Star Wars: Os Últimos Jedi e a dualidade cósmica:

O novo episódio de Guerra nas Estrelas joga com a expectativa criada de que seria um remake d’O Império contra-ataca, de modo similar que O Despertar da Força emula Uma Nova Esperança. As situações estão todas lá, construídas perfeitamente para que os mesmos jargões sejam usados de forma segura e nostálgica. No entanto, os temas subjacentes sofrem mudanças importantes, e a solução do conflito tende sempre à surpresa.

E são todas ótimas surpresas, que revigoram a mitologia da saga ao mesmo tempo que permitem a expansão de seu universo. Os avisos de Luke para Rey, “Isso não vai se passar do modo que você imagina” e “O que você acha que eu faria, pegaria uma espada laser e sairia pela galáxia para dizimar a Primeira Ordem?”, são emblemas que permitem ao roteirista Rian C. Johnson navegar por mares conhecidos através de correntes pouco aproveitadas.

Assim com em O Império contra-ataca, dois arcos principais se desenvolvem simultaneamente até que confluem no terceiro ato. No primeiro deles, espera-se uma reedição do treinamento em Dagobah. Rey é enviada pela Resistência e apresenta a Luke as credenciais de ter sido recomendada por Leia.

Assim como Yoda, Luke se mostra relutante em relação a nova discípula, mas por motivos bem diferentes. O mestre sabe que o conflito entre os jedi e os sith cega para uma harmonia maior, que, ao ser ignorada, reproduz o embate em escala ampliada. Desse modo, sua decisão é se isolar na ilha mais sagrada da Ordem até encontrar a paz necessária para que possa morrer, levando consigo todo o legado do qual se tornaria o último representante. Skywalker concede três lições a Rey, buscando fazer com que a moça compreenda a necessidade do fim dos Jedi. Por trás de todos os vínculos se esconde esse poder, essa força, que também está presente em todos os seres. Luke demonstra a vaidade que está por trás da crença de que a “luz se extinguiria sem os Jedi”.

Não que o nosso herói se livre da tentação do apego à realidade em que cresceu. Ele hesita quando se trata de destruir a árvore sagrada da Ordem, que marca seu centro cósmico e esconde seus textos originais. Luke não sabe se a hora realmente chegou. Sua indecisão é rompida pela presença mágica de Yoda, que coloca fim à materialidade da história Jedi e dá uma lição no antigo discípulo: não há nada nos livros destruídos que Rey já não soubesse, e não cabe a esse ou aquele mestre estabelecer a hora do término do conflito entre luz e sombras. O que cabe ao mestre é transmitir o que aprendeu, incluindo o poder que se esconde por trás de seus fracassos.

Rey, por sua vez, continua em sua jornada marcada pela carência de raízes. Ela projeta a figura paterna em Skywalker, do mesmo modo que projetara em Han Solo. Sua ânsia pelo fim da rejeição a leva diretamente para o confronto contra o lado obscuro, e ela vê seus múltiplos e aparentemente infindáveis reflexos, que representam camadas de seu ser, em uma sucessão desesperadora que, quando enfrentada, a conduz mais uma vez a si mesma e à sua própria solidão. Essa solidão, por sua vez, a abre para a influência de Ben Solo.

O líder dos cavaleiros de Ren também enfrenta o mesmo tema da libertação de qualquer dualidade, que nele toma a forma de ruptura com o passado. O novo deve suplantar o contexto e as estruturas já estabelecidas. Luz, sombras, Jedi, Sith, pais, mestres, rebeldes, Império pertenceriam ao passado da saga. O futuro está em seu vínculo com Rey, cuja carência pretende suprir ao revelar à menina aquilo que ela já desconfiava: ela não é “ninguém”, não pertence a nenhuma linhagem nobre que lhe dê direito de tomar parte significativa na história dos Skywalker. Seu papel seria dependente de sua relação com o filho de Han e Leia.

