição – o primeiro foi o professor direto do segundo e o segundo do terceiro. Portanto, parece que eles deveriam ter mais ou menos as mesmas opiniões. Isto em parte é assim, mas em parte não.

Friedrich von Hayek era claramente um liberal puro. Em suas obras ele criticou tanto o comunismo quanto o fascismo, enfatizando o compromisso deles com “o projeto”. Em nome do devido, regimes comunistas e fascistas impuseram suas práticas políticas e econômicas violentas às sociedades, pervertendo a lógica natural da vida social e política. Ambos superutilizaram o futuro e o progresso como argumentos decisivos para o direito de governar e dominar como uma estrutura política dotada da missão de fazer com que este futuro se concretize a qualquer preço. Assim, comunistas e fascistas violaram a realidade ao subjugá-la às “leis do progresso” autoproclamadas.

Contra isso, Friedrich von Hayek afirmou o status quo como algum ponto de partida. Teoricamente incapaz de calcular corretamente o futuro (já que há muitos fatores relevantes – sempre mais do que a mente humana pode levar em conta), devemos tentar proceder com cuidado, suavemente, sem destruir as estruturas sociais, políticas e econômicas existentes, mas às vezes tentando simplesmente desenvolvê-las ou melhorá-las. Friedrich von Hayek se opôs “ao projeto” com o conceito de tradição, que em sua opinião era a única base do desenvolvimento orgânico, na medida em que na tradição ele identificou a soma das escolhas racionais de muitas gerações anteriores, uma enorme estrutura de erros e correções que nenhum projeto poderia jamais igualar.

Sendo totalmente contrário ao comunismo e ao fascismo (e, logicamente, a qualquer mistura deles) Friedrich von Hayek estava muito mais próximo de Edmund Burke e do conservadorismo inglês. Assim, não é surpreendente que as ideias de Friedrich von Hayek tenham sido aceitas por uma parte da Nouvelle Droite francesa (Henry de Lesquen, Yvan Blot e outros) em combinação com o nacionalismo francês moderado.

Friedrich von Hayek pode ser considerado o exemplo ideal do liberalismo 1.0.

Karl Popper: o ponto médio

O discípulo de Friedrich von Hayek, Karl Popper – o autor da teoria da “Sociedade Aberta” e o mentor direto de George Soros – permaneceu fiel às ideias de Hayek na superfície. Ele aceitou o livre desenvolvimento da sociedade, criticou severamente o “projeto” enquanto tal, e emitiu generalizações sobre a base comum da segunda e terceira teorias políticas, ajudando assim involuntariamente na formulação dos princípios nacional-bolcheviques. Popper identificou o principal erro da tradição política como sendo a aceitação platônica da existência do Estado ideal como fonte de normas, e a teoria aristotélica do telos, causa finalis – o fim como a principal razão que justifica os meios para alcançá-lo.

Seguindo formalmente a abordagem de Hayek, Popper deslocou consideravelmente algumas ênfases importantes. Ao título de sua obra principal, A Sociedade Aberta, ele acrescentou “e seus Inimigos“, enfatizando assim o dualismo de sua posição. Temendo qualquer tipo de “projeto liberal”, Hayek tinha sido muito cuidadoso ao formular qualquer tipo de abordagem dualista da política e da ideologia. De acordo com Hayek, seja liberal ou “projeto”, o liberalismo está organicamente aberto a tudo o que existe. É uma espécie de ética estoica.

Com Popper, porém, mudamos completamente o registro. A “Sociedade Aberta” é um projeto liberal inequívoco. Ela divide a todos em dois campos –
• a Sociedade Aberta e
• os inimigos da Sociedade Aberta.

E há uma guerra entre eles. O tom das críticas de Popper a Platão ou Aristóteles, Hegel ou Schelling não só é totalmente intolerante e histérico, mas contrasta fortemente com a abordagem calma de Hayek, inclusive em relação a seus oponentes.

Popper defendeu a destruição radical dos inimigos da Sociedade Aberta, argumentando que, caso contrário, sem quaisquer limites internos, eles próprios destruiriam a Sociedade Aberta. Assim, a lógica de Popper era: vamos matá-los antes que eles nos matem.

