A CIA lê Teoria Francesa: O Trabalho Intelectual de Desmonte da Esquerda Cultural

Escrito por Gabriel Rockhill
Particularmente desde o final dos anos 60 e início dos anos 70, o Ocidente viu a esquerda abandonar e criticar o marxismo, se aproximando simultaneamente do liberalismo. Isso se deu principalmente no mundo intelectual francês, a partir de figuras como Michel Foucault. Há poucos anos, a CIA liberou documentos que demonstravam que ela havia apoiado e financiado projetos de esquerda liberal, e que eles consideravam o pensamento de figuras como Foucault ou como Bernard-Henri Lévy úteis para fragmentar a esquerda e paralisar o anti-imperialismo.

Muitas vezes presume-se que os intelectuais têm pouco ou nenhum poder político. Empoleirados em uma torre de marfim privilegiada, desconectados do mundo real, envolvidos em debates acadêmicos sem sentido sobre minúcias especializadas, ou flutuando nas nuvens abstrusas de teorias complexas, os intelectuais são freqüentemente retratados não apenas como isolados da realidade política, mas como incapazes de ter qualquer impacto significativo sobre ela. A Agência Central de Inteligência dos EUA, a CIA, pensa o contrário.

De fato, a agência responsável por golpes de Estado, assassinatos direcionados e manipulação clandestina de governos estrangeiros não só acredita no poder da teoria, mas dedicou recursos significativos para ter um grupo de agentes secretos debruçados sobre o que alguns consideram ser a teoria mais recôndita e intrincada já produzida. Pois em um intrigante trabalho de pesquisa escrito em 1985, e lançado recentemente com pequenas alterações através da Lei de Liberdade de Informação, a CIA revela que seus agentes estudaram a complexa teoria francesa, de grande influência internacional, ligada aos nomes de Michel Foucault, Jacques Lacan e Roland Barthes.

A imagem de espiões americanos reunidos nos cafés parisienses para estudar e comparar assiduamente notas sobre os sumo-sacerdotes da intelligentsia francesa pode chocar aqueles que presumem que este grupo de intelectuais são luminários cuja sofisticação extraterrestre nunca poderia ser apanhada em um arrastão tão vulgar, ou que assumem que eles são, ao contrário, charlatães mambembes de retórica incompreensível com pouco ou nenhum impacto no mundo real. Entretanto, não deve ser surpresa para aqueles familiarizados com o investimento de longa data e contínuo da CIA em uma guerra cultural global, incluindo o apoio a suas formas mais vanguardistas, que tem sido bem documentado por pesquisadores como Frances Stonor Saunders, Giles Scott-Smith, Hugh Wilford (e eu dei minha própria contribuição em Radical History & Politics of Art).

Thomas W. Braden, ex-supervisor de atividades culturais da CIA, explicou o poder do ataque cultural da Agência em um franco relato publicado em 1967: “Lembro-me da enorme alegria que tive quando a Orquestra Sinfônica de Boston [que era apoiada pela CIA] ganhou mais aclamação para os EUA em Paris do que John Foster Dulles ou Dwight D. Eisenhower poderia ter comprado com uma centena de discursos”. Esta não foi, de forma alguma, uma operação pequena ou liminar. Na verdade, como Wilford argumentou apropriadamente, o Congresso para a Liberdade Cultural (CCF), que foi sediado em Paris e mais tarde se descobriu ser uma organização de fachada da CIA durante a Guerra Fria cultural, esteve entre os patronos mais importantes da história mundial, apoiando uma gama incrível de atividades artísticas e intelectuais. Ele tinha escritórios em 35 países, publicou dezenas de revistas de prestígio, esteve envolvido na indústria do livro, organizou conferências internacionais de alto nível e exposições de arte, coordenou apresentações e concertos, e contribuiu com amplo financiamento para vários prêmios e bolsas culturais, bem como para organizações de fachada como a Fundação Farfield.

A agência de inteligência entende que a cultura e a teoria são armas cruciais no arsenal geral que ela implementa para perpetuar os interesses dos EUA em todo o mundo. O documento de pesquisa recentemente lançado em 1985, intitulado “France: Defection of the Leftist Intellectuals“, examina – sem dúvida para manipular – a intelligentsia francesa e seu papel fundamental na formação das tendências que geram políticas públicas. Sugerindo que tem havido um relativo equilíbrio ideológico entre a esquerda e a direita na história do mundo intelectual francês, o relatório destaca o monopólio da esquerda na era imediata do pós-guerra – ao qual, sabemos, a Agência se opôs raivosamente – devido ao papel dos comunistas na resistência ao fascismo e, por fim, na vitória da guerra contra ele. Embora a direita tivesse sido maciçamente desacreditada por causa de sua contribuição para os campos de morte nazistas, bem como sua agenda geral xenófoba, anti-igualitária e fascista (de acordo com a própria descrição da CIA), os agentes secretos anônimos que esboçaram o estudo, comentam, com um deleite palpável, o retorno da direita a partir do início dos anos 70.