É principalmente em Kylo Ren que o episódio demonstra sua capacidade de responder satisfatoriamente as críticas que foram feitas ao primeiro filme da nova trilogia, transformando-as em armas a seu favor. Rian Johnson coloca na boca de Snoke o sentimento que boa parte dos fãs e críticos tiveram em relação a esse personagem, que venera o avô e tenta imitá-lo usando um capacete algo patético. Lembrando também o inconformismo de nerds que julgaram inacreditável que um discípulo Sith pudesse perder um duelo pra alguém que nunca havia empunhado um sabre de luz, Snoke cutuca Kylo, questionando se ele é filho de Han ou neto de Vader, e zombando do fato dele ter ficado tão abalado com o parricídio que não conseguiu suplantar uma menina inexperiente. A pergunta e zombaria ainda ressoa: “Você é o novo Darth Vader ou só uma criança numa máscara?”.

Esse é o momento de virada de Ben Solo, e embora seu conflito continue ao longo do filme, como demonstra sua hesitação em disparar contra a própria mãe em um momento agudo da narrativa, temos aí o pontapé inicial que, por meio de sua ligação com Rey, vai conduzi-lo ao rompimento com o passado, que pretende matar em sua busca por poder. Também aqui o diretor e roteirista subverte as expectativas ao revelar que o grande vilão não é Snoke, mas o filho de Leia. Snoke se encontra ainda no nível de dualidade luz/sombras que havia sido questionado por Luke: ele percebe que Rey tem o ”verdadeiro espírito de um Jedi”, e por isso, em conformidade com a mentalidade Sith, tem de ser morta. Johnson leva mais uma vez a saga a singrar mares conhecidos, mas por correntes ainda não exploradas: a mesma atração e ambiguidade nas relações entre Leia, Luke e Han são reafirmadas aqui por meio da tensão sexual entre Rey e Kylo, por um lado, e pela lealdade da sucateira com Finn e sua descoberta de Poe Dameron.

E é no mais habilidoso piloto da Resistência, que se assume de vez como rebelião – nome que havia sido deixado de lado no episódio VII, despertando críticas dos olhares puristas –, que se concentra o segundo arco principal do filme. Nesse ponto, a narrativa se inicia com a representação de um heroísmo ao mesmo tempo belo e inócuo: Dameron prefere arriscar toda a frota de bombardeios do movimento para derrubar um encouraçado da Primeira Ordem. Uma oriental, figura do kamikaze, morre, junto de outros, para cumprir a ordem temerária. O sucesso da empreitada é desprezado por Leia, quando ela rebaixa Dameron de posto explicando que suas ações haviam gerado “heróis mortos, mas nenhum líder”.

Essas cenas dão início a uma contínua e implacável perseguição dos rebeldes pela Primeira Ordem, que descobre um meio de rastreá-los pelo hiper-espaço. A busca desesperada por escapar da aniquilação contextualiza o crescimento de Poe, de um impetuoso e inconsequente guerreiro a um líder capaz de unir sua coragem à estratégia. Esse parto não é simples, e envolve reviravoltas e algumas perdas que só não tornam o clima do filme mais pesado por conta de uma habilidosa quebra de tensão. Mas ainda aqui há momentos tão deslumbrantes quanto o dos melhores filmes de guerra, e que recuperam a relevância do espírito kamikaze, agora em um nível superior. A Comandante Holdo toma uma decisão que leva a um dos momentos mais brilhantes de toda a saga, e que deixou sem fôlego as salas de cinema. Foi nesse momento também que Poe Dameron se tornou algo mais do que um “piloto encrenqueiro”.

O tema da perseguição da Resistência dá azo a um arco secundário, protagonizado por Finn e uma nova personagem, Rose, adequada à captura das audiências orientais. Trata-se da ponta mais fraca do filme, aquela que lembra de modo mais direto a segunda trilogia, marcada pela presença de crianças, CGI e telas verdes, além de um clima algo lúdico – embora a sensação de ameaça e perigo da narrativa principal nunca seja abandonada.

No entanto, ainda aqui se percebe a evolução de um dos melhores e mais carismáticos personagens dos novos filmes. Finn e Rose partem para um planeta em que uma elite refinada curte a vida em meio a divertimentos que vão do jogo a corridas de animais exóticos. Eles procuram um mestre decodificador em um cassino, que seja capaz de adentrar a nave principal da Primeira Ordem e desabilitar o rastreador que permite a perseguição dos rebeldes pelo hiper-espaço. É um plano elaborado em conjunto com Poe Dameron pelas costas de Leia e da Comandante Holdo.

