Ninguém deveria possuir um bilhão de dólares, e quem possui é qualquer outra coisa que ser humano
Por Tom Whyman, escritor e filósofo britânico.
Um bilhão de dólares é uma quantia enorme. Realmente: um bilhão de dólares é uma quantia tão grande que recentemente surgiu todo um sub-gênero de imagens feitas especificamente com a intenção de nos fazer entender quão grande é tal quantia. Se você, por exemplo, tivesse ganho um milhão todo ano desde a Batalha de Hastings em 1066 e não tivesse gasto nada, você ainda (não obstante os juros) não seria um bilionário. Se você ganhasse um salário anual de $ 43,000, você até poderia em algum momento se tornar um bilionário – (mais uma vez, não obstante os gastos ou juros acumulados) – mas apenas se esperasse por 23,000 anos.
E nada disso sequer conta com a quantia ainda mais extrema de dinheiro que Jeff Bezos conseguiu acumular durante sua vida: $ 110 bilhões de dólares, de acordo com uma estimativa recente. Outro dia eu vi um casal num pub, estudantes, eu acho, discutindo sobre o quanto era um bilhão. Um deles pensou que era dez milhões. O segundo apostou que era na verdade um pouco mais: cem milhões. Quando eles notaram que um bilhão é na verdade ou mil milhões (“escala curta”, às vezes pensada como um tipo de “bilhão americano” pelos britânicos) ou um milhão de milhões (“escala longa”, usada oficialmente na Grã Bretanha desde meados dos anos 70), elas não conseguiam parar de rir. As pessoas possuem, de fato, essa quantidade em dinheiro? E é permitido que elas… a tenham?
“As pessoas não têm ideia do quanto 1 bilhão é maior que 1 milhão. 1 milhão de segundos dá 11 dias, 1 bilhão de segundos dá 31,5 anos.” – Paul Franz
“Dinheiro como medida do valor”, nos diz Marx em “O Capital”, “é a forma necessária da aparência da medida de valor que está imanente em commodities, isto é, tempo de trabalho.” O dinheiro, então, é para Marx uma forma sedimentada de tempo. Mas se isso é verdade, então ter um bilhão de dólares (ou libras, ou qualquer outra moeda) leva uma pessoa completamente além do tempo humano.
Um bilhão de dólares é muito, mas muito mais dinheiro que qualquer pessoa pode realisticamente gastar com suas necessidades durante uma vida humana. Se você possui um bilhão de dólares, você está completamente protegido de qualquer preocupação humana: você jamais sentirá fome, precisará de moradia ou sofrerá por causa de tratamento médico inadequado. É claro, pode muito bem haver diversas pessoas confortáveis de classe média que serão sortudas o suficiente para nunca ter que lidar com essas necessidades, mas a diferença é que o bilionário está isolado até mesmo da possibilidade de experienciar tais necessidades. São como o cristão que foi salvo do desespero na Doença Mortal de Kierkegaard, que elimina a possibilidade de desespero a todo momento. Se você tem em sua posse um bilhão de dólares, então qualquer coisa que você deseje – qualquer coisa que qualquer um possa conceber como desejo – pode ser sua, assim que você a deseje. Mas sem uma real fricção entre o desejo e a realidade, como o ato de querer sequer funciona? Uma pessoa que vive assim poderia sequer dizer que conhece o desejo?
E assim como ninguém consegue gastar um bilhão de dólares durante sua vida, ninguém consegue ganhá-lo também. As pessoas foram levadas a dizer “cada bilionário é uma falha política”, pois essa quantia de dinheiro torna clara a verdade de que Marx nos fala sobre toda a riqueza acumulada sob o capitalismo: é parte de um processo que só é possível porque as pessoas que têm os meios de produção estão, realmente, roubando de seus empregados, pagando-lhes um salário muito abaixo do valor que o trabalho desses empregados confere aos produtos. Se você se encontra com um bilhão de dólares e fica com ele, então você está se recusando a estar em solidariedade com todo o resto da espécie humana.
