Distributismo no lugar do neoliberalismo

(Nota: o presente artigo é de autoria de um casal católico que atua com movimentos populares de matriz distributista nos EUA. Ele expõe as diretrizes básicas do pensamento distributista, recorrendo a fontes primárias para tal, e demonstrando o caráter profundamente anticapitalista do mesmo. Trata-se de um artigo altamente didático, cujas afirmações, em geral — com algumas exceções –, são endossadas por nós.)

Dorothy Day e G. K. Chesterton foram contemporâneos. Ambos se converteram ao catolicismo nos anos 20, Chesterton em 1922, na idade de 48, e Dorothy cinco anos mais tarde, com a idade de 30. Ambos passaram por anos de leitura, estudo, orações e conversações sobre a fé antes darem este passo. O entendimento de Dorothy sobre o catolicismo, bem como suas implicações sobre a fé prática no mundo, foi significativamente aprofundado por seus encontros com Peter Maurin, com quem fundou o movimento Trabalhador Católico.

Não se pode discutir Chesterton, nem tampouco Dorothy ou Peter e suas ideias, sem levar em conta que o catolicismo de todos eles era o centro de suas existências. Mais do que descobrir novas verdades católicas, como alguns disseram ter feito após o Segundo Concílio do Vaticano, eles se limitaram a explorar as verdades da tradição (o que os faz ainda mais interessantes).

Um dos primeiros Ensayos Fáciles que Peter Maurin apresentou a Dorothy, quando ambos se conheceram e fundaram o movimento Trabalhador Católico, recebia o nome de Explotando la dinamita de la Iglesia. Sobre uma temática semelhante, Chesterton afirmou: “Já não tenho mais qualquer perspectiva para propor um novo ideal. Não há nenhum ideal novo, imaginável pela loucura dos sofistas modernos, que seja tão chamativo quanto a tarefa de realizar qualquer um dos antigos”. Como Chesterton afirmou: “No mundo moderno, somos confrontados principalmente pelo extraordinário espetáculo de pessoas se voltando aos novos ideais porque não tinham chegado a experimentar os antigos”.

Um dos Ensayos Fáciles de Peter enunciava a frase de Chesterton, extraída de seu livro What’s Wrong with the World (O que há de errado com o mundo), e que dizia: “Os homens não se cansaram do cristianismo, eles nunca chegaram a encontrar cristianismo o bastante para se cansarem dele”. Nem todos, porém, que recorrem a essa citação se recordam do que vem após ela: “Os homens nunca se cansaram da justiça política, eles se cansaram de esperar por ela”.

Ambos, Chesterton e o Trabalhador Católico, vislumbraram o status quo moderno – atado ao monopólio capitalista – como uma religião, com doutrinas delimitadas, que exigia obediência absoluta de todos os seus membros. Chesterton (juntamente com Hilaire Belloc) falou do “estado de servidão”, e Dorothy se referia frequentemente à ironia de tantas pessoas outorgarem obediência incondicional ao que ela chamava, ironicamente, de “Santa Madre Estado” – enquanto criticava as ideias das lideranças das Santa Mãe Igreja.

Ao buscarem soluções para confrontar os problemas do capitalismo, do socialismo, do industrialismo e do estatismo, Dorothy e Peter se inspiraram em Chesterton e em outros distributistas ingleses. Dorothy frequentemente recomendava dois livros de Chesterton: The Outline of Sanity (Um esboço da sanidade) e  What’s Wrong with the World (O que há de errado com o mundo).

Ambos, Chesterton e o Trabalhador Católico, criticavam o monopólio capitalista, no qual alguns poucos ricos capitalistas eram donos do capital, enquanto que a maioria – as massas – trabalhava diariamente, a cada dia, em serviços penosos. Chesterton e o Trabalhador Católico insistiam que todos foram criados à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, ninguém deveria ser tratado como “peão” de uma maquinaria, obrigado a trabalhar 12 horas diárias em trabalhos forçados, e com salários de escravidão, ao passo que as grandes corporações e seus diretores tornavam-se escandalosamente ricos. No entanto, Chesterton, Maurin e Day sabiam que o socialismo não era a solução e frequentemente também o criticavam.

