Subcomandante Marcos e o Movimento Zapatista: Terra, Nação e Autonomia:

Para que uma autonomia descentralizada floresça, comunidades independentes devem ser internamente coesas: semelhante unidade tribal é a essência do nacionalismo, e grupos indígenas têm vivido de acordo com esse princípio por milênios. Porém, determinados grupos, produtos do Estado corporativo globalizado, não compreendem tal nacionalismo orgânico e, não o compreendendo, o atacam. Para todos os fins, porém, esses ataques emergem da confusão entre Nação e Estado: uma distinção entre essas duas entidades, portanto, não pode deixar de ser enfatizada.

Ward Churchill é muito bem sucedido ao expressar a diferença entra ambas, e a perspectiva indígena em que ele contextualiza seu ponto de vista serve para elucidar as coisas ainda mais:

“Uma confusão de termos que […] ainda parece assolar o discurso, é a confusão entre o termo ‘nação’ e o termo ‘Estado’ […] Muitos anarquistas caminham acreditando que são antinacionalistas, acreditando que a nacionalidade, o nacionalismo em todas as suas formas, é necessariamente algum tipo de mal a ser combatido, quando, ao contrário, é exatamente isso que eles buscam construir. Há quatro ou cinco mil nações no planeta, ao passo que há duzentos Estados. Desta forma, essas pessoas usam o ‘antinacionalismo’ como código para o antiestatismo. Com os povos indígenas, por outro lado, a nacionalidade é um ideal afirmativo, sem qualquer tipo de similaridade com as estruturas estatais” [1].

Ou seja, algo que tem sido intuitivo para tribos indígenas através da história é incompreensível para a consciência do resto do mundo, atado a construtos mentais clivados, que exaltam os conceitos e a linguagem acima das nuances da realidade prática. Mas nem todos os radicais caem neste engodo. Comunidades Autônomas que têm sido influenciadas por métodos indígenas de organização social são os melhores exemplos de uma independência sustentável. Um dos exemplos atuais de maior sucesso é o Movimento Zapatista no México, que sincretiza tradições indígenas com a teoria política revolucionária.

Chiapas era o lugar ideal para o nascimento do Movimento Zapatista. Os grupos étnicos maias que vivem ali já tinham por anos experimentado uma autonomia de facto, derivada da negligência do governo [2]. Eles também se auto-organizavam conforme seus valores culturais e costumes. Em 1983, três mestiços, formados no grupo guerrilheiro mexicano Forças de Liberação Nacional, chegaram à região e uniram três povos indígenas para fundar o Exército Zapatista de Liberação Nacional. Um desses mestiços, conhecido como Subcomandante Insurgente Marcos, tinha uma abordagem bastante autoritária para organizar o movimento. Porém, ele logo percebeu a necessidade de incluir as aldeias indígenas que viviam onde ele e seus companheiros planejavam desafiar o Estado mexicano [3]. Mais tarde, Marcos explicou a um grupo de jovens anarquistas que ele chegou lá sentindo-se a vanguarda revolucionária, mas depois reconheceu a importância de todas as pessoas terem suas voz ouvidas no que dizia respeito às suas terras natais [4]. Em outra entrevista, Marcos descreveu sua evolução filosófica:

“[…] nós aprendemos que não é possível impor uma forma de política sobre o povo, porque mais cedo ou mais tarde, você acaba fazendo o mesmo que você criticou. Você critica um sistema totalitário e, então, oferece outro sistema totalitário. Você não pode impor um sistema político pela força. Antes, eles diziam: ‘vamos nos livrar desse sistema de governo e colocar esse outro tipo de sistema no lugar’. Nós dizemos: ‘não, o sistema político não pode ser produto da guerra’. A guerra deve servir apenas para abrir o espaço na arena política para que o povo possa realmente ter uma escolha. Não importa quem vença, não importa se é a extrema-direita ou a extrema-esquerda, desde que eles conquistem a confiança do povo” [5].

Marcos aprendeu que os métodos de organização social usados nessas comunidades indígenas, incluindo um processo de tomada de decisões horizontal, é constituído de elementos ancestrais da cultura maia [6]. Ao harmonizar seus objetivos e métodos com os valores e costumes locais, Marcos evoluiu a partir de seu dogmatismo esquerdista totalitário e aprofundou sua compreensão da relação entre terra, cultura, nação e autodeterminação.