Mais especificamente, os guerreiros culturais disfarçados aplaudem o que vêem como um duplo movimento que contribuiu para que a intelligentsia mudasse seu foco crítico para longe dos EUA e em direção à URSS. À esquerda, houve um gradual desinteresse intelectual pelo estalinismo e pelo marxismo, uma retirada progressiva dos intelectuais radicais do debate público, e um afastamento teórico em relação ao socialismo e ao partido socialista. Mais à direita, os oportunistas ideológicos referidos como Novos Filósofos e os intelectuais neo-direitistas lançaram uma campanha midiática de alto nível contra o marxismo.

Enquanto outros tentáculos da organização mundial de espionagem estavam envolvidos na derrubada de líderes eleitos democraticamente, fornecendo inteligência e financiamento a ditadores e apoiando esquadrões da morte, a esquadra central da inteligência parisiense estava coletando dados sobre como a deriva teórica mundial para a direita beneficiava diretamente a política externa dos EUA. Os intelectuais de esquerda da era imediata do pós-guerra tinham sido abertamente críticos do imperialismo norte-americano. O poder midiático de Jean-Paul Sartre como crítico marxista declarado, e seu notável papel – como fundador do Libération – de expôr o centro de operações da CIA em Paris, revelando dezenas de agentes infiltrados, foi acompanhado de perto pela Agência e considerado um problema muito sério.

Em contraste, a atmosfera anti-soviética e anti-marxista da emergente era neoliberal desviou o escrutínio público e forneceu excelente cobertura para as guerras sujas da CIA, tornando “muito difícil para qualquer um mobilizar oposição significativa entre as elites intelectuais às políticas dos EUA na América Central, por exemplo”. Greg Grandin, um dos principais historiadores da América Latina, resumiu perfeitamente esta situação em The Last Colonial Massacre: “Além de fazer intervenções visivelmente desastrosas e mortais na Guatemala em 1954, na República Dominicana em 1965, no Chile em 1973 e em El Salvador e na Nicarágua durante os anos 80, os Estados Unidos emprestaram um apoio financeiro, material e moral calmo e constante a Estados terroristas contrainsurgentes assassinos. […] Mas a enormidade dos crimes de Stálin garante que tais histórias sórdidas, por mais convincentes, completas ou condenatórias que sejam, não perturbem a fundação de uma visão de mundo comprometida com o papel exemplar dos Estados Unidos na defesa do que hoje conhecemos como democracia”.

É neste contexto que os mandarins mascarados elogiam e apoiam a crítica implacável que uma nova geração de pensadores anti-marxistas como Bernard-Henri Levy, André Glucksmann e Jean-François Revel desencadearam sobre “a última claque de sabichões comunistas” (composto, segundo os agentes anônimos, de Sartre, Barthes, Lacan e Louis Althusser). Dada a inclinação de esquerda destes anti-marxistas na sua juventude, eles fornecem o modelo perfeito para a construção de narrativas enganosas que fundem o suposto crescimento político pessoal com a marcha progressiva do tempo, como se tanto a vida individual quanto a história fossem simplesmente uma questão de “crescer” e reconhecer que a profunda transformação social igualitária é uma coisa do passado pessoal e histórico. Este derrotismo paternalista e onisciente serve não apenas para desacreditar novos movimentos, particularmente aqueles impulsionados pela juventude, mas também descaracteriza os sucessos relativos da repressão contrarrevolucionária como o progresso natural da história.

Mesmo os teóricos que não eram tão opostos ao marxismo como estes intelectuais reacionários deram uma contribuição significativa para um ambiente de desilusão em relação ao igualitarismo transformador, de desapego em relação à mobilização social e de “investigação crítica” desprovido de política radical. Isto é extremamente importante para entender a estratégia geral da CIA em suas amplas e profundas tentativas de desmantelar a esquerda cultural na Europa e em outros lugares. Ao reconhecer que era improvável que pudesse aboli-la completamente, a organização espiã mais poderosa do mundo procurou afastar a cultura esquerdista da política anti-capitalista transformadora em direção a posições reformista de centro-esquerda que são menos abertamente críticas às políticas externa e interna dos EUA. De fato, como Saunders demonstrou em detalhes, a Agência agiu pelas costas do Congresso liderado por McCarthy na era pós-guerra a fim de apoiar e promover diretamente projetos de esquerda que afastassem os produtores e consumidores culturais da esquerda revolucionária. Ao cortar e desacreditar esta última, ela também aspirava a fragmentar a esquerda em geral, deixando o que restava da centro-esquerda apenas com um mínimo de poder e apoio público (além de potencialmente desacreditada devido a sua cumplicidade com a política de poder da direita, uma questão que continua a atormentar os partidos institucionalizados contemporâneos de esquerda).

