Alguns comentários sobre o simbolismo esotérico do longa-metragem de Galder Gaztelu-Urrutia.
O Poço (2020) encerra muitas camadas de significado e permite análises em vários níveis. Este breve comentário visa apontar alguns elementos e referências que mais chamam a atenção, mas que, definitivamente, merecem uma análise pormenorizada. A ênfase aqui será dada no simbolismo esotérico da película.
O Poço é uma espécie de grande prisão composta por 333 andares. Estruturalmente, podemos ver nela a representação dos diferentes níveis cósmicos da realidade, diferentes mundos possíveis, dispostos hierarquicamente do Melhor ao Pior – de Cima para Baixo. Por outro lado, cada andar pode representar uma “encarnação” diferente, sob circunstâncias diferentes, nas quais o destino do interno parece ser decidido unicamente pela sorte (ou pelo capricho da Diretoria).
Nas primeiras cenas, logo somos apresentados a uma grande cozinha onde um chefe trata de vigiar cuidadosamente a preparação das refeições por um grupo cozinheiros. Mas por que a primeiríssima cena do filme é um homem tocando violino? Seria uma referência aos sons primordiais que fundam e modelam a Criação? E o chefe e cozinheiros, a quem ou o que representam? Difícil responder.
O protagonista, Goreng, leva consigo uma edição do Dom Quixote e a relação aqui é demasiado óbvia: ele é inspirado no célebre personagem de Cervantes. Os ideais de heroísmo e justiça que defende ao longo da narrativa simbolizam o quixotesco. Até mesmo sua aparência física guarda alguma semelhança com as representações de Dom Quixote na Arte e Cinema. Mas e quanto a Trimagasi? Seria ele uma “versão bizarra” do fiel escudeiro que acompanha o cavaleiro em sua jornada? Há indícios que nos levam a essa suposição.
A cena em que Goreng toma a maçã intacta dos restos de comida (para logo ser obrigado a devolvê-la!) adquire grande significação se lembrarmos do simbolismo do fruto proibido. O tema é extenso e complexo. E aqui percebemos ainda mais claramente as referências ao gnosticismo: a existência vista como aprisionamento num mundo inferior e defeituoso criado por um deus deficiente, o Demiurgo.
Baharat é um homem arrebatado por uma espécie de êxtase religioso. Ele crê na possibilidade da salvação. É evidente, aqui, o simbolismo das cordas enquanto meio para a ascensão às realidades superiores e, em última análise, a Deus. Contudo, o fato de Goreng o convencer de seu plano é extremamente significativo: para acessar às realidade divinas, é preciso submeter-se à prova iniciática.
Talvez a personagem mais enigmática do filme seja Miharu, a mulher que transita entre os andares em busca de seu filho. Ao final, descobrimos que sua filha está realmente no Poço, no último andar. Temos, então, a descida ao Inferno (ou aos submundos) para resgatar (ou ressuscitar) uma divindade, um herói, etc. que é um tema recorrente em várias mitologias. Nesse caso, podemos ver na estória de Miharu uma alusão ao mito de Démeter procurando Perséfone.
Também podemos encarar a descida de Miharu como uma espécie de jornada iniciática repetida a cada novo ciclo, mas que nunca é completada porque o segredo ou Mistério (a criança) permanece por algum motivo inacessível para ela.
O plano de Goreng de descender ao último andar do Poço — para então ascender ao Topo — também se inscreve numa estrutura iniciática; descer ao Inferno para ascender aos Céus: a Jornada do herói.
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Já a panna cotta é o manjar que deverá ser guardado (feito mistério ou segredo inviolável) durante a Jornada. Mais adiante, contudo, acaba servindo de alimento para a criança, que toma seu lugar enquanto “mensagem”.
Ao final, Goreng desce com a criança até a Escuridão, abaixo do último nível, e, convencido por Trimagasi, lá permanece. Sua Jornada chegou ao fim. Mas por que, após descender ao Inferno, ele não realiza a ascensão? Porque a criança sobe em seu lugar? Uma possibilidade é que a cena simboliza o abandono ou o desprendimento do Ego (a questão seria, então, a permanência x impermanência de Goreng), ao passo que a criança, enquanto símbolo de pureza (aqui estaríamos diante da transmutação de Goreng), ascende em direção aos Céus (Goreng, neste sentido, é a criança).
Mas podemos ainda supor que, ao chegar ao fundo, o protagonista adquire um conhecimento liberador (a gnose) e ascende, transmutado na figura da criança, escapando, assim, da armadilha demiúrgica. Mas nesse caso, qual seria exatamente o conhecimento liberador? Não parece haver uma correspondência evidente, mas a criança pode surgir aqui como símbolo para um certo “estado de inocência” dos primórdios, ou de um “conhecimento das origens” que, após a Jornada, é recuperado, reavido mnemonicamente. O Poço, neste sentido, pode simbolizar as regiões interiores da própria Pessoa, que é submetida a um processo de purificação — algo que o próprio longa, ao tangenciar os motivos de Goreng para ir voluntariamente ao Poço (seu vício por cigarros), sugere ou, no mínimo, deixa subentendido.