Desde o levante zapatista, em janeiro de 1994 [7], o Subcomandante Marcos tem sido objeto de uma quantidade desproporcional de atenção midiática. Em certa medida, isso faz sentido – ele é o porta-voz do grupo, e possui diversos traços (incluindo uma educação universitária e eloquência linguística) que o tornam o representante de relações públicas ideal. Mas ao mesmo tempo, veículos de mídia, no México e no exterior, se encantaram com Marcos, tendendo a negligenciar a maioria dos soldados do EZLN, os “humildes e simples” [8] homens e mulheres indígenas que tornaram o movimento possível. Mas apesar de ter se tornado algo como uma celebridade, Marcos consistentemente rejeitou uma posição de liderança unilateral [9]. Um exemplo dessa rejeição é a submissão voluntária do Subcomandante à hierarquia militar do CCRI-CG (Comitê Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral). Similarmente, na contraparte desarmada do EZLN, a Outra Campanha [10], o título de Marcos é “Delegado Zero”. O nome, que foi introduzido no contexto das eleições presidenciais mexicanas de 2006, abrange vários elementos: ele satirizava os candidatos em destaque no país na época, assim como comunica um senso de transcendência em relação aos conflitos políticos partidários, implicando a própria insignificância relativa de Marcos. Tal humildade não é tão comumente vista em pessoas políticas tão influentes.

Essa coisas são importantes desde uma perspectiva anarquista, porque demonstram que a liderança pode ser uma entidade fluida, não sendo necessariamente uma questão de poder absoluto: ao invés de ser inerentemente opressiva, a verdadeira liderança é meramente uma manifestação de associações voluntárias. E em um contexto anarquista, as pessoas podem tomar decisões conscientes de “seguir” ou apoiar uma certa pssoa por razões particulares. Inversamente, o “líder” também escolhe conscientemente assumir ou não responsabilidade perante esses apoiadores. Cada lado da relação é soberana e pode escolher se retirar da situação subitamente por qualquer razão. Esse é o tipo de liderança assumida por Marcos. Os zapatistas proclamam que eles “comandam obedecendo”.

Tais relações recíprocas entre cocriadores de comunidades (incluindo dentro de hierarquias voluntárias como o EZLN) são um reflexo da cultura e da cosmovisão espiritual maias. Essa correspondência de necessidades políticas e valores religiosos também explica por que a Terra é tão importante desde uma perspectiva indígenas. “Tierra y Libertad!”, era o slogan do movimento Zapatista original, e continua a ser um valor nuclear dos neo-zapatistas. Para os povos indígenas, no México e em todo o mundo, a Terra é mais do que uma necessidade prática. Ela é não apenas a fonte da própria sustentação material, mas também a fonte da conexão espiritual com o universo como um todo. A autossuficiência de utilizar os recursos naturais em harmonia com o ecossistema como um todo faz parte do processo de realização do destino da humanidade. Neste sentido, ser indígena, ou nativo a um pedaço de terra em particular, possui uma dimensão de significados com sua própria relação com a Terra, e ressalta a importância da autodeterminação local.

As pessoas contribuem para a natureza simbiótica do ambiente, desempenhando papéis únicos e cruciais em bio-regiões microcósmicas. Como Neyra P. Alvarado Solis explica em Terra e Cosmovisão Indígena:

“No México, hoje, há oficialmente cinquenta e seis grupos étnicos − dentre esses, é possível encontrar uma variedade linguística e cultural que excede em muito a esse número. A cosmovisão de cada grupo expressa uma realidade regional e comunal, elaborada ao longo da história. Essas são culturas agrárias onde terra é vida, sustentadas por relações com forças sobrenaturais e nutridas por ritos comunais e familiares […]” [11].

A diversidade étnica, linguística e cultural estão intrinsecamente conectada à diversidade biológica e natural. Há valor na preservação de cada forma de vida, mas há também valor no sincretismo e na difusão, que são aspectos igualmente naturais da existência. Apesar do fato de que os povos habitam diferentes áreas geográficas com diferentes flora, fauna, topografia e sistemas aquáticos, todos possuem a mesma relação interdependente com a Terra, da qual todos necessitam para sobreviver.