É sob esta luz que devemos entender o gosto da agência de inteligência pelas narrativas de conversão e sua profunda apreciação pelos “marxistas reformados”, um leitmotiv que atravessa o trabalho de pesquisa sobre a teoria francesa. “Ainda mais eficazes em minar o marxismo”, escrevem os infiltrados, “foram aqueles intelectuais que se propuseram como verdadeiros crentes a aplicar a teoria marxista nas ciências sociais, mas acabaram repensando e rejeitando toda a tradição”. Eles citam em particular a profunda contribuição feita pela Escola Annales de historiografia e estruturalismo – particularmente Claude Lévi-Strauss e Foucault – para a “demolição crítica da influência marxista nas ciências sociais”. Foucault, que é referido como “o pensador mais profundo e influente da França”, é aplaudido especificamente por seu elogio aos intelectuais neo-direitistas por lembrar aos filósofos que “conseqüências sangrentas” têm “fluido da teoria social racionalista do Iluminismo do século 18 e da era revolucionária”. Embora fosse um erro colapsar a política ou o efeito político de qualquer pessoa em uma única posição ou resultado, o esquerdismo anti-revolucionário de Foucault e sua perpetuação da chantagem do gulag – ou seja, a afirmação de que os movimentos radicais expansivos que visam uma profunda transformação social e cultural apenas ressuscitam a mais perigosa das tradições – estão perfeitamente de acordo com as estratégias gerais de guerra psicológica da agência de espionagem.

A leitura que a CIA faz da teoria francesa deveria nos fazer pausar, então, para reconsiderar o verniz “radical chic” que acompanhou grande parte de sua recepção anglófona. De acordo com uma concepção etapista da história progressiva (que geralmente é cega para sua teleologia implícita), o trabalho de figuras como Foucault, Derrida e outros teóricos franceses de vanguarda é muitas vezes intuitivamente afiliado a uma forma de crítica profunda e sofisticada que presumidamente ultrapassa de longe qualquer coisa encontrada nas tradições socialistas, marxistas ou anarquistas. É certamente verdade e merece ênfase que a recepção anglófona da teoria francesa, como John McCumber adequadamente apontou, teve importantes implicações políticas como um pólo de resistência à falsa neutralidade política, aos aspectos técnicos seguros da lógica e da linguagem, ou ao conformismo ideológico direto operante nas tradições apoiadas por McCarthy da filosofia anglo-americana. Entretanto, as práticas teóricas de figuras que viraram as costas ao que Cornelius Castoriadis chamou de tradição da crítica radical – que significa resistência anti-capitalista e anti-imperialista – certamente contribuíram para o desvio ideológico da política transformadora. Segundo a própria agência de espionagem, a teoria francesa pós-marxista contribuiu diretamente para o programa cultural da CIA de empurrar a esquerda para a direita, ao mesmo tempo em que desacreditou o anti-imperialismo e o anti-capitalismo, criando assim um ambiente intelectual no qual seus projetos imperiais poderiam ser perseguidos sem obstáculos por um sério escrutínio crítico por parte da intelligentsia.

Como sabemos pela pesquisa sobre o programa de guerra psicológica da CIA, a organização não só rastreou e procurou coagir os indivíduos, mas sempre esteve interessada em entender e transformar as instituições de produção e distribuição cultural. De fato, seu estudo sobre a teoria francesa aponta para o papel estrutural que as universidades, as editoras e a mídia desempenham na formação e consolidação de um ethos político coletivo. Em descrições que, como o resto do documento, deveriam nos convidar a pensar criticamente sobre a situação acadêmica atual no mundo anglófono e além dele, os autores do relatório dão primeiro plano às formas pelas quais a precarização do trabalho acadêmico contribui para a demolição do esquerdismo radical. Se esquerdistas não conseguem assegurar os meios materiais necessários para realizar nosso trabalho, ou se somos mais ou menos sutilmente obrigados a nos conformar para encontrar emprego, publicar nossos escritos ou ter um público, então as condições estruturais para uma comunidade resolutamente de esquerda são enfraquecidas. A profissionalização do ensino superior é outra ferramenta utilizada para este fim, pois visa transformar as pessoas em engrenagens tecnocientíficas do aparelho capitalista em vez de cidadãos autônomos com ferramentas confiáveis para a crítica social. Os mandarins teóricos da CIA elogiam, portanto, os esforços por parte do governo francês de “empurrar os estudantes para cursos técnicos e de negócios”. Eles também apontam para as contribuições feitas por grandes editoras como a Grasset, os meios de comunicação de massa e a moda da cultura americana em impulsionar sua plataforma pós-socialista e anti-igualitária.

