Stranger Things: entre o paraíso perdido e o horror cósmico

A embalagem de Stranger Things é uma ode maravilhosa aos anos 1980, e que dificilmente pode ser apreendida em sua inteireza por quem não cresceu naqueles anos.

Essa embalagem torna praticamente impossível para uma pessoa da minha geração não se encantar com a série. Embora Hollywood tenha investido muito no consumo daqueles que tem saudade daquela década [mais ou menos como fazia com a década de 1960 quando eu era criança], não via ainda ninguém recriar tão bem aqueles anos quanto os irmãos Duffer.

Mas esse envoltório é só uma externalidade, um adorno pra chamar atenção. A nostalgia que vem daí serve ao contraste que se quer criar aos olhos do telespectador, é um convite para ”olhar para além da cortina” da sala de estar: os idílicos anos 1980, associados à infância, vividos numa pacata cidade do interior, são a superfície de um mundo maior, uma fina teia que pode se romper a qualquer instante, revelando um universo ”de cabeça pra baixo”, tóxico, potência caótica, subterrânea, de semi-consciência, um pesadelo de horror em que demônios se alimentam de seres humanos.

Os capítulos se tornam um passeio algo tenebroso pelo tema da interconexão de camadas de uma realidade cósmica aterrorizante, de conspirações governamentais que misturam ciência e ocultismo na busca por um poder que não são capazes de definir. A vida cotidiana e ordinária é abalada por acontecimentos que ninguém quer ver, ou que preferem camuflar: crianças somem e são sacrificadas a deuses ctônicos, experimentos psíquicos de consequências temíveis são realizados sob a capa de confronto geopolíticos, rituais invocatórios permeiam as brincadeiras infantis [Dungeon and Dragons].

Da literatura de horror fantástico [Lovecraft], passando por temas gnósticos e cabalísticos [‘El’, a divindade feminina; os portais na floresta; o Abismo], folclore [o Halloween não vai ter abóboras esse ano], numerologia e simbologia esotérica, pitadas de Crowley, até a exploração de conluios ocultos que misturam política, ufologia e sacrifício humano, Stranger Things encontrou uma maneira ‘pop’ de abordar as questões mais pertinentes e difíceis em uma atmosfera ao mesmo iniciática e mitológica.

Os artefatos cinematográficos que recriam o ”paraíso perdido” usando os anos 1980 se articulam sobre um mosaico ininterrupto de referências que provocam mais arrepios que piado de coruja rompendo o silêncio da madrugada. Até os episódios mais bobos, como o de Kali se vingando dos abusadores de crianças, mostram que os irmãos Duffer não estão só gastando tempo escolhendo as músicas pra compor uma trilha sonora ideal pra agradar a geração que passou.

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André Luiz dos Reis

 

 

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