Isto já soa completamente diferente. Aqui está a mudança para o liberalismo 2.0. Popper odeia tudo que possa ser julgado como semelhante ao nacionalismo ou ao socialismo. Ele não só rejeita a segunda e terceira teorias políticas, mas criminaliza-as e apela a sua aniquilação total.

A seus olhos, não há escolha de ser iliberal. Qualquer inimigo da Sociedade Aberta é, por definição, um criminoso ideológico – não importa se ele (ou ela) está do lado direito ou esquerdo do espectro político.

Mas Karl Popper ainda era claramente capitalista e economicamente à direita. Oposto a qualquer tipo de elemento comunista/socialista na arte, sociedade, etc., ele também era, de certa forma, culturalmente à direita. Portanto, Popper ainda não era um liberal 2.0 em escala real, mas ele já está próximo.

George Soros: o destino

Depois veio o último elemento da transição do liberalismo 1.0 para o liberalismo 2.0. Bem-vindo ao universo de George Soros. Ironicamente, o nome “soros” em húngaro significa “próximo”. Que escolha certa para ser a figura simbólica do liberalismo 2.0.

Soros é um aluno de Karl Popper que, como o próprio Soros reconhece, teve um impacto decisivo em sua ideologia. Soros se tornou devoto de Popper e tornou seu objetivo de vida a promoção da Sociedade Aberta em todas as partes do mundo. Aqui estamos lidando com um projeto liberal em larga escala (uma contradição aos olhos de Hayek) que é ainda mais agressivo, radical e ofensivo do que o de Popper. Popper limitou seu ativismo a expressar seus pontos de vista. Soros, tornando-se um dos homens mais ricos do mundo através de especulações financeiras, tem aplicado os princípios da Sociedade Aberta à política global. Soros escolheu o nome “Sociedade Aberta” para sua fundação, que é um guarda-chuva para uma rede global de liberalismo ofensivo tentando influenciar, controlar, liderar e subverter a política em escala mundial. Com Soros, o liberalismo se torna realmente extremista. Ele não hesita em patrocinar revoluções coloridas, revoltas, golpes de Estado, etc., sempre que os considera dirigidos contra algum inimigo da Sociedade Aberta. Quais são os critérios para tal? Quem é o juiz? Os critérios são expressos na Bíblia de Soros – o livro de Popper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos. O juiz é o próprio Soros, o principal árbitro do projeto liberal e de sua implementação prática.

Ao mesmo tempo, podemos notar algumas mudanças na postura ideológica de Soros e de seu império global. Soros começou a se aproximar cada vez mais dos liberais de extrema esquerda, dos pós-modernistas declarados e dos ativistas de extrema esquerda em larga escala. Talvez porque ele os considere mais engajados no ativismo político – o que é necessário para atingir o objetivo global do projeto liberal. Ou suas opiniões sobre o sistema capitalista em geral mudaram. Mas seus últimos escritos e, mais ainda, os atos políticos de Soros e das organizações apoiadas por ele testemunham uma tendência crescente para a esquerda – incluindo a extrema-esquerda que é abertamente crítica ao capitalismo como tal. Soros promove ativamente o pós-humanismo, a política de gênero, a cultura do cancelamento, o feminismo e todos os tipos de movimentos antirreligiosos. Ele defende tudo isso em nome do progresso.

Com Soros, portanto, chegamos de alguma forma ao lado oposto do liberalismo. Se Popper era semelhante a Hayek e Soros era semelhante a Popper, então Soros e Hayek aparecem como dois extremos. Um (Hayek) é a favor da tradição, radicalmente contra qualquer tipo de projeto, e cético sobre o progresso (pois ninguém pode saber ao certo se algo é progresso ou não). O outro, ao contrário, é a favor do progresso e de um projeto liberal que pode ser chamado de liberalismo de extrema-esquerda.

Todas os três são contra a segunda e terceira teorias políticas, mas parece que, após a vitória sobre elas, a serpente se virou para morder sua própria cauda. Soros ataca quase tudo o que era querido e essencial para Hayek.