Que lições podemos tirar deste relatório, particularmente no atual ambiente político com seu contínuo ataque à intelligentsia crítica? Em primeiro lugar, deveria ser um lembrete convincente de que se alguns presumem que os intelectuais são impotentes e que nossas orientações políticas não importam, a organização que tem sido um dos mais potentes atores na política mundial contemporânea não concorda. A Agência Central de Inteligência, como seu nome ironicamente sugere, acredita no poder da inteligência e da teoria, e nós devemos levar isto muito a sério. Ao presumir falsamente que o trabalho intelectual tem pouca ou nenhuma tração no “mundo real”, não apenas deturpamos as implicações práticas do trabalho teórico, mas também corremos o risco de fechar os olhos perigosamente para os projetos políticos para os quais podemos facilmente nos tornar os embaixadores culturais involuntários. Embora seja certamente o caso que o Estado-nação e o aparato cultural francês forneçam uma plataforma pública muito mais significativa para os intelectuais do que se encontra em muitos outros países, a preocupação da CIA em mapear e manipular a produção teórica e cultural em outros lugares deve servir como um alerta para todos nós.

Em segundo lugar, os atores do presente têm interesse em cultivar uma intelligentsia cuja perspicácia crítica tenha sido entorpecida ou destruída, fomentando instituições fundadas em interesses comerciais e tecnocientíficos, equiparando a política de esquerda a anti-cientificidade, correlacionando a ciência com uma suposta – mas falsa – neutralidade política, promovendo mídia que satura as ondas de ar com falatório conformista, isolando esquerdias radicais fora das principais instituições acadêmicas e dos holofotes da mídia, e desacreditando qualquer apelo por uma transformação radical igualitária e ecológica. Idealmente, eles procuram cultivar uma cultura intelectual que, se à esquerda, é neutralizada, imobilizada, indiferente e contente com o pulso derrotista, ou com a crítica passiva da esquerda radicalmente mobilizada. Esta é uma das razões pelas quais poderíamos querer considerar a oposição intelectual ao esquerdismo radical, que prevalece na academia norte-americana, como uma posição política perigosa: não é ela diretamente cúmplice da agenda imperialista da CIA em todo o mundo?

Em terceiro lugar, para combater este ataque institucional é imperativo resistir à precarização e à vocacionalização da educação. É igualmente importante criar esferas públicas de debate verdadeiramente críticas, proporcionando uma plataforma mais ampla para aqueles que reconhecem que outro mundo não só é possível, mas necessário. Também precisamos nos unir a fim de contribuir ou desenvolver ainda mais meios de comunicação alternativos, diferentes modelos de educação, contra-instituições e coletivos radicais. É vital fomentar exatamente o que os combatentes culturais encobertos querem destruir: uma cultura radical com uma ampla estrutura institucional de apoio, amplo apoio público, influência predominante da mídia e poder expansivo de mobilização.

Finalmente, os intelectuais do mundo devem se unir para reconhecer nosso poder e aproveitá-lo para fazer tudo o que pudermos para desenvolver uma crítica sistêmica e radical tão igualitária e ecológica quanto anti-capitalista e anti-imperialista. As posições que se defende na sala de aula ou publicamente são importantes para estabelecer os termos do debate e traçar o campo das possibilidades políticas. Em oposição direta à estratégia cultural de fragmentação e polarização da agência de espionagem, pela qual ela tem procurado cortar e isolar a esquerda anti-imperialista e anticapitalista, enquanto a contrasta com posições reformistas, devemos nos federar e mobilizar reconhecendo a importância de trabalharmos juntos para o cultivo de uma intelligentsia verdadeiramente crítica. Ao invés de proclamar ou lamentar a impotência dos intelectuais, deveríamos aproveitar a capacidade críticar as instituições hegemônicas, trabalhando juntos e mobilizando nossa capacidade de criar coletivamente as instituições necessárias para uma nova esquerda cultural. Pois só em tal mundo, e nas câmaras de eco da inteligência crítica que ele produz, é que as verdades faladas podem realmente ser ouvidas, e assim mudar as próprias estruturas do poder.

Fonte: The Philosophical Salon

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Nova Resistência
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