Distributismo:

A filosofia econômica de ambos, do Trabalhador Católico e de Chesterton, era o distributismo (por vezes também chamado de distributivismo), e o coração do distributismo é a propriedade privada. Distributismo é uma palavra que tem origem na ideia de que uma ordem social justa só pode ser alcançada através de uma distribuição ampla e difusa da propriedade. Distributismo significa uma sociedade de proprietários. Significa que a propriedade pertence à maioria, e não a alguns poucos. Está relacionado ao ideal subsidiário, enfatizado em todas as encíclicas papais relacionadas aos ensinamentos sociais e econômicos. Subsidiário, nas palavras do Quadragesimo Anno, significa que “passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los”.

Pode-se dizer, num primeiro momento, como frequentemente fazem os jovens visitantes do Trabalhador Católico, que a ênfase na propriedade privada é sinônimo de pró-capitalismo ou de uma defesa da ganância privada. Mas Dorothy e Chesterton não estavam falando da propriedade privada para poucos, mas da propriedade privada para todos.

Dorothy escreveu da seguinte forma: “A meta do distributismo é a propriedade familiar da terra, das oficinas, lojas, comércio, das profissões e de tudo mais. Propriedade familiar é um meio de produção que, uma vez que amplamente distribuído, se transforma no eixo da vida econômica da comunidade: esse é o desejo da distribuição e, também, o desejo do mundo” (El Trabajador Católico, 1948).

Em O que há de errado com o mundo, Chesterton afirmou que “a propriedade é nada mais que a arte da democracia”. Para ele, a propriedade significava que “todo homem deve ter algo a partir do qual possa dar forma a sua própria imagem – assim como ele é a forma da imagem do céu. No entanto, como ele não é Deus, mas apenas uma imagem gravada de Deus, sua autoexpressão deve circunscrever-se em torno de limites: a propriedade com limites, que são estritos e também pequenos”.

Ele ilustrava a diferença entre a ideia da propriedade privada do distributismo e a da empresa privada do capitalismo:

“Um batedor de carteiras é certamente um campeão da empresa privada, mas talvez seja um exagero dizer que ele é um campeão da propriedade privada. O capitalismo e o comercialismo se tratam, na melhor das hipóteses, de disfarçar o batedor de carteiras com algumas virtudes do pirata. O ponto sobre o comunismo é que ele reforma o batedor de carteiras abolindo os bolsos”.

Chesterton disse: “É correto repetir, distraidamente, ‘onde estamos chegando com todo esse bolchevismo’? É igualmente pertinente perguntar onde estamos chegando ainda que sem o bolchevismo? A resposta óbvia é: monopólio. Certamente não é a empresa privada”.

Sob a direção de Dorothy Day, o Trabalhador Católico criticou o capitalismo desenfreado, que concentra a maior parte do dinheiro e dos recursos nas mãos de umas poucas grandes corporações e indivíduos. Simultaneamente, Dorothy observou que aqueles a quem ela denominava de Barões Bandoleiros falavam contra o socialismo e defendiam a propriedade privada. Chesterton apontou a ironia deste quadro:

“Alguém pensaria, ao ouvir falar dos Rothschild e dos Rockefellers, que eles estavam do lado da propriedade. Mas, obviamente, ele são os inimigos da propriedade, pois são inimigos dos próprios limites. Eles não querem sua própria terra, mas a de outras pessoas. É uma negação da propriedade que o Duque de Sunderland seja dono de todas as fazendas em um estado – do mesmo modo que seria uma negação do matrimônio se ele possuísse todas as mulheres em um harém”.