Consistentemente com o símbolo religioso e com o mito maia, os zapatistas utilizam metáforas agrárias para descrever sua visão da condução política. Em seu discurso final ao Fórum Nacional Indígena, em 9 de janeiro de 1996, Marcos diz:

“Irmãos e irmãs:

Cada um possui seu o próprio campo, seu próprio plantio, mas todos temos a mesma aldeia − ainda que algumas vezes falemos línguas diferentes e trajemos roupas diferentes. Convidamos a cada um de vocês a plantar sua própria horta, ao seu próprio modo. Os convidamos a fazer desse fórum um bom arado e a garantir que todos tenham sementes e que a terra esteja bem preparada” [12].

Essas palavras ilustram a relação cooperativa entre diversas localidades específicas e a realidade geral da Terra que partilhada. Tal relação não consiste em uma homogeneidade ou em um universalismo, mas numa complementariedade, no sentido de que as formas infinitas de matéria no universo cocriam nossa experiência: a identidade zapatista se estende externamente em direção ao macrocosmo − sua organização de encontros “intergaláticos” de ativistas reflete este caráter.

Para o Movimento Zapatista de hoje, como no do século XIX, a nacionalidade é um conceito flexível e multifacetado. A sua própria identificação com a nação do México não implica sua identificação como indígena, maia, chiapaneca, tzotzil, mulher, idoso, e daí por diante, até os níveis mais microcósmicos. Em verdade, essas múltiplas nações são compreendidas como que constituindo a essência de um mundo autônomo. E é nesta perspectiva que os direitos de autodeterminação étnica e de preservação cultural são defendidos. Todos são bem vindos, mas os caracoles [13] não possuem política de portas abertas. Visitantes devem aquiescer a processos de formulários ou ter conexões existentes com pessoas ou grupos com “passaportes zapatistas” [14]. Essa é uma necessidade óbvia de segurança − o EZLN e a Outra Campanha são agressivamente atacados pelo governo e pelas forças armadas do México.

Segundo Marcos, os zapatistas acreditam que “o México deve reconstruir o conceito de nação” [15]. E apesar do caráter predominantemente indígena do Movimento Zapatista, e a despeito da oposição do EZLN ao Estado mexicano, a identidade nacional dos zapatistas como mexicanos é sustentada: algo que é criticado por muitos radicais. Por que os zapatistas hasteiam a bandeira mexicana acima da vermelha e negra? Por que eles empregam argumentos constitucionais? Por que eles se predispõem a dialogar com o governo? Por que eles fazem comentários nacional-chauvinistas como este: “de modo algum o Sexto Comitê do EZLN aceitará quaisquer pessoas em sua equipe de segurança que sejam de qualquer outra nacionalidade além de mexicana” [16]? A resposta é a seguinte: porque, novamente, a concepção zapatista de nacionalidade é fluida. Ela é maleável nas mãos de cada pessoa. Promover uma diversidade de táticas na luta contra a opressão onipresente é não apenas pragmático, como também indica que a recusa em se limitar à cismas ideológicos garante o futuro de um movimento de liberação autônomo e descentralizado.

Apesar de algumas críticas anarquistas e socialistas irrelevantes [17], os zapatistas têm tido grande apelo por causa de seu próprio rechaço a caixas ideológicas. Estudiosos tem ressaltado essa qualidade [18], mas o próprio Marcos captura a dinâmica da melhor forma, admitindo sua culpa a uma série de acusações, feitas de todos os ângulos possíveis. É válido citar:

“Os brancos o acusam de ser escuro. Culpado.

Os escuros o acusam de ser branco. Culpado.

Os autênticos o acusam de ser indígena. Culpado.

Os indígenas o acusam de ser mestiço. Culpado.

Os machistas o acusam de ser feminista. Culpado.

As feministas o acusam de ser machista. Culpado.

Os comunistas o acusam de ser anarquista. Culpado.

Os anarquistas o acusam de ser ortodoxo. Culpado.

Os anglos o acusam de ser chicano. Culpado.

Os antissemitas o acusam de ser filossemita. Culpado.

Os judeus o acusam de ser pró-árabe. Culpado.

Os europeus o acusam de ser asiático. Culpado.

Os funcionários do governo o acusam de ser um oposicionista. Culpado.

Os reformistas o acusam de ser um extremista. Culpado.

Os radicais o acusam de ser reformista. Culpado.

