Rodrigo Mendoza e a possibilidade Cristocêntrica do ser.

No filme “A Missão” (1986), ambientado na América do Sul em meados do séc. XVIII, a jornada do personagem Rodrigo Mendoza (interpretado por Robert De Niro) chama tanta atenção quanto o próprio contexto geral da obra.

O núcleo de seu arco de redenção não é baseado na ordem moral, social ou política vigente, mas acima de tudo, na ordem religiosa. Rodrigo não busca o exílio por uma sequência de atos temporais, reféns de sua própria existência momentânea — como a função de mercador de escravos ou mesmo de guerreiro mercenário -, mas sim por um único ato eterno, condenado no contexto sagrado e estopim de um símbolo da maldade no mundo: o fratricídio.

Sua história pregressa remonta a Caim e Abel, quando o irmão mata o outro por inveja. Rodrigo mata Felipe pelo mesmo motivo. Neste caso, não pela preferência de Deus, mas de uma mulher, simbolicamente a deusa de Rodrigo, ao preferir o irmão. Substituímos então a rejeição de Deus à oferta de Caim, à rejeição de Carlotta a Rodrigo, se regozijando no amor de Felipe.

Rodrigo Mendoza chegando ao povoado com novos indígenas capturados como escravos.

Ainda que as condições da morte de Felipe não criminalizem Rodrigo socialmente, principalmente por ter se tratado de um duelo justo, na realidade o destrói completamente. E a partir deste momento, Rodrigo não fica apenas doente, mas morre simbolicamente. Seu exílio é o purgatório dos vivos, trancado em uma espécie de cela religiosa após o abandono de sua função profissional, praticando uma possível penitência dia após dia, até que, meses depois, em uma visita do padre jesuíta Gabriel (já conhecido por Rodrigo por maneiras não tão amigáveis) à comunidade, os dois se encontram. Sua culpa neste ponto é completamente existencial, sagrada, e não puramente psicológica. Não possui esperança de remissão por seu pecado. Nada é suficiente para castigá-lo.

Seu arco de redenção se aprimora e alcança um novo nível no caminho de ida a uma das missões, acima da cachoeira, a Missão de São Carlos. Rodrigo, após uma breve conversa com o padre Gabriel, busca sua mínima chance de existência longe da calmaria da comunidade que vive, onde outrora fora um capitão respeitado e de trejeitos aristocráticos. O caminho ao novo local é árduo, longo e vertical. O caminho à Missão de São Carlos não era apenas físico, mas místico, em busca do Novo Paraíso. A Missão não se arrastou até ele. Pelo contrário, ele se arrastou à Missão. A subida na jornada do homem é física, mental e espiritual; e o topo é sua conquista. O caminho até o topo remonta os mistérios explorados e inexplorados pela capacidade humana de discernimento, bem como de transparecer nossas fraquezas; mas o mais importante é a capacidade de correção de nossas falhas e aprimoramento de nosso ser. Esse é o maior mérito do caminho.

Seus passos nessa jornada são lentos e sofridos — contrastando com passos leves e ágeis dos padres que o acompanham -, justamente por arrastar suas armas, armaduras e seus poucos pertences cachoeira acima. Aquela notável bagagem que levava não era apenas física, mas egocêntrica. Ali estava o fardo do capitão Mendoza, seu ego. Seu sacrifício viabilizou o reconhecimento do peso que o acompanhava. Sua dolorida caminhada facilitava o surgimento do ‘novo homem’ de São Paulo, este ‘novo homem’ cujos diversos pecados procurava deixar para trás. Mas isso só acontece após a conquista do topo. Sim, Rodrigo alcança o topo. E a primeira coisa que acontece é um indígena o reconhecer e correr em sua direção, colocando uma espécie de faca em seu pescoço. Esta faca, já de lâmina metálica, representando o firmamento das relações do Velho e o Novo Mundo, em mãos indígenas, então é utilizada para cortar a corda que ligava Rodrigo à bagagem após uma pequena intervenção do padre Gabriel ao líder daquela comunidade pela vida daquele homem. Rodrigo alcançou o topo, e neste momento sua bagagem cai e some nos confins da cachoeira, seguindo o fluxo das águas. O ego de Rodrigo é cortado, dilacerado.