No filme anterior, Finn é um desertor que deseja fugir dos problemas da Galáxia, cético em relação a qualquer alternativa que não seja a da própria proteção. Esse caráter algo frágil e covarde dá sinais de reformulação por sua lealdade e amor a Rey, que o leva ao sacrifício, embora pelos mesmos meios falsos que usava para se distanciar do centro dos combates. É ainda nesse estado que o flagramos em Os últimos Jedi. O personagem percorre uma via que vai mergulhá-lo em um heroísmo e idealismo ingênuo que o torna capaz de sacrifícios por ideais e pela coletividade, e tira de sua boca um discurso marcado por um dos fios condutores da narrativa: a alimentação da fagulha da esperança em meio situações e tempestades caóticas e desesperadoras. O desertor se transforma ele próprio em um Kamikaze.

Nessa jornada, Finn também se confronta com uma dualidade, muito mais externa e superficial que a de Rey e Ben Solo, mais afins à Força – porém completamente adequada à crítica social e política que se avança nesse ramo da narrativa. Finn se apaixona pelo cassino num primeiro instante, só pra ser despertado por Rose sobre a realidade opressiva, que envolve saque, escravidão infantil etc. daquela elite que se locupleta com o comércio de armas em meio a conflitos. Ninguém fica tão rico daquele jeito de modo ”honesto”. A diversão, o lazer, escondem o lado político-social mais obscuro da estrutura da Galáxia. Finn é tentado na história a abandonar os extremos, afinal tudo não passa de um sistema em que a elite lucra com ambos os lados. Se posicionar a favor de um deles é se tornar escravo. Mas o ex-stormtrooper não se seixa levar por esse raciocínio que lhe é apresentado por um mercenário.

Esses arcos convergem no magnífico terceiro ato, um dos melhores já construídos em Guerra nas Estrelas, perfeito em todos os aspectos e capaz de emocionar os mais duros fãs da saga.”

Se deixarmos de lado os terceiros atos do Guerra nas Estrelas original [mais tarde rebatizado de Episódio IV – Uma Nova Esperança] e O Império contra-ataca, o novo filme nos proporciona o melhor terço final de toda a franquia.

Ela se inicia com uma cena icônica, quando a Comandante Holdo se sacrifica para salvar os transportes que carregavam o que havia restado da Resistência para uma base abandonada, onde formariam a última trincheira contra a perseguição das naves da Primeira Ordem. O sacrifício de Holdo é usado para marcar a divisão clássica entre os lados de Guerra nas Estrelas: de um lado Kylo Ren, do outro Rey. De um lado o par Rose e Finn, do outro a capitã stormtrooper Phasma.

Os pouco mais de cem sobreviventes são encurralados, sua única proteção é um imenso portão de metal que logo será destruído por uma aríate cuja tecnologia emula uma pequena estrela da morte. Todo a culminância do filme foi gravada no Deserto de Sal boliviano, incrementando a beleza cenográfica e da fotografia do filme. Estamos diante da mais bela meia hora que a saga foi capaz de levar ao cinema.

Quando toda esperança se perde, inclusive para Leia, surge Luke, ele mesmo, que havia prometido a Rey não deixar a ilha sagrada dos Jedi até encontrar a própria morte. Em um possível erro de continuidade, que mais tarde sabemos ser um recurso da direção, ele parece remoçado. Sua barba está aparada e menos grisalha, como se tivesse voltado vinte anos no tempo. Depois de diálogos emocionante, mas que não caem no sentimentalismo, com Chewie, C3PO e Leia, Luke parte para enfrentar sozinho todo o Exército da Primeira Ordem que se acumula na porta derrubada da base. As cenas são de uma estética deslumbrante, cada tomada é um pôster, um convite ao embevecimento. Cada detalhe de câmera é capaz de provocar arrepio. Rian Johnson trata com a devida reverência o momento mágico que todos os fãs esperaram, com precisão que faz lembrar os melhores momentos de Zack Snyder.