A ‘vanguarda histórica’ o acusa de apelar à sociedade civil, e não ao proletariado. Culpado.

A sociedade civil o acusa de perturbar sua tranquilidade. Culpado.

A Bolsa de Valores o acusa de arruinar seu café-da-manhã. Culpado.

O governo o acusa de aumentar o consumo de anti-ácidos por agências do governo. Culpado.

Os sérios o acusam de ser um piadista. Culpado.

Os adultos o acusam de ser uma criança. Culpado.

As crianças o acusam de ser um adulto. Culpado.

Os esquerdistas ortodoxos o acusam por não condenar homossexuais e lésbicas. Culpado.

Os teóricos o acusam de ser um prático. Culpado.

Os práticos o acusam de ser um teórico. Culpado.

Todos o acusam de tudo de ruim que já aconteceu. Culpado” [19].

Esse sentimento expressa uma transcendência de dogmas que é necessária para os tempos modernos. Também comunica um tipo de leveza que beneficiaria o milieu político radical: essas acusações, por mais “verdadeiras” que possam ser, não podem ser levadas a sério. Quando aqueles que acreditam na liberdade e na autonomia deixarem de discutir umas com as outras, sobrará tempo para, efetivamente, realizar coisas importantes em suas comunidades. É importante estar consciente de como nos comunicamos e interagimos, porque a dinâmica entre os ativistas e as diversas tribos diversas prenuncia o futuro sem o Estado. Isso não significa que todos têm de concordar. A visão zapatista encoraja uma amplitude infinita de autonomias diferentes. A ideia é criar “um mundo em que caibam muitos mundos” [20].

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[1] Churchill, Ward. Upping the Anti, No. 1.

[2] Mattiace, Shannan L. Mayan Utopias: Rethinking the State, p. 188.

[3] Higgins, Nicholas. The Zapatista Uprising and the Poetics of Cultural Resistance.

[4] Weinberg, Bill. Homage to Chiapas, 197.

[5] Subcomandante Marcos. Interview with Medea Benjamin, p. 61.

[6] Subcomandante Marcos. A Storm and a Prophecy: Chiapas: The Southeast in Two Winds, 33. Aubry, Andres. “Autonomy in the San Andres Accords: Expression and Fulfillment of a New Federal Pact,” 225.

[7] À meia-noite do Ano Novo, o EZLN emitiu sua Primeira Declaração desde a selva de Lacandona, em que expressaram os motivos para declarar a guerra ao Estado mexicano. O EZLN apreendeu vários territórios de Chiapas, destruindo estruturas militares e libertando prisioneiros em San Cristóbal de las Casas. Muitos livros e artigos detalharam esses eventos, e comunicados zapatistas foram emitidos consistentemente a respeito. A Primeira Declaração da selva de Lacandona é um bom ponto de partida.

[8] EZLN. Sixth Declaration of the Lacandon Jungle.

[9] Marcos nunca apareceu em público sem usar sua máscara. Ele explicou que a máscara é como um espelho. Todos as pessoas podem olhar para seu rosto e se enxergarem.

[10] O EZLN é o braço militar do Movimento Zapatista. O Outra Campanha, criada em 2006, é um projeto estritamente civil que visa possibilitar à autonomia para diferentes grupos .

[11] Alvarado Solis, Neyra P. Land and Indigenous Cosmovision, 127-8.

[12] Subcomandante Marcos. Closing Words to the National Indigenous Forum (1996), p. 93.

[13] Caracol, a palavra em espanhol para [o inglês] shell, é um termo adotado pelos zapatistas para se re ferir a suas comunidades autônomas.

[14] Aubry, Andres. Autonomy in the San Andres Accords: Expression and Fulfillment of a New Federal Pact, p. 229.

[15] Subcomandante Marcos. La entrevista insólita. Proceso.

[16] Subcomandante Marcos. Subdelegado Zero on Security Issues.

[17] The EZLN is not Anarchist: Or Struggles at the Margins and Revolutionary Solidarity. Willful Disobedience.

[18] Churchill, Ward. A North American Indigenist View, p. 154.

[19] Subcomandante Marcos. The Retreat is Making Us Almost Scratch the Sky, p. 231.

[20] EZLN. Fourth Declaration of the Lacandon Jungle.

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Jamie O'Hara e Craig Fitzgerald
Artigos: 53

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