A alegoria presente no corte de sua bagagem ao invés de seu pescoço por um guerreiro indígena — e não por um sacerdote católico — indica a possibilidade daquele local ser o primórdio de sua nova vida; fora ajudado por aqueles que castigava.

Padre Gabriel, se por um lado oferecia a Rodrigo uma possibilidade d’ele mesmo alcançar as ferramentas de sua redenção, por outro não intervia fisicamente em sua decisão anterior de não soltar sua bagagem pelo trajeto. O padre, nesse contexto, era o ser integrador junguiano entre o consciente e o inconsciente simbólico. Representava o racionalismo e pragmatismo em contato com o mistério, as selvas e os indígenas do Novo Mundo. Mas mais do que isso, e diferentemente de Rodrigo, sua luta não é contra o passado, mas pelo futuro. A missão de Gabriel é pura escatologia, é garantir a existência de um mundo novo livre dos anseios das corrupções políticas e religiosas já existentes no velho. Gabriel era o Eros luminoso. Sua presença naquele local significava vida, criação e harmonia. Ele era a ponte entre o antigo e o novo mundo, e tudo isso primordialmente pelo som. Sua primeira aparição em contato com os indígenas é justamente operando um oboé, criando ali a primeira camada de um contato bem-sucedido entre mundos distintos e atraindo a total atenção e curiosidade dos habitantes das matas, como se tivessem sido atingidos pela própria flecha de Eros. Por outro lado, o primeiro contato de Rodrigo com os indígenas que nos é visível, é através da violência, caos, morte e captura, representando o próprio Tânatos enquanto agente da morte, da violência e da inércia.

Padre Gabriel utilizando seu oboé para apaziguar seu primeiro contato com os indígenas.

Porém, o fim da obra é a chave hermenêutica da trajetória do guerreiro e mercador de escravos e do padre jesuíta, em um encontro possível graças às possibilidades da formação daquele que fora o primeiro grande projeto civilizatório da América do Sul: as missões jesuíticas. Após uma sequência de reviravoltas políticas e burocráticas presentes no filme, por fim há um ataque de forças conjuntas às missões locais, e tanto Gabriel quanto Rodrigo defendem aquele povo até o fim.

Padre Gabriel durante o ataque à Missão de São Carlos.

Gabriel morre alcançando o conceito de martírio perfeito, enquanto combate, de sua forma, utilizando apenas um ostensório. Morre perfeitamente pelo testemunho da fé. Rodrigo, por outro lado, pega em armas, agindo em defesa daqueles que não poderiam se defender de forma equiparada. Gabriel e Rodrigo, naquele momento, tornam-se santos, explicitando a capacidade Cristocêntrica do martírio e o mistério divino das possibilidades.

Rodrigo Mendoza vivendo como jesuíta.

Rodrigo Mendoza encarna, então, o ser-no-mundo de Heidegger: é ligado ao seu mundo na mais profunda forma; encontra na conversão de atos a possibilidade da salvação; morre protegendo seus novos irmãos em Cristo após matar seu próprio irmão biológico em um certo passado. Seu sacrifício é a inversão da culpa. Capitão Mendoza, agora jesuíta, é o Caim penitente, e por fim, um mártir. Sua jornada é a pura síntese da trágica possibilidade da vida humana, sua síntese teleológica alcançando o mais puro estado da fraternidade, o mais profundo estado da forma. Ambos, agora, mártires, ambos deuses. Ambos integrados ao verdadeiro corpo aristocrático permanente.

Por Cristo, com Cristo e em Cristo.

João Oliveira
João Oliveira

Professor e entusiasta das dinâmicas do conhecimento humano.

Artigos: 54

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