Para esclarecer os seus leitores acerca de seu objeto de crítica, ele descreveu uma situação onde alguns poucos acumulam toda a riqueza, enquanto todos os demais labutam:

“Quando digo ‘capitalismo’, eu normalmente me refiro a algo que pode ser dito assim: ‘Aquela condição econômica onde há uma classe de capitalistas, reconhecível e relativamente pequena, em cuja mão está concentrada grande parte do capital, ao passo que uma grande maioria dos cidadãos necessita servir a estes capitalistas por um salário”.

Ele enfatizou que muitos tinham algo completamente diferente em mente quando falavam do capitalismo: “A palavra é usada por outras pessoas para indicar outras coisas. Algumas pessoas parecem querer dizer meramente propriedade privada. Outros supõem que capitalismo deve significar tudo que é relacionado ao uso do capital”.

“Se capitalismo significa propriedade privada, eu sou um capitalista. Se capitalismo significa capital, todo mundo é capitalista. Mas se capitalismo significa esta condição particular do capital, em que as massas são pagas apenas com salários, então ele significa algo diferente e deve representar outra coisa. A verdade é que o que chamamos de capitalismo deveria ser chamado de proletarianismo. O ponto não é que algumas pessoas tenham capital, mas que a maioria das pessoas tenha apenas salários – porque não têm capital”.

Quando Chesterton escreveu sobre as enormes discrepâncias entre os rendimentos e a riqueza dos que têm e dos que não têm, parecia que ele estava falando do mundo de hoje: “Ninguém, além de Satanás ou Belzebu, poderia aprovar o atual estado da riqueza e da pobreza” [1].

Distributismo, Fazendas e Cooperativas:

Em Um esboço da sanidade, Chesterton conclamou que voluntários heroicos tomassem a frente das pequenas fazendas, ainda isso representasse alguma espécie de sacrifício. O Trabalhador Católico recomendou o estabelecimento de fazendas e, na realidade, chegaram a iniciar tal empreitada. A experiência das famílias nas fazendas foi bastante difícil, devido ao pouco conhecimento da agricultura e à falta de dinheiro e de equipamento. No entanto, foi uma tentativa importante de vivenciar os princípios do distributismo.

Em sua autobiografia, La larga soledad, Dorothy afirmou: “Cada fala de Peter sobre a ordem social conduzia à Terra. Ele falava sempre como um camponês, um camponês prático. Ele conheceu os anseios do coração humano por um bocado de terra, por uma casa própria, mas também sabia que era impossível obter tais coisas a não ser por meio da comunidade”. Por isso Peter prescreveu comunidades de fazendas, uniões de crédito e cooperativas.

Chesterton também incentivava métodos comunitários. Assim como Peter Maurin, ele descrevia os monastérios como exemplos do comunitarismo cristão. Em seu livro Um esboço da sanidade, ele – como Peter – advoga algo semelhante às guildas da Idade Média: “Deveríamos dar boas-vindas à oportunidade de permitir que às guildas ou, os grupos de trabalho, tenham seu lugar proporcional e apropriado no Estado: deveríamos estar sempre dispostos a demarcar alguma parte das terras como sendo terra comum”.

Quando Dorothy Day publicou La larga soledad, Peter já havia morrido. Ela explicou suas ideias em seu livro, sempre o reconhecendo como o teórico do movimento: “O plano de Peter era que os grupos prestassem ajuda mútua, uniões de crédito paroquiais, para iniciar o que ele chamava de universidades agrônomas, onde o trabalhador pudesse ser um acadêmico e o acadêmico um trabalhador. Ele queria que as pessoas ofertassem terra e dinheiro. Sempre falou em ofertar. Aqueles que têm terra e ferramentas devem ofertá-las. Aqueles que têm capital devem ofertá-lo. Aqueles que têm mão de obra devem dá-la. O amor é um intercâmbio de dádivas, disse Santo Inácio”.

