Enxergar a morte através do coronavírus, lutar contra ela e obter a vitória só é possível por meio da total aniquilação da impessoalidade pós-moderna representada pelo mundo liberal e o individualista.
Reconhecido como um dos maiores escritores russos de todos os tempos, Lev Tolstói é responsável por obras de grande peso na literatura ficcional, como Guerra e Paz (1869) e Anna Karenina (1877). Representante da ficção realista e cristão de visões consideravelmente excêntricas, Tolstói produziria muito ao longo de sua vida — entre histórias curtas, novelas, e ensaios filosóficos.
Entre essas pequenas obras — em tamanho, mas de pujança intelectual inigualável — encontra-se A Morte de Ivan Ilitch (1886): uma pequena novela que narra os últimos momentos de um juiz de Alta Corte, chamado Ivan Ilitch Golovin, cuja experiência de enfrentamento com a morte provoca grande aflição e duras reflexões até o derradeiro suspiro e partida deste mundo. Muitas análises foram feitas sobre a obra e sua importância filosófica, além da sua representatividade num momento de grande revolução interior para Tolstói, quando ele abraça definitivamente sua conversão ao cristianismo e faz duras críticas à alta sociedade russa, seus vícios burgueses e sua falta de espiritualidade.
Posto isso, uma das mais verdadeiras marcas da grande obra de um autor é sua resistência à temporalidade, isto é, sua capacidade de manter-se relevante nas mais diversas eras e suscitar novas e salutares reflexões a respeito dos mais variados temas. Isto percebia Otto Maria Carpeaux, ao afirmar que “A Morte de Ivan Ilitch é uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de Tolstói”. Dotado de grande sensibilidade espiritual, Tolstói percebe na relação humana com a morte um grande paradoxo entre sua inevitabilidade (e imprevisibilidade) e a maneira como ignoramos sua presença até que ela invada nosso íntimo, nossa atenção existencial.
Para nós, navegantes deste gravíssimo momento histórico, ao enfrentarmos uma pandemia de proporções catastróficas para a saúde, a economia, a política e a sociedade pós-moderna em sua plenitude, as considerações de Tolstói sobre a pobre existência de Ivan Ilitch assumem caráter pessoalíssimo, a serem cultivadas de forma bastante ampla em dois grandes níveis que quero lhes apresentar — nos quais, para maior compreensão, contaremos com o auxílio da filosofia heideggeriana:
1. O confronto com a morte (a praga) e a emergência do ser frente a sua finitude (Dasein).
2. As consequências do atual isolamento e observação do quanto a vida de forma automata (Das Man) nos machuca no despertar para a consciência (Dasein, outra vez).
. . .
O homem, ao encarar a morte, atinge uma nova disposição (ou relação) com a mesma. Confrontado pela possibilidade de sua finitude, o homem teme, e esse temor desencadeia uma reação existencial, espiritual. A vida cotidiana, vivida de forma quase automática, entre seus afazeres e sua rotina inesgotável, tornam-se meras notas de rodapé da existência, e a morte —fria e implacável — procura nosso olhar e nos convida para uma dança.
Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo.
O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele [1].
Enfrentar pessoalmente a morte é o momento do Dasein, o homem consciente e desperto para a existência e suas principais questões: não é Caio que morre, sou Eu. No caso de Ivan Ilitch, a morte passa a ser uma certeza conforme sua doença progride e até mesmo as pessoas ao seu redor (que ele já passa a desprezar, também numa relação paradoxal do Dasein, em que compreendendo a convivência com os outros seres, percebe-se ultimamente sozinho consigo mesmo e abandonado a uma existência aparentemente despropositada) lhe dão a convicção de que seus dias estão contados. Para nós — os que enfrentam o coronavírus — a praga, a morte sorrateira e microscópica, essa certeza não existe, e a possibilidade de agir ainda é real.
Mas agir requer, antes de mais nada, o reconhecimento da situação. Aqueles que recusam ou negam a verdadeira ameaça do vírus também temem pela morte, mas além disso, negam-na por um conformismo com a miséria de suas vidas e a recusa em reagir — ou incapacidade, por sua própria fraqueza. Negam, fecham os olhos e sacodem suas cabeças como a escapar de um pesadelo noturno.
Nós não podemos agir assim.
É preciso aceitar a presença do vírus, da morte batendo à nossa porta, e enfrentá-la, existencialmente. Isto não quer dizer que devemos sair às ruas e nos contaminar: não! Este enfrentamento se dá no nível espiritual, como atitude frente a morte (Dasein!). Aceitar a presença da morte é viver conscientemente e não mais como escravos da impessoalidade. Esse é o primeiro ponto.
Em segundo lugar, é preciso aproveitar esse momento, sim, porque apesar de suas consequências terríveis, a pandemia representa uma oportunidade magnífica para mudar nosso modo de vida, reconectar nosso corpo e nosso espírito. É preciso lutar contra o vírus, e contra a tendência demoníaca que nos oferecem ao sugerir que após o fim dessa crise, a vida volte a ser como era. Isso não pode acontecer!
Temos visto diariamente relatos de casais reclamando por terem de conviver ininterruptamente em quarentena, um com o outro, como se casamentos fossem arranjos entre duas pessoas que só desejam chegar do trabalho e ter alguém com quem passar o tempo, ou que ajude nas tarefas domésticas. Pais perdem a cabeça com seus filhos que, agora, passam o dia em casa, como se a paternidade estivesse ressignificada ao ato de gerar crianças para creches, escolas e faculdades educarem. As relações interpessoais são substituídas pela virtualidade; shows na tela de um celular; pornografia; maratonas débeis em fluxo e refluxo de desinformação. Suicídios também tem aumentado significativamente; pessoas que dispensavam qualquer tipo de interiorização, enfrentam crises existenciais profundas ao, isoladas em suas casas, perceberem que existem.
Devemos enxergar como Ivan Ilitch!
Como Ivan Ilitch, que no leito de morte percebe não sentir amor algum por sua esposa vazia e fútil, com quem casou por conveniência, assim abandonando chances de um amor verdadeiro; como Ivan Ilitch que percebe detestar seu trabalho como juiz de instrução, além das relações vazias e interesseiras que o cercam.
Todas essas decisões e frustrações são fruto de uma vida impessoal (Das Man), vivida sob a égide do mundo liberal e globalista. Um mundo sem fronteiras, sem limites, cuja única verdade é um individualismo cego, vazio e consumista, dotado unicamente da missão de satisfazer os desejos mais básicos do ser humano, sem jamais olhar para seu interior, para qualquer tipo de limite ou finitude e, assim, sem jamais perceber a imortalidade.
Percebam!
Enxergar a morte, reconhecer sua presença através do coronavírus, lutar contra ela e obter a vitória só é possível através da total aniquilação da impessoalidade pós-moderna representada pelo mundo liberal e individualista. Ademais, obter essa vitória é caminhar para a imortalidade, é estender a mão para nossa alma e existir de forma profunda e verdadeira.
Existir é uma resistência!
Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar da morte havia luz.– Então é isto! – disse de repente em voz alta. – Que alegria!
Tudo isso lhe aconteceu num instante, e a significação desse instante não se alterou mais [2].
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[1] TOLSTÓI, Lev. A Morte de Ivan Ilitch. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 49.
[2] Ibidem, p. 76