Ressalto mais uma vez a ambiência do Salar de Uyuni, local em que o chão de sal reflete o céu de modo que não sabemos mais qual é um e onde começa o outro. O horizonte os divide ao mesmo tempo que os une, criando um momento de pura magia. Enquanto Luke enfrenta sozinho a Primeira Ordem, Poe Dameron demonstra seu amadurecimento e percebe que o Mestre Jedi está apenas dando tempo para que os acuados rebeldes fujam. Ele conduz seus companheiros até encontrar uma saída para a base/caverna, no sopé da montanha. Não seria capaz de passar pelo amontoado de pedras que tapa a passagem, porém, se Rey não estivesse do outro lado, pronta para realizar a levitação das rochas, cena simbólica de sua iniciação, ainda mais significativa quando se dá sob o pano de fundo do diálogo que Luke tem com Kylo Ren.

O diálogo ocorre porque o Exército fracassa de modo retumbante contra Luke. O terror tecnológico nada pode contra o maior dos Jedi, levando ao embate direto, de sabre de luz à mão, com o antigo discípulo. Eis aí o acontecimento que dez entre dez fãs desejavam ver. E mais uma vez aqui, Rian Johnson subverte expectativas, seguindo novos caminhos que revitalizam a mitologia da saga. Pessoalmente, pensei que não ia aguentar quando Luke, após perceber que a Resistência estava a salvo, baixa o sabre de luz, emulando Obi Wan diante de Vader no episódio IV. Quem suportaria ver Kylo matar outro dos personagens mais importantes de nossa infância?

O filme inteiro nos mostra um Luke que percebeu, por meio de suas próprias falhas, que os métodos Jedi eram limitados e conduziam, no fim das contas, ao fracasso. Se a Força se trata de unidade, equilíbrio, o conflito ensejado pela divisão entre a luz e a sombra constitui barreira para a consecução final. Todo o sistema Jedi de treinamento, de modelação de Padawan, toda a doutrina contida nos livros e inclusive os templos sagrados, eram agora caminhos que deveriam ser superados.

Mas o fim de Luke não é o fim dos Jedi, como ele mesmo reconhece, desfazendo o engano que possuía antes do aparecimento de Yoda na Ilha. As possibilidades da saga estão abertas de um modo que ninguém esperava. A frase inesquecível de Skywalker em resposta a Ben Solo, demonstrando todo o seu domínio da situação, sintetiza a inversão das expectativas, o colapso das especulações sobre esse filme, e a coragem dos produtores.

Nessas cenas finais, os fãs da saga são levados ao êxtase com a contemplação do poder de Luke. Depois ao riso, com a zombaria que faz diante de Kylo. E finalmente às lágrimas quando o personagem, sentado na pedra mais sagrada do montanha mais sagrada da Ordem, contempla mais uma vez o duplo sol se pondo, remetendo o espectador a um dos mais poderosos símbolos utilizados por Guerra nas Estrelas no filme original.

O horizonte de unidade total em que Luke mergulha continua originando todas as dualidades que mantém o ciclo de Guerra nas Estrelas em movimento. O combate entre luz e sombras, entre totalitarismo e liberdade. As rupturas prometidas são entregues, de modo que não podemos mais ter volta, mas as continuidades são afirmadas também. O sabre de luz dos Skywalker está partido, conforme nota uma confusa Rey. Mas Leia lhe responde que isso não importa, porque eles tinham ali tudo o que precisavam.

E a mensagem mais fundamental de Luke é a de que a Força, esse poder que mantém o cosmos unido, não pode se restringir a esta ou aquela família, a esta ou aquela linhagem. Ela se manifestou em uma escrava, gerando Anakim. Voltou a se manifestar com Rey, uma simples “catadora de lixo” – atividade mais baixa possível na ordem social –, quando surgia Ben Solo do sangue dos Skywalker. Para cada ponto de luz, uma escuridão de igual teor, e em meio de tudo, a origem de todo o equilíbrio. Luz que surge no mais alto ou do mais baixo. E que volta a se manifestar em um escravo lixeiro na cena que fecha o filme.

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André Luiz dos Reis

 

 

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