A distribuição fundiária, atualmente, não é diferente do que era quando Dorothy e Peter escreveram sobre isso nos anos 30. De fato, grandes quantidades de terras, mais do que nunca, estão nas mãos de poucos. Grandes negócios agrícolas excluem as fazendas familiares. Historicamente, como se deu isso de tão poucos serem os donos de quase tudo?

Na Inglaterra (com seu posterior impacto nos EUA), a restauração do direito romano, a destruição dos monastérios e o cerco às terras comunais, privou a população comum do [acesso aos] recursos, o que aumentou drasticamente o número de pobres.

Chesterton contestou aqueles que insistiam que o “progresso” prescindia do apoio ao capitalismo monopolista, com seu desenraizamento das pequenas propriedades e dos pequenos negócios, referindo-se à época da destruição dos monastérios por toda Inglaterra durante o reinado de Henrique VIII, quando os monastérios foram arrasados, as propriedades confiscadas pela Coroa e outorgadas aos poderosos nobres: “O súdito inglês comum havia sido enganado a respeito de suas antigas propriedades – tais como eram – em nome do progresso. Os destruidores das abadias tomaram seu pão e lhes deram pedra, assegurando que ela fosse uma pedra preciosa, a pedra branca dos “eleitos do Senhor”. Arrancaram seus costumes e sua vida rural originária e lhes prometeram uma Idade de Ouro, de Paz e Comércio, inaugurada no Palácio de Cristal”.

As casas de acolhimento do Trabalhador Católico são baseadas no ideal monástico, especificamente, no ideal beneditino das casas de hóspedes, as abadias – onde se davam as boas-vindas aos pobres, como o próprio Senhor disfarçado, e onde os necessitados podiam procurar abrigo. O Trabalhador Católico não acredita, como o calvinismo e seu derivado, o puritanismo, que os pobres não valem nada e que, portanto, merecem o que recebem, mas que os pobres são embaixadores do Senhor.

Após a destruição dos monastérios, os pobres da Inglaterra não tinham onde procurar ajuda. Havia tantos pobres na época do reinado de Elizabeth que, a princípio, a ideia era matá-los. Porém, eram tantos que isso pareceu impraticável e, posteriormente, a ideia foi a das casas de indigentes. 

J. Penty, cujo livro A Guildsman’s Interpretation of History era citado por Peter Maurin, reimprimiu um artigo do Museu Britânico que falava sobre como os monastérios ingleses eram casas de acolhimento e de como ajudavam, de tantas formas, os pobres dos arredores, não só com coisas como comida (quando necessitavam), mas também com sementes para plantio.

Nós acreditamos no ecumenismo, mas é importante reconhecer as realidades históricas que no transformaram no que somos. Neste tempo de exposição pública de pecados e de reparação de danos, poderíamos nos perguntar se o governo inglês, e a Igreja Anglicana, poderiam repararão a destruição e o roubo dos monastérios. Em tempo, isso foi feito, mas dentro da perspectiva do progresso. Chesterton descreveu o que aconteceu:

“Os ricos literalmente privaram os pobres, em suas peregrinações, da antiga casa de acolhimento e não tardaram a afirmar que essa era a peregrinação para o progresso. Eles, literalmente, forçaram-os às fábricas e à moderna escravidão salarial, assegurando-lhes, a todo o tempo, que esse era o único caminho para a riqueza e para a civilização. Da mesma forma que tomaram obsoleta a comida e a bebida dos conventos, afirmando que os caminhos do céu estavam pavimentados com ouro, agora tomaram a comida e a bebida das aldeias dizendo que as ruas de Londres estão pavimentadas com ouro. Ao entrar no tenebroso terreno do puritanismo, entrou-se também no tenebroso terreno do industrialismo, alegando que cada um de nós era a porta para o futuro. Porém, só se deslocou de prisão para prisão, até as mais obscuras prisões, pois o calvinismo abriu apenas uma pequena janela do céu. E agora é solicitado – com o mesmo tom educado e autoritário – que se entre em outro terreno sombrio, onde se devem entregar, à mãos desconhecidas, seus filhos, suas pequenas propriedades e todos os costumes de seus pais”.