Tudo isso ficou claro no caso de Trump. Soros considerava Trump como sendo seu arqui-inimigo, o que significa que ninguém menos que Hayek também é. Trump, afinal, não é nada iliberal. Não há nada de nacional-bolchevique nele e em sua posição. Ele é um puro liberal – do tipo Hayek, não do tipo Soros.

Aqui flui o golfo entre Hayek (liberalismo 1.0) e Soros (liberalismo 2.0).

Indivíduo e divíduo

Gostaria de dirigir sua atenção para mais um ponto importante: o problema do indivíduo como ele é “resolvido” em ambas as ideologias, no liberalismo 1.0 e no liberalismo 2.0.

O liberalismo clássico coloca o indivíduo no centro da sociedade. A figura do indivíduo na física social do liberalismo desempenha o mesmo papel que a figura do átomo na ciência física. A sociedade consiste em átomos/indivíduos que representam a única base real e empírica das construções sociais, políticas e econômicas subsequentes. Tudo pode ser reduzido ao indivíduo. Essa é a lei.

Sendo assim, é fácil compreender a ética do liberalismo que é o fundamento de sua compreensão das normas e do progresso. Se o indivíduo é o sujeito principal da teoria política, ele precisa ser liberado de todos os laços com entidades coletivas limitando sua liberdade e privando-o de seus direitos naturais. Historicamente, todas as instituições e regras possíveis foram criadas por indivíduos (Thomas Hobbes), mas adquiriram algum poder indevido sobre eles, sendo o Estado um claro exemplo disso (o “Leviatã”). Mas todas as estruturas sociais – comunidades, seitas, igrejas, estamentos, profissões e, nos últimos tempos, classe, nacionalidade e gênero, têm a mesma função – usurpam a liberdade do indivíduo, impondo a ele (ou ela) os falsos mitos de alguma “identidade coletiva”. Portanto, a luta contra todo tipo de identidade coletiva é o dever moral dos liberais, e o progresso é medido pelo sucesso ou não dessa luta.

Tal lógica é o principal caminho do liberalismo. No final do século XX, a principal agenda da libertação do indivíduo havia sido cumprida. A tradicional ordem europeia pré-moderna foi derrotada e totalmente destruída já no início do século XX. A vitória sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo em 1991 marcou os dois pontos simbólicos da libertação do indivíduo em relação à identidade nacional e de classe (“estatista”) (desta vez como identidades artificiais inventadas pelas ideologias iliberais modernistas). A União Europeia foi criada como um monumento a esta vitória histórica. O liberalismo tornou-se sua ideologia implícita e, às vezes, explícita.

Aqui a história vitoriosa do liberalismo 1.0 se deteve. O indivíduo está liberado. O fim da história está mais próximo do que nunca. Não há mais inimigos formais fora do liberalismo. A ideologia dos direitos humanos, reconhecendo direitos quase iguais para qualquer ser humano fora das jurisdições nacionais (esta é a principal base ideológica da migração em massa), é certificada.

Neste ponto, os liberais perceberam que, além de todas as suas vitórias, ainda havia algo coletivo, alguma identidade coletiva esquecida que também deveria ser destruída. Bem-vindo à política de gênero. Ser homem e mulher significa compartilhar uma identidade coletiva definida, prescrevendo fortes práticas sociais e culturais. Este é um novo desafio para o liberalismo. O indivíduo deve ser liberado do sexo, pois este último ainda é considerado como algo objetivo. O gênero deve ser opcional e a consequência de uma escolha puramente individual.

A política de gênero começa aqui e muda sutilmente a própria natureza do conceito de indivíduo. Os pós-modernistas foram os primeiros a apontar que o indivíduo liberal é uma construção masculina e racionalista. Para “humanizá-lo” (aqui ainda estamos na zona do humano), novas práticas emancipatórias deveriam não só superar a igualdade de gênero, mas também trocar o bom e velho indivíduo por uma nova, estranha e pervertida (como pode parecer) construção. A simples equalização das possibilidades e funções sociais para homens e mulheres, incluindo o direito de mudar de sexo livremente e à vontade, não resolve o problema. Ainda assim, o patriarcado “tradicional” prevalecerá na definição de racionalidade, normas, etc.

