Antonio Gramsci – Uma breve biografia intelectual do pai da metapolítica

Por Alain de Benoist
02/05/2019

Fonte: https://arktos.com/2019/05/02/antonio-gramsci/

Houve um tempo em que Marx era simplesmente lido; hoje em dia ele é imposto. Não é só uma moda: a vasta maioria de tudo que é publicado no domínio ideológico hoje se localiza no escopo do marxismo e a moda não se foca mais em ninguém, a não ser naqueles autores que, em relação a Marx, introduzem um número de variações pessoais. Às vezes é Lukács[1], em outras, Rosa Luxemburgo[2], ou então Wilhelm Reich.

Recentemente, foi a vez de Gramsci, e Gallimard publicou a primeira coleção de seus escritos políticos, indo do período de 1914 a 1920.

Antonio Gramsci é, junto a Lukács, o “Marxista-Leninista independente” mais renomado do período stalinista. Ele é, acima de tudo, o teórico do “poder cultural”.

Gramsci nasceu na Sardenha em 1891. Uma lenda meio Dom Bosco o transformou no filho de um pastor. Mas na verdade seu pai era um oficial. Aos três anos, depois de cair de uma escadaria, sofre de uma deformação na coluna, deixando-o corcunda pelo resto de sua vida. Aos dezessete anos, uma bolsa de estudos permite-o entrar na universidade. Chega em Torino em 1911. Dois anos depois, junta-se ao Partido Socialista Italiano (PSI), imediatamente se torna um militante de “Esquerda”. Também contribui com o jornal “Avanti!” e o semanal “Grido Del Popolo”.

No 1º de maio de 1911, lança o semanal “Ordine Nuovo”, em colaboração com Terracini[3] e Palmiro Togliatti[4].

Naquele momento, o mundo comunista estava em um estado de reviravolta completa. Começando em 1918, certas correntes se declaravam em favor de um “apoio crítico” ao bolchevismo russo. Essas correntes se recusavam a aceitar a hegemonia do Komintern (a Internacional Comunista) sem questionamentos. Na Alemanha, esse era o caso de grupos que formariam o KAPD (Partido dos Trabalhadores Comunistas da Alemanha) em 1920, junto a Rosa Luxemburgo e Karl Korsch[5]. O mesmo se aplica aos “conselheiros” de Pannekoek[6] na Holanda. A sua oposição impactou especialmente a ação parlamentária, que consideravam inadequada para o propósito da luta socialista, e o papel dos sindicatos, cujas virtudes revolucionárias eram questionadas.

Essa posição, que mais tarde seria adotada por diversos movimentos de esquerda, é denunciada por Lênin em “Comunismo de “Esquerda”: uma desordem infantil”.

Na Itália, dentro do PSI, dois grupos de “esquerda” entram em conflito: um liderado por Amadeo Bordiga[7], o outro por Gramsci.

[…]

O propósito do sindicato, escreve Gramsci, “é o que pode ser chamado de comercial”: consiste em “melhorar o trabalho de uma certa categoria de trabalhadores dentro do mercado burguês”, que não possui conexão com a revolução. Quanto à “religião do partido”, que está conectada ao burocratismo e elitismo, é expressa através do “desejo de cultivar o aparato em si mesmo” (Notas sobre Maquiavel). A conclusão? Tanto o partido quanto o sindicato podem ser agentes da revolução, mas não podem nunca ser suas formas privilegiadas, as quais então se juntariam a ela.

Com estas fortes características, nariz largo, cabelos pretos e um “lorgnette”, Gramsci participa de todos os congressos. É assim que enuncia a sua famosa frase: “apenas a verdade é revolucionária.”

Em paralelo, elabora uma teoria do “conselho de fábrica”, cuja ideia central afirma que o proletariado deve estabelecer a sua ditadura por meios de organismos que sejam espontaneamente criados dentro de si. A palavra crucial aqui é “espontaneamente”, implicando um retorno à estaca zero.

Bordiguistas e “traidores sociais”

Gramsci, dessa forma, volta sua atenção aos “conselhos de fábrica” nos quais uma síntese deve acontecer entre a infraestrutura econômica e a superestrutura política: durante a primeira fase da sociedade comunista, o estado proletário global nascerá da coalizão dos conselhos da fábrica e do campo, dando luz à “democracia direta”. Escreve:

“Os comissários de fábrica são os únicos representantes sociais (econômicos e políticos) da classe trabalhadora, já que são eleitos pelo sufrágio universal por todos os trabalhadores, sobre as próprias premissas trabalhistas.”