Os críticos desdenhavam do distributismo, dizendo que se trava de um sonho de regressar ao passado – impraticável e impossível e ser implantado. Chesterton respondeu criticando seus críticos:

“Porque é uma das mais severas e, talvez, mais espantosas piadas o fato de que a mesma queixa que eles fazem contra nós é, especialmente e particularmente, uma queixa sobre eles. Eles afirmam sempre que pensamos que podemos recriar o passado ou a bárbara simplicidade da superstição do passado – aparentemente, sob a impressão que queremos regressar ao século XIX. Na verdade, porém, são eles que pensam que podem trazer de volta o século XIX. Eles sempre nos dizem que esta ou aquela tradição se foi para sempre, que este ofício ou crença se foi para sempre, mas não se atrevem a encarar o fato de que seu próprio tráfico, bem como o seu comércio vulgar, se foi para sempre. Chamam-nos de reacionários se falamos sobre reviver a fé, ou sobre o renascimento do catolicismo, mas seguem calmamente pegando seus papéis com o responsável pelo Renascimento do Comércio. Que sonido distante do passado! Que voz de tumba!”

A economia do século XIX, a que se referia Chesterton, era chamada de Liberalismo com “L” maiúsculo, ou Comércio com “C” maiúsculo, especialmente de Livre Comércio. Seus propositores prometeram que nos levariam à prosperidade e à Riqueza das Nações. Semelhante liberalismo econômico nos levou, de fato, à prosperidade e à riqueza (só que para poucos), como à implantação do colonialismo, que escravizou os trabalhadores por todo o mundo. Hoje em dia, o Renascimento do Comércio (trazendo o passado do século XIX), criticado por Chesterton, é uma realidade e sua base não se modificou. Enquanto renascimento, se chama neoliberalismo, ou novo liberalismo, em quase todo mundo. Aqui nos EUA, tem outros nomes: neoconservadorismo, livre comércio. Também renasceu o colonialismo, onde a massa dos povos ao redor do mundo trabalha em oficinas fatigantes (e onde o trabalho infantil abunda).

Em Um esboço da sanidade, ao pensar em um o caso para o distributismo, Chesterton argumentou: “Eles dizem que é utopia, e estão certos. Dizem que é idealista, e estão certos. Dizem que é Quixotesco, e estão corretos. Merece cada nome que possa apontar para a substituição total da justiça do mundo. Cada nome que meça o quão remota deles, e de sua alma, está o padrão honrado de viver.  Cada nome que enfatize, e repita, o fato de que a propriedade e a liberdade estão longe deles e dos seus, como um abismo entre o céu e o inferno”.

O distributismo pode ser um sonho. Três hectares e uma vaca podem parecer uma piada. As vacas podem ser animais imaginários. A liberdade pode ser só um nome. A empresa privada pode ser a caçada a um ganso selvagem na qual o mundo não pode embarcar. No entanto, à aqueles que falam como se a propriedade e a empresa privada fossem os princípios em voga atualmente: essa gente está tão cega e surda, morta para todas as realidades de sua própria existência cotidiana, que não fazem a menor diferença no debate.

Dorothy Day criticada:

Surpreende-nos quando alguém comenta que Dorothy era uma socialista e comunista, não acreditando que ela o era apenas em sua vida pré-conversão. Ao não compreender a economia recomendada pelo Trabalhador Católico e por Chesterton, chega-se a conclusão de que qualquer um que critique o monopólio capitalista é um comunista.