Costumamos ver as novas tecnologias como se permitissem, talvez, que um novo tipo de humanidade nascesse: “pós-humanos” como o artista Neil Harbisson, legalmente reconhecido pelo governo britânico como um ciborgue, que tem uma antena plantada no seu cérebro que traduz as cores em áudio. Mas quem precisa de microchips no cérebro quando se tem um bilhão de dólares no banco? Ter um bilhão de dólares faz uma pessoa ser muito menos conectada ao fluxo normal de necessidades e dores humanas que qualquer modificação transhumanista faria.
Então quer dizer que os bilionários e seus defensores encontraram uma nova suspeita do seu direito de saquear riquezas com choramingos de que insultar bilionários seja de alguma forma desumanizante. Um tempo atrás esse ano, a curta campanha presidencial do ex-executivo do Starbucks Howard Schultz despertou uma controvérsia sobre um “preconceito anti-bilionário” depois dele ter insistido que bilionários como ele eram “pessoas de meios”, como se se referir abertamente à sua riqueza fosse uma ofensa. E como a maioria das coisas horrorosas americanas, esse discurso bilionário está sendo importado para o Reino Unido. Uma das maneiras na qual ele surgiu foi com a apresentadora da BBC Emma Barnett respondendo, numa entrevista, à declaração do primeiro ministro do Partido Trabalhista Lloyd Russell-Moyle de “eu não acho que qualquer um nesse país deveria ser um bilionário” com um incrédulo: “e por que ninfuém deveria ser um bilionário? Algumas pessoas nesse país aspiram a ser bilionárias”, disse Barnett. “É algo errado?” Busque ainda pela direita dizendo que o debate fez o partido de Russell-Moyle parecer louco e inelegível. Bilionários – são algo de bom. E não deixe que esses bandidos politicamente corretos lhe digam o contrário! Se não tivéssemos bilionários, seríamos como a Venezuela! E por aí vai.
Bilionários são poderosos e algumas pessoas são psicologicamente condicionadas a serem puxa-sacos.
Por que tal tipo de discurso bilionário existe? Obviamente, há razões materiais brutas. Pessoas ricas possuem jornais e outras organizações de mídia, então é do seu interesse que o questionamento do direito dos ricos a possuírem a sua riqueza seja apresentado como algo perigoso e/ou absurdo. Mas isso apenas não explica muito bem porque há pessoas que se sentem inclinadas a concordar com eles – porém, mais uma vez, tenho certeza de que se houvesse alguma rede social na Idade Média, haveria muito discurso brutal de senhor feudal da mesma maneira, com vários nobres floodando os comentários para defender o seu direito de senhor. Bilionários são poderosos e algumas pessoas são psicologicamente condicionadas a serem puxa-sacos.
Mas creio que o discurso bilionário é um indicativo de algo muito mais profundo espiritualmente. Particularmente importante – para Barnett, por exemplo – é a ideia de que alguém deve aspirar a ser um bilionário: que estar em posse de um bilhão de dólares é uma ambição completamente legítima, tanto quanto aprender a tocar um instrumento ou visitar a Austrália.
Suponhamos que a minha ambição seja aprender a tocar um instrumento musical. Parece bem ok – apesar de, é claro, nem todo mundo possuir essa ambição e ter sorte o suficiente para realizá-la. Para aprender a tocar um instrumento, preciso ter (por exemplo) um certo ouvido pra música e uma habilidade mecânica suficiente para tocar e aprender o instrumento com algum grau de fluência e expertise. Preciso ainda ter a sorte de ter dinheiro e tempo o suficiente para aprender o instrumento que quero. Mas a sorte envolvida aqui não é nem remotamente miraculosa – incontáveis pessoas aprendem a tocar instrumentos. E a minha experiência desse sucesso provavelmente não vai tirar a oportunidade de que outra pessoa aprenda também a tocar um instrumento.
Tornar-se um bilionário não funciona da mesma forma. Tornar-se um bilionário é um fato de extrema sorte, geralmente experienciado não por qualquer indivíduo, mas se estende por gerações – é, no fim das contas, muito mais fácil acumular um bilhão de dólares se você começa, como Kylie Jenner começou, com uma família rica (e uma família que possui uma plataforma de mídia). Ainda mais: sua boa sorte em se tornar um bilionário deve ser simultaneamente sentida – muitas vezes diretamente e talvez até violentamente – da mesma maneira que o azar de provavelmente centenas de milhões de outros, dos quais a sua riqueza existe como um roubo.