Em abril e setembro de 1920, uma imensa ação de greve abala o norte da Itália. É um grande acontecimento:

“Pela primeira vez na história, o proletariado está iniciando uma luta pelo controle da produção sem ter sido levado à ação pela fome ou pelo desemprego.” (Ordine Nuovo, 14 de março de 1921)

Em Torino, Gramsci está encarregado de todas as corporações de sovietes. Afirma:

“Toda fábrica é um Estado ilegal, uma república proletária que vive de dia a dia!”

Em breve, porém, o entusiasmo diminui. A ala direita do PSI “rompe” o movimento e a democracia social perde chão. Além disso, a decisão tomada por Lênin de acelerar as cisões comunistas dentro dos partidos socialistas acelera ainda mais as coisas. No dia 21 de janeiro, 1921, em Livorno, a “facção comunista” do PSI se torna o Partido Comunista Italiano. Apesar de tanto Gramsci quanto Togliatti participarem de sua criação, Bordiga acaba tomando o seu controle graças a sua organização superior.

[…]

Em janeiro de 1926, o Partido Comunista Italiano realiza um congresso em Lyon, na França. Gramsci consegue impor suas teorias e se torna secretário geral. Porém, já é tarde demais: privado de seus eleitores e exausto por conflitos mortíferos, o partido se torna proibido em 8 de novembro e entra em clandestinidade. Gramsci é preso, transferido para a ilha de Utica e sentenciado a vinte anos de prisão.

É ali, na sua cela, que ele escreve os seus textos mais importantes: Os Cadernos do Cárcere, divididos em trinta e três panfletos e 3000 páginas de manuscritos.

Livre das contingências da ação, Gramsci repensa toda a práxis do marxismo-leninismo. Reflete especialmente sobre o grande revés socialista dos anos 20: como é possível que a consciência dos homens esteja “atrasada” em relação a sua situação de classe, a qual se espera ter primazia sobre eles? Como que as castas dominantes “naturalmente” garantem a obediência das classes dominadas? Gramsci responde a todas essas questões investigando mais a fundo a noção de ideologia e criando uma distinção decisiva entre a “sociedade política” e a “sociedade civil”.

A Teoria do Poder Cultural

Gramsci usa a expressão “sociedade civil” (um termo usado por Hegel[8], porém criticado por Marx) para designar todo o setor “privado”, compreendendo o seu sistema de necessidades, jurisdição, administração e corporações, mas também os domínios intelectuais, religiosos e morais.

O erro que fora cometido pelos comunistas estava na sua crença em que o Estado não era nada mais que um simples aparato político. Porém, o Estado “também organiza o consenso”, o que significa que ele administra as coisas por meio de uma ideologia implícita, que é fundada sobre valores defendidos pela maioria dos membros da sociedade. Esse aparato “civil” compreende a cultura, as ideias, os hábitos e as tradições, chegando até mesmo no “senso comum”.

Em outras palavras, o Estado não é um mero aparato de coerção. Junto à direta dominação e à autoridade que exerce através do poder político, ele também se beneficia da “hegemonia” ideológica e da aderência mental das pessoas a uma visão de mundo que o consolida e o justifica, ambas derivam das suas atividades de poder cultural (ver também a distinção feita por Althusser entre “os aparelhos repressivos do Estado” e “os aparelhos ideológicos do Estado”).

Distanciando-se de Marx, que reduziu a “sociedade civil” apenas a sua infraestrutura econômica, Gramsci percebe perfeitamente que é dentro da própria sociedade civil que as visões de mundo, filosofias, religiões e todas as atividades intelectuais e espirituais implícitas ou explícitas são elaboradas e disseminadas, dessa forma, permitindo a criação e a perpetuação do consenso social (falhou em notar, no entanto, que a ideologia também está conectada a mentalidades, isto é, à estrutura mental de cada povo). Reintegrando a sociedade civil no nível da superestrutura e associando-a à ideologia, da qual depende, Gramsci diferencia a partir disso duas formas de superestrutura no mundo ocidental: de um lado, a sociedade civil e, do outro, a sociedade política ou o próprio Estado.