Essa é uma maneira fácil de se esquivar da crítica. Nós fomos chamados de comunistas pelos neoconservadores católicos porque criticamos o estado atual da economia mundial. Nós, como Dorothy, notamos que, no Pai Nosso, rezamos para que a vontade do Senhor se faça na terra e no céu – e cremos, com ela, que Deus não quis que as coisas fossem tão árduas para as gentes aqui na Terra. Em nossos abrigos do Trabalhador Católico, intituladas de Casa Juan Diego, conversamos diariamente com pessoas que foram desenraizadas pelo mercado global, forçadas a abandonarem casa e família para poderem trabalhar em um país longínquo para que suas famílias possam comer e viver e, talvez, para que possa conseguir um pequeno lar – o lar que Chesterton insistiu ser tão relevante para cada ser humano.

Dorothy explicou porque, talvez, outros católicos não entendiam os trabalhadores católicos quando estes criticavam o capitalismo e recomendavam o distributismo, e ainda os reportavam ao bispo: “Nós não estávamos tomando a posição da grande massa de católicos satisfeita com o que se passa neste mundo. Estavam muito dispostos a dar aos pobres, mas não se sentiam chamados a trabalhar pelas coisas desta vida, para estes que eles tanto tinham em consideração. Nossa insistência na propriedade do trabalhador, no direito à propriedade privada, na necessidade de desproletarizar o trabalhador, todos os pontos enfatizados nas encíclicas sociais dos Papas, fez com que muitos católicos pensassem que éramos comunistas disfarçados, lobos em pele de cordeiro”.

Dorothy continuou:

“O jornal do Vaticano recentemente nos preveniu sobre tomar o americanismo ou o comunismo como as únicas alternativas. É difícil, assim, entender o motivo que levou nossa postura crítica em relação ao capitalista ser objeto de semelhante protesto” [2].

Dorothy citou Orate Frates de Joseph T. Nolan, que, a respeito do T. C. [Trabalhador Católico], subscreveu os Papas em suas encíclicas: “Por muito tempo, a opinião frívola identificou o distributismo como algo medieval ou míope, como se quatro Papas contemporâneos estivessem de alguma forma falando sobre algo sem sentido quando afirmaram: a lei deve favorecer a difusão da propriedade (Leão XIII); a terra é a forma mais natural de propriedade (Leão XIII e Pio XII); a família é mais perfeita quando está enraizada em sua propriedade (Pio XII); a agricultura é a primeira e mais importante de todas as artes, e o lavrador do solo representa nada mais que a ordem natural das coisas ordenadas por Deus (Pio XII)” [3].

Os valores dos Evangelhos virados de cabeça para baixo:

Chesterton apresentou suas ideias econômicas contrariando à cultura, com repugnância às práticas vigentes. Como pudemos nos ir para tão longe deste ideal? O calvinismo tem muito a ver com isso. Chesterton atacou o calvinismo como a raiz econômica por detrás da criação da grande fenda entre a massa dos trabalhadores e aqueles que possuíam quase tudo.

Ambos, Chesterton e o Trabalhador Católico, viram a usura, o empréstimo de dinheiro a juros (que havia sido condenado pelos Profetas de Israel, pelos Pais da Igreja e, por muitos séculos, pela Igreja) como algo incorreto e fonte de muitas injustiças econômicas.

Peter Maurin, que frequentemente falou sobre viver coerentemente com a simplicidade dos Evangelhos, também falou de uma filosofia de trabalho. Ele recomendou esta filosofia aos casais jovens ligados ao Trabalhador Católico: “O homem deve ganhar sua vida com o suor de seu rosto, e um cavalheiro, falando francamente, é alguém que não vive do suor do rosto dos outros”. Peter estava falando contra a usura e a especulação com tais palavras.