Assim, os pós-modernistas – Deleuze, Guattari e assim por diante – chegaram à conclusão de que liberar o indivíduo não é suficiente. O próximo passo é libertar o ser humano, ou melhor, a “entidade viva” do indivíduo.

Agora chega o momento da substituição final do indivíduo pela entidade rizomática opcional de gênero, uma espécie de identidade de rede. E o último passo será a substituição da humanidade por seres estranhos pós-humanos – máquinas, quimeras, robôs, Inteligência Artificial e outras espécies da engenharia genética.

Nos anos 70 e 80, esta era a pesquisa de vanguarda dos extravagantes filósofos franceses. Nos anos 90, tornou-se uma importante tendência no domínio social e cultural dos países ocidentais. Na campanha de Biden, já era uma ideologia totalmente formada na ofensiva, glorificando não mais o indivíduo (como no liberalismo 1.0), mas a nova entidade pós-humana – a entidade tecnocêntrica, pós-gênero, pós-individual. Autores da esquerda como Antonio Negri e Michael Hardt (patrocinados e promovidos pelo mesmo George Soros) prepararam o terreno intelectual para estes conceitos. Mas agora eles são aceitos pelo próprio Grande Capital, apesar de terem sido originalmente dirigidos contra ele.

A linha entre o indivíduo e o divíduo, ou entre o ainda humano e o já pós-humano, é o principal problema da mudança paradigmática do liberalismo 1.0 para o liberalismo 2.0.

Trump era um humano individualista defendendo o individualismo no contexto humano ainda antigo. Talvez ele tenha sido o último. Biden é um defensor da chegada do pós-humanismo e do dividualismo.

Liberalismo 2.0 e a Quarta Teoria Política

Dedico o último de meus comentários sobre este tema verdadeiramente importante à Quarta Teoria Política e seu desenvolvimento no atual contexto ideológico. A Quarta Teoria Política é normativamente orientada contra todas as formas de Modernidade, contra a Modernidade enquanto tal. Entretanto, levando em consideração as realidades da vitória da Primeira Teoria Política sobre seus rivais, e assim assegurando o status de herdeiro único ao espírito principal da Modernidade (a Aufklärung), a Quarta Teoria Política é explícita e radicalmente antiliberal. Se podemos considerar o Nacional-Bolchevismo como o primeiro estágio da reflexão político-filosófica ideológica sobre o fato da vitória final do liberalismo sobre o comunismo em 1991 em toda sua profundidade metafísica, então a Quarta Teoria Política é claramente o segundo estágio do mesmo vetor. A principal diferença está na rejeição pela Quarta Teoria Política do bolchevismo, do nacionalismo ou de qualquer mistura dos dois como uma alternativa aproximadamente positiva ao liberalismo globalmente vitorioso. Esta é uma consequência do terreno radicalmente antimoderno da Quarta Teoria Política, que deveria ser mais do que clara na formulação de seus princípios básicos, em primeiro lugar ao se envolver em diferentes compromissos com as estruturas políticas existentes, sejam elas de direita ou de esquerda. Nem o populismo iliberal de esquerda, nem o populismo iliberal de direita, podem alcançar hoje uma vitória sincera sobre o liberalismo. Para isso, precisaríamos integrar a esquerda iliberal e a direita iliberal. Mas os liberais no poder estão muito vigilantes sobre isso, e sempre tentam impedir qualquer movimento desse tipo com antecedência. A miopia dos políticos e grupos de extrema-esquerda e de extrema-direita só desempenha as tarefas dos liberais.