Enquanto no Oriente o Estado é tudo e a sociedade civil é ao mesmo tempo “primitiva e gelatinosa”, os comunistas do Ocidente devem permanecer atentos ao fato de que o aspecto “civil” é uma adição ao “político”. Se Lênin, que não o percebeu, sucedeu em tomar o poder, é porque na Rússia a sociedade civil era inexistente. Em sociedades desenvolvidas, nenhuma tomada de poder é possível sem uma prévia conquista do poder cultural:

“Uma tomada de poder não acontece apenas por uma insurreição política que toma o comando do Estado, mas também por uma longa atividade ideológica dentro da sociedade civil que permite estabelecer as fundações necessárias. (Hélène Védrine[9], Les philosophies de l’histoire[10]. Payot, 1975).”

A “transição ao socialismo” não é canalizada nem através de um golpe e nem através de confronto direto, mas através da subversão das mentes.

O problema central nessa guerra de posição é a cultura, que age como o posto de comando de valores e ideias.

Assim, Gramsci rejeita simultaneamente o leninismo tradicional (a teoria do confronto revolucionário), o revisionismo stalinista (a estratégia da frente popular) e as teorias de Kautsky[11] (uma organização de uma assembleia vasta de trabalhadores). Tanto em vez do “trabalho de partido” quanto em paralelo a ele, Gramsci sugere substituir a “hegemonia burguesa” pela “hegemonia cultural proletária”, bem debaixo do nariz das autoridades estabelecidas. Superada com valores que não são mais os seus, a sociedade existente será então abalada nas suas mais firmes fundações e tudo que deverá ser feito é se aproveitar da situação no campo político.

Daí o papel atribuído aos intelectuais: “vencer a guerra cultural”. Aqui o intelectual é definido pela função que exerce em relação a um tipo de sociedade ou produção. Gramsci escreve:

“Todo grupo social nascido no campo primário de uma função essencial dentro de um mundo de produção econômica cria organicamente, ao mesmo tempo, uma ou diversas camadas de intelectuais que lhe concedem homogeneidade e consciência de sua própria função, não só no domínio econômico, mas também no social e no político.” (Intelectuais e a Organização Cultural)

Usando essa definição (bem ampla), Gramsci faz distinção entre os intelectuais orgânicos, que garantem a coesão ideológica de um dado sistema, e os intelectuais tradicionais, isto é, aqueles que representam as antigas classes sociais que persistem através da ruptura das relações de produção.

É no nível dos “intelectuais orgânicos” que Gramsci recria o sujeito da história e da política – “o Nous organizacional de outros grupos sociais”, para usar a expressão cunhada pelo Sr. Henri Lefebvre[12] (La fin de l’histoire[13]. Minuit, 1970). O sujeito não é mais o Príncipe ou o Estado, nem mesmo o partido, mas o intelectual de vanguarda conectado à classe trabalhadora. É essa vanguarda que, com um “trabalho de cupim”, realiza a “função de classe”, se tornando o representante dos grupos representados nas forças de produção.

É também responsável por garantir ao proletariado a “homogeneidade ideológica” e a consciência necessária para assegurar a sua hegemonia – um conceito que, com Gramsci, substitui e transcende o de “ditadura do proletariado” (na medida em que se estende além do político e abarca a ideologia).

Pluralismo e consenso desvanecente

No processo, Gramsci se aprofunda sobre os meios que qualifica como apropriados para a “persuasão permanente”: apelar à sensibilidade popular, uma reviravolta de valores em nível de poder, a criação dos “heróis socialistas” e a promoção de performances teatrais, folclore e canções (quando define esses objetivos, se inspira na experiência inicial fascista e os seus primeiros sucessos). O comunismo, afirma, deve resolver seus próprios problemas levando a experiência soviética em conta, mas sem tentar seguir passivamente esse modelo. Isso leva-o a destacar a especificidade das problemáticas nacionais. A seu ver, a ação política e a estratégia não podem negar nem a complexidade das sociedades e nem o seu temperamento, mentalidades, imagens históricas, culturas, tradições, relações de classe (incluindo seus aspectos ideológicos), etc.

Gramsci estava bem consciente do fato de que o período pós-fascista não seria um período socialista. Mas pensou, porém, que o segundo, mais uma vez dominado pelo liberalismo, representaria uma excelente oportunidade para praticar a subversão cultural, pois os proponentes do socialismo estariam, moralmente falando, em uma posição de poder.