Os distributistas enfatizaram, fazendo coro com a Igreja (desde seus primórdios até a Idade Média), que a ganância é um pecado capital. Eles não aceitaram os ensinamentos do calvinismo e de Adam Smith, que afirmava que a acumulação de riquezas – enquanto muitos não tinham nada – poderia ser uma meta cristã. Dorothy Day e Chesterton não acreditavam apenas que era possível encontrar pessoas que desafiassem o calvinismo em nossa cultura: ambos inspiravam as pessoas a basearem suas vidas em outro conjunto de valores. Chesterton notou que “poderia ser muito difícil para um pessoa moderna imaginar um mundo em que os homens não são admirados por, geralmente, serem gananciosos ou por esmagarem seus vizinhos”, mas assegurava que esses estranhos pedaços de um paraíso terrestre, todavia, ainda existem na terra.

O Cardeal George de Chicago, ao mencionar essa tradição, afirmou que todos nós, nos EUA, somos calvinistas, incluindo os católicos. De alguma forma, a ideia de que os eleitos são benditos pelo Senhor, e os não-eleitos são despossuídos do Reino, aqui e agora e depois, se tomou um elemento até mesmo de mentes seculares.

Recentemente, estávamos falando com um líder de um grupo de paróquias em Houston, que tinha nos pedido que para dirigir seu grupo de estudos sobre o ensinamento social católico. Antes de começar e reunião, conversamos com os líderes sobre a ênfase aos pobres. Diante da opção de comprar uma casa de 250 mil dólares ou uma de 1 milhão (se trata de uma paróquia rica!), por que o fiel católico não poderia ficar em sua casa de 250 mil e usar o resto do dinheiro para comprar casas (no plural) para os pobres em um bairro de baixa renda? Ou por que não poderiam outros fieis católicos comprarem um carro de 15 ou 20 mil dólares em vez de 30, 40 ou 50 mil dólares?

O líder se surpreendeu com pensamentos tão simplistas. Mark, você não entende! Você tem que entender que isso é uma virtude. Essa gente trabalhou e orou muito, e viveu corretamente toda sua vida. Eles têm o direito de gozar o fruto de seus trabalhos. Deus os premiou por sua fidelidade.

E aqueles que não têm a alternativa do 250 mil dólares – neste cenário, a clara presunção de que há algo errado com eles. Por que não têm eles as mesmas bênçãos? Que mal fizeram?

Esse pensamento calvinista, combinado com o de Adam Smith, é muito católico hoje em dia. O ensinamento de vários séculos a respeito do bem comum é ignorado, exceto para endossar o que se chama de superstição da “mão invisível do mercado”, e de como esta trará o bem para todos, alçando todos os navios. A partir da realidade dos países pobres, enquanto aqueles que aferem, com estatísticas, dizem que as economias estão melhorando por meio do neoliberalismo, por meio do comércio, as vidas dos pobres pioraram e, a cada dia, as decisões e os acordos internacionais mediados pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional e pela Organização Mundial do Comércio favorecem às grandes corporações transnacionais.

A mão invisível do mercado tem um punhal – isso seria uma ameaça ou um aviso?

Nosso Santo Padre, atualmente, vem condenando claramente o neoliberalismo (novo liberalismo) que se apoderou da economia mundial e do ensino de economia em todas nossas universidades, incluindo as universidades católicas. Sob o título de “Pecados Sociais que Clamam aos Céus”, João Paulo II disse: “Mais e mais, em muitos países da América, prevalece um sistema conhecido como neoliberalismo, baseado na concepção puramente econômica da pessoa humana. Esse sistema considera a utilidade e a lei do mercado como seus únicos parâmetros, em detrimento da dignidade e do devido respeito aos indivíduos e às pessoas. Por vezes, esse sistema se converteu em uma justificativa econômica para certas atitudes e comportamentos nas esferas sociais e políticas que nos conduzem ao abandono dos membros mais necessitados da sociedade. Em verdade, os pobres estão se tornando cada vez mais numerosos, vítimas de políticas específicas e de estruturas que são, frequentemente, injustas” [4].