No capitalismo, embora a expiação – e a salvação – sejam negadas a Deus, não o são a bilionários.
Então por que alguém defenderia “se tornar um bilionário” como uma aspiração? Quando Russel-Moyle sugeriu que o Partido Trabalhista impediria que as pessoas se tornassem bilionárias, Barnett respondeu-lhe, como se fosse um padre, e sugeriu ainda que a igreja estava pensando em acabar com o céu. Há algo quase religioso na ideia de “aspiração” apresentada aqui: em uma economia capitalista, a aspiração a ser bilionário deve ser defendida, pois é na extrema riqueza que o capitalismo coloca a possibilidade de salvação.
“Uma religião pode ser discernida no capitalismo,” Walter Benjamin nos diz em um fragmento de 1921, “O capitalismo como religião.” “Ou seja, o capitalismo serve essencialmente para aliviar as mesmas ansiedades, tormentos e distúrbios para os quais as assim chamadas religiões não ofereciam respostas.” Mas o capitalismo é, por causa disso, uma religião: “puramente cúltica”, como Benjamin afirma, “sem dogmas, sem teologia.” Tudo no capitalismo faz sentido apenas em relação ao próprio capitalismo – à própria economia. É ainda puramente um culto porque é permanente: sob o capitalismo “não há dia que não seja festivo, no sentido terrível em que a sua sagrada pompa se nos revela; cada dia obriga a suma fidelidade de cada um de seus fiéis.”
O sentido da cerimônia capitalista é, de acordo com Benjamin, “tornar a culpa pervasiva”. De fato, o capitalismo é “provavelmente a primeira instância de uma religião que cria a culpa” por si mesma, não para a expiação. De acordo com Benjamin, a culpa sob o capitalismo – o sentimento de que alguém miserável, preguiçoso, não merecedor, que nunca faz o suficiente para justificar sua própria existência – é tão pervasiva que o próprio Deus está incluído no “sistema de culpa”. “A transcendência de Deus,” afirma Benjamin, “chega ao fim. Mas ele não está morto; foi incorporado à existência humana.” Sob o capitalismo, todo o universo está em desespero – então Deus deve se sentir culpado por ter ousado mesmo criá-lo.
Há com certeza sentido nesse pensamento. Mas não tenho certeza se ele está certo. Pois no capitalismo, mesmo que a expiação – e a salvação – sejam negadas a Deus, não o são a bilionários. O fato é que os bilionários de hoje possuem tudo aquilo que Cristo prometeu àqueles que o seguiam: pela sua riqueza, podem sentir a garantia da vida eterna – seus nomes serão para sempre resplendentes sobre aqueles de instituições educacionais superiores; novas alas de hospitais; coleções de arte. Pela sua riqueza, conseguem ter acesso – apesar de alguns poucos conseguirem – ao paraíso na terra.
E ainda, por causa de tudo isso, a possibilidade de salavação que “aspirar a ter um bilhão de dólares” representa é essecialmente absurda. A salvação do bilionário serve para a danação de todos os demais. “A doutrina cristã da morte e imortalidade,” Adorno afirma em Minima Moralia, no aforismo “Mônada”, em que escreve sobre quão fracos o individualismo atômico nos fez, “seria totalmente vazia se não abraçasse a humanidade. O homem que espera pela absoluta imortalidade, e para si mesmo apenas, só inflaria, em tal limitação, para dimensões absurdas, o princípio de auto-preservação.” O bilionário é essencialmente alguém que conseguiu completar, pelo impossível, esse especial truque de conjuração: conseguiu transcender os limites ordinários da finitude humana não por Cristo (que obviamente é também o Espírito Santo – portanto, a comunidade religiosa), mas por seu próprio egoísmo.
Cada bilionário é, portanto, mais que uma simples falha política. Todo bilionário é a evidência de uma falha básica no tecido do universo moral: suas vidas, seus atos, gritam o evangelho de que apenas o que chamamos de mal pode ser recompensado – que o egoista vive com os anjos e todas as pessoas boas serão condenadas. Enfrentar o capitalismo também significa enfrentar a sua religião.
Fonte: https://theoutline.com/post/8187/billionaires-are-not-people