Desse “desvio democrático” deve nascer um novo bloco histórico administrado pela classe trabalhadora, com os intelectuais tradicionais ou vencidos ou destruídos. (Quando usa o termo “bloco histórico”, uma noção que foi especialmente baseada no estudo da situação que permeava o sul da Itália, o que Gramsci realmente estava se referindo era a um sistema de alianças políticas que associassem a infraestrutura e a superestrutura, centrado no proletariado e fundado sobre a “história”, ou seja, sobre as classes e a sua estrutura dentro da sociedade.)

Essa visão se mostrou profética, não só porque foi especificamente em regimes liberais que a subversão teve a maior liberdade de ação, mas também porque, sendo pluralistas, esses regimes são caracterizados por um fraco consenso que fomenta a interferência dos intelectuais nas lutas políticas. O Sr. Jean Baechler[14] escreve:

“Um consenso desvanecente é o que tipifica uma ordem pluralista. De fato, o pluralismo político, sendo o reconhecimento institucional da legitimidade de projetos divergentes e competitivos, é intrinsecamente um consenso corrosivo. Sob o impacto único do mecanismo da competição, a pluralidade de partidos leva à percepção cada vez mais clara da multiplicidade e da variabilidade de partidos, instituições e valores. Se o pior vem do pior, não há nada em que os membros de tal sociedade possam unanimemente concordar.” (Qu’est-ce que l’idéologie?[15] Gallimard, 1976)

Encontramo-nos então em um ciclo vicioso. As atividades dos intelectuais contribuem com a destruição do consenso geral, com a disseminação de ideologias subversivas que se somam às falhas intrínsecas dos regimes pluralistas. E quanto mais se reduz o consenso, mais forte se torna a demanda ideológica (à qual as atividades dos intelectuais devem, por sua vez, responder). A maioria ideológica se encontra então invertida.

[…]

Referências

1 Nota do tradutor: Nascido György Bernát Löwinger, György ou Georg Lukács (13 de abril de 1885–4 de junho de 1971) foi um filósofo marxista húngaro, filósofo da estética, historiador da literatura e crítico.

2 NT: Rosa Luxemburgo (5 de março de 1871–15 de janeiro de 1919) foi uma teórica marxista, filósofa, economista, ativista anti-guerra e socialista revolucionária.

3 NT: Um político anti-fascista.

4 NT: Togliatti foi líder do Partido Comunista Italiano.

5 NT: Karl Korsch (15 de agosto de 1886–21 de outubro de 1961) foi um teórico marxista alemão.

6 NT: Antonie (Anton) Pannekoek (2 de janeiro de 1873–28 de abril de 1960) foi um astrônomo holandês, teórico marxista e revolucionário social. Foi um dos principais teóricos do comunismo de conselho (conselhismo).

7 NT: Amadeo Bordiga (13 de junho de 1889–23 de julho de 1970) foi um marxista italiano, contribuidor da teoria comunista, fundador do Partido Comunista Italiano, líder da Internacional Comunista e, mais tarde, uma figura líder do Partido Internacional Comunista.

8 NT: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (27 de agosto de 1770–14 de novembro de 1831) foi um filósofo alemão e uma figura de importância no idealismo alemão.

9 NT: Nascido em 5 de junho de 1926, Hélène Védrine é uma filósofa francesa.

10 NT: As Filosofias da História.

11 NT: Karl Johann Kautsky (16 de outubro de 1854–17 de outubro de 1938) foi um filósofo checo-austríaco, jornalista e teórico marxista.

12 NT: Henri Lefebvre (16 de junho de 1901–29 de junho de 1991) foi um filósofo marxista e sociólogo francês, mais conhecido por ser pioneiro em sua crítica da vida diária, seus conceitos como o “direito à cidade” e a produção do espaço social e o seu trabalho sobre dialética e alienação. Criticou o stalinismo, o existencialismo e o estruturalismo com veemência.

13 NT: O Fim da História.

14 NT: Nascido em 28 de março de 1937, Jean Baechler é um sociólogo francês.

15 NT: O que é ideologia?

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Alain de Benoist

Escritor, jornalista, ensaísta e filósofo, um dos autores chave da Quarta Teoria Política, é autor de numerosas obras sobre uma vasta gama de temas, incluindo arqueologia, tradições populares e história da religião.

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