Grupos como o Instituto Acton, um grupo católico/calvinista/libertário/capitalista, se defendem da condenação ao neoliberalismo dizendo que eles são os bons – que eles são por um bom capitalismo ao invés de um mal capitalismo, e que a condenação não é para eles. P. Robert Sirico, o líder do instituto, como Michael Novak e P. Richard Neuhaus, falam de como Deus é o criador, o capitalista também o é, e que Deus bendiz os esforços em prol da criação. Esses homens defendem a liberdade de criar riqueza sem padrões ou interferência do Estado ou de Deus –  eles promovem e ministram cursos a seminaristas, sacerdotes e ministros por todos os lados, ensinando que isso se trata da ética mais elevada.

Não nos atreveríamos a dizer que isso é uma blasfêmia, a menos que Dom Virgil Michel OSB, de Minnesota, já o tenha dito.

No dia de ontem, nesta conferência, George Marlin recontou como usou a edição das Obras Completas de G. K. Chesterton para o editorial do Ignatus Press, e da cooperação que obteve de Michael Novak neste trabalho, e de como ele continuará envolvido com “Mike”, junto com outros, no prosseguimento do projeto. Ele é, aparentemente, a pessoa que convidou Michael Novak a escrever a introdução de Um esboço da sanidade nesta edição, o livro que é o mais crítico de todos o que foram escritos sobre o capitalismo (de Novak e companhia). O que temos a dizer ao sabermos que Novak escreveu a introdução à Chesterton é que isto se trata do mesmo que pedir para Hugh Hefner, da Playboy,  escrever a introdução de um livro sobre a santidade do matrimônio.

Recomendações:

Quando alguém perguntava a Chesterton o que poderiam fazer com o objetivo de começar a transformação da economia no mundo, ele dizia: “Façam qualquer coisa, por menor que seja, que previa a liquidação do trabalho pelo capitalismo. Façam qualquer coisa que atrase esta liquidação. Salve uma loja em meio a cem lojas. Salve uma fazenda em meio a cem fazendas. Mantenha aberta uma porta dentre cem portas, pois enquanto estiver aberta uma porta, não estaremos aprisionados. Acabe não terá se reino enquanto Nabote tenha sua vinha. Hamã não ficará feliz em seu palácio enquanto Mordecai estiver sentado a porta. Centenas de narrativas da história humana estão aí para ensinar que tendências podem ser revertidas, e que um obstáculo pode ser o ponto decisivo da reviravolta. As areias do tempo estão resguardam surpresas escondidas que marcam a mudança da maré” (Um esboço da sanidade).

Chesterton estava munido recomendações específicas para a legislação, que ajudariam a criar uma sociedade de proprietários (ao invés de leis que criam monopólios). Algumas destas foram:

  • Impostos a contratos como formas de desmotivar a venda de pequenas propriedades para grandes proprietários, e fomento à quebra das grandes propriedades entre pequenos proprietários;

  • Estabelecimento de uma lei livre para os pobres, para que a pequena propriedade sempre possa ser defendida contra a grande (esta é uma crítica, por exemplo, à adoção, na Inglaterra do final da Idade Média, e logo depos, nos EUA, do direito romano sobre o conceito do estatuto de limitações, onde, quando uma propriedade era roubada, o dono teria que ir à Corte dentro de um curto período de tempo para tratar de restabelecer a propriedade, pagar advogados, etc.);

  • A proteção deliberada de certos empreendimentos em pequenas propriedades, caso necessário, por meio de tarifas e, ainda, por meio de tarifas locais;

  • Subsídios para o fomento de tais empreendimentos.

Notas de rodapé:

1. El perfil de la cordura.

2. William Miller, Dorothy Day: una Biografía (Harper and Row), 1982.

3. Trabajador Católico (Julio-Agosto 1948).

4. Ecclesia in America, No. 56, “Informe del Sínodo de América”.

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Mark e Louise Zwick

Diretores e fundadores do movimento Houston Catholic Worker, no Texas, uma unidade local do movimento Trabalhador Católico, fundado em Nova Iorque, por Dorothy Day e Peter Maurin, em 1933.

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