Assim, após 30 anos de luta ideológica, posso sugerir que poupemos a etapa nacional-bolchevista e passemos diretamente à própria Quarta Teoria Política, rejeitando qualquer tipo de socialismo e nacionalismo e, em vez disso, afirmando uma visão claramente antimoderna de organização política. Já é tão difícil unir esquerdistas e direitistas fracos e decadentes, que seria mais fácil começar do zero e construir a Quarta Teoria Política como uma ideologia totalmente independente e abertamente antimoderna. Mas, ao mesmo tempo, não devemos ignorar o abismo evidente e crescente entre liberalismo 1.0 e liberalismo 2.0. Parece que o expurgo interior da Modernidade e Pós-Modernidade está agora levando à punição brutal e à excomunhão total de uma nova espécie de seres políticos – desta vez as vítimas serão os próprios liberais, aqueles que não se reconhecem na estratégia do Grande Reset de Biden-Soros, aqueles que se recusam a desfrutar do desaparecimento final da boa e velha humanidade, dos bons e velhos indivíduos, da boa e velha liberdade ou da economia de mercado. Não haverá lugar para nada disso no liberalismo 2.0. Ele vai ser pós-humano, e qualquer um que questionar isto será bem-vindo ao clube dos inimigos da Sociedade Aberta. Estamos aqui há décadas e nos sentimos mais ou menos confortáveis aqui. Portanto, bem-vindos ao inferno, recém-chegados. Qualquer adepto do Trump ou republicano comum é agora considerado uma personalidade potencialmente perigosa, exatamente como temos sido por muito tempo.

Este é o ponto importante. Quando insistimos em superar a posição nacional-bolchevique, não queremos ser mais aceitáveis para os liberais. Não, simplesmente esclarecemos nossa posição a fim de torná-la mais coerente com profundos princípios antimodernos. No entanto, na atual transição do liberalismo 1.0 para o liberalismo 2.0, isto pode, aliás, ter algumas conotações práticas.

Os liberais 1.0 devem tomar nota do fato de que a Quarta Teoria Política identifica como seu principal inimigo ideológico aquela realidade que é hoje a manifestação do que eles odeiam e pela qual estão sofrendo. O trumpismo e, de modo mais geral, o liberalismo individualista humano estão agora sob ataque. Aos olhos dos sorosianos e dos bidenistas, eles são quase idênticos aos nacional-bolcheviques e assim por diante. Eles não fazem distinção. Ser um inimigo da Sociedade Aberta é a sentença final. Não se pode mudar isto. Portanto, é hora de tomar nota do fato de que os liberais 1.0 não são mais cidadãos respeitáveis do status quo capitalista. Os liberais 1.0 estão agora sendo enviados para o exílio, para o gueto político – em nossa direção. Como a Quarta Teoria Política exige a revisão de todo o curso da Modernidade política, não é necessário tornar-se amigo do comunismo ou do nacionalismo neste gueto. Não se trata aqui do Nacional-Bolchevismo. A Quarta Teoria Política é sobre a batalha final da humanidade contra o liberalismo 2.0 – exatamente o que você pensa. Desde o início, foi uma espécie de compromisso incluir o “nacionalismo” na revolta contra o mundo moderno. Evola explicou bem as razões e os limites disso. Não foi um compromisso menor – e talvez muito maior – incluir a esquerda antiliberal, ou seja, socialistas e comunistas, se eles fossem sinceramente contra-hegemonicamente orientados. Agora podemos dar mais um passo: deixar que os liberais 1.0 se juntem às fileiras. Para isso, não é necessário se tornar iliberal, filocomunista, ou ferozmente nacionalista. Nada do gênero. Todos podem manter seus bons e velhos preconceitos enquanto quiserem. A Quarta Teoria Política é uma posição única onde a verdadeira liberdade é bem-vinda. A liberdade de lutar pela justiça social, a liberdade de ser um patriota e a liberdade de defender o Estado, a Igreja, o povo, a família, a liberdade de permanecer humano e a liberdade de se tornar outra coisa. A liberdade não está mais do lado deles. O liberalismo 2.0 é o inimigo de qualquer liberdade. Portanto, não percamos este valor. Ele é um valor muito grande, porque é a essência da alma e do coração humanos. A liberdade nos abre o caminho para Deus, para a sacralidade e para o amor.

Se a liberdade deve se tornar política, que ela seja nosso principal slogan.

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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