Uma recente e acalorada discussão sobre sexualidade e repressão de impulsos sugere algumas oportunas reflexões sobre a instrumentalização da psicologia, suas vocações originais, potenciais, limites e as próprias neuroses dos analistas, que ficam aparentes em determinados discursos.
Para uma parte considerável da psicologia pós-moderna, especialmente aquelas herdeiras de Freud e suas demais chamadas “interseccionalidades”, a doutrina cristã representa o que há de mais nefasto para uma estruturação adequada da psiquê humana. É preciso mergulhar na genealogia e atualidade desse gesto para rejeitá-lo e reencontrar uma via saudável para pensar sexualidade desde uma perspectiva tradicional
Tratando especificamente das vias psicanalítica e psicoanalítica, onde reside o apontamento da sexualidade (ou libido, de forma mais precisa) como eixo fundamental da subjetivação e do percurso antropológico de modo mais amplo, quando se fala de liberação sexual a coisa é um pouco mais complexa do que simplesmente a não repressão da sexualidade. Freud, por exemplo, tinha uma perspectiva de sublimação consciente (terapêutica) da sexualidade, isto é, uma reorientação da energia do Id para funções não sexuais.
Jung foi além, primeiro ao tratar a libido como uma fonte de energia mais primordial do que sexual e que abrange até mesmo as aspirações espirituais. Ora, o suíço via na religião, inclusive, um caminho natural de transmutação da libido, e não rejeitava o cristianismo nesse sentido. Ele estava é interessado no modo com que a libido se transmutava através de símbolos e ritos.
“O cristianismo, ao reconhecer o pecado, lida realisticamente com a sombra. Essa é sua grande vantagem sobre religiões que negam o mal.”
— Carl Gustav Jung
Pois bem, a repressão sexual que eles criticavam, com acerto, ia muito além de uma crítica geral ao pensamento religioso cristão, mas era uma importante reação a uma subversão da própria doutrina cristã a respeito do sexo e seus impulsos, fruto principalmente do puritanismo vitoriano e pós-vitoriano, que pouco tem a ver com qualquer perspectiva tradicionalista sobre libido ou sexo.
Neste sentido, a psicologia encontra terreno fértil. Ela é capaz de lidar com o problema da repressão e oferece uma amplitude de mecanismos conciliatórios entre a consciência e os impulsos presentes na nossa natureza. O problema está num certo anacronismo de pensar quaisquer discursos cristãos contemporâneos de regulação dos impulsos sexuais como uma continuação direta ou indireta de uma questão histórica e mais específica.
Assim, no cerne da discussão observada, se encontravam dois problemas: (i) um mau esclarecimento ou entendimento do que se tem por repressão do sexo, já que há necessidade de contextualizar o termo ao analisar qualquer tipo de anti-liberação sexual; (ii) uma generalização torpe do cristianismo como “neurotizante”.
A tradição cristã nunca reduziu o sexo à “culpa” e “pecado”, como foi suposto. O que existe, sim, é uma visão teleológica positiva do desejo sexual pela ótica da comunhão e da fecundidade, que requer ordenação para não aprisionar pela própria natureza inconsciente e potencialmente opressora das nossas cóleras interiores.
Evágrio Pôntico, por exemplo, enfatiza a ideia de logismoi (energias passionais) e as paixões desenfreadas da alma que exigem purificação, não repressão, através de diálogos espirituais, confissão de pensamentos e vigilância na oração. Trata-se de um processo de cura para quando os impulsos dominam o homem a ponto de perder controle da sua existência.
A supressão bruta de tais paixões é, para Evágrio, simplesmente impossível, porque se tratam de forças que, sozinhos, não podemos abater, pois são, quando presentes, tendências inconscientes desintegradas. A única via de fato é a transfiguração das paixões pela graça.
Mais recentemente, o falecido Papa João Paulo II, em sua teologia do corpo, resgata a crítica à repressão sexual dentro do catolicismo, enfatizando os princípios de comunhão e o corpo como expressão visível da pessoa humana, capaz de tornar visível o invisível, sendo o sexo uma linguagem do dom total, de entrega e aceitação mútua.
Além disso, ele retoma o debate sobre a culpa do pecado original, uma tendência do cristianismo ocidental desde a teologia de Santo Agostinho, como a herança de uma natureza ferida, e que a culpa não é uma condenação pessimista, mas sinal de consciência moral, patológica quando paralisante.
A distinção, claro, está na profundidade ontológica. A psicologia não está interessada em ascese, nem pode estar visto seu caráter secular. Ela busca integração, enquanto o cristianismo está atrás de uma purificação através dessa integração. São vias distintas, mas ambas criticam a obsessão neutralizante do puritanismo. A sublimação psicanalítca é horizontal; a transformação mística é vertical.
Sobre o puritanismo, ele nada mais é do que uma secularização da moralidade ascética em doutrina de controle social, completamente desconectada da dimensão sacramental do corpo. Castidade, por exemplo, é uma virtude de ordenação, que só pode ocorrer quando os próprios impulsos, sentimentos e angústias são integradas, uma ascese.
Em sua manifestação histórica e destilamentos posteriores, o foco excessivo no pecado e a suspeição do prazer sexual tolheram as potencialidades unitivas do amor conjugal e das relações sexuais, além de produzir uma sociedade moralista que subvertia a ordem através de prostituição e abusos encobertos.
Por diversas razões, poucas delas louváveis, certas correntes da psicanálise, especialmente as mais radicais, reduziram o cristianismo a um mecanismo de repressão projetiva, ignorando suas dimensões terapêuticas e simbólicas, assim como suas questões teológicas fundamentais sobre o tema, afinal, não era do seu interesse.
No entanto, é fácil perceber hoje como muitos profissionais reduzem o cristianismo ao mesmo não só por centralidade axiomática, mas uma tendência de caricaturização prepotente e persecutória. Isso, ironicamente, aparece muito mais como sintoma de um recalque e má integração ao pensamento religioso por relações intrutíferas ou influências do zeitgeist.
Tratada como radical, a verdadeira doutrina cristã — assim como outras vertentes tradicionais e alicerçadas na eternidade — sobre o corpo e o sexo aparece justamente como a via do meio entre a repressão cega, paralisante, e um tipo de libertinismo que se esconde nas entranhas de teorias científicas para destilar ódio e suas próprias neuroses.
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