O Irã é um país mais complexo do que parece, com a designação de “teocracia” sendo extremamente imprecisa.


As agências de notícias divulgaram a informação de que o Líder Supremo do Irã, Ali Khamenei, teria transferido os poderes executivos aos Pasdaran, ou seja, ao Corpo da Guarda Revolucionária, o grupo militar que desempenhou um papel decisivo durante a Revolução Khomeinista de 1979 e que continua a cumprir missões e funções para a proteção dos princípios da Revolução (art. 150).
Se confirmado, esta seria uma decisão de emergência não prevista formalmente pela Constituição iraniana, que, na verdade, estabelece em seus procedimentos modalidades diferentes, igualmente adequadas à fase delicada que a República está atravessando.
Um primeiro procedimento consiste em confiar as responsabilidades do Líder, em caso de incapacidade temporária, a um Conselho Provisório composto pelo Presidente da República, pelo Presidente do Poder Judiciário e por um dos juristas do Conselho dos Guardiões, eleito pelo Conselho de Discernimento do Interesse Superior do Estado (art. 111). É importante esclarecer que o Conselho dos Guardiões (não deve ser confundido com o Corpo da Guarda Revolucionária mencionado acima) desempenha um papel semelhante ao de um juiz constitucional, verificando a compatibilidade das normas adotadas pela Assembleia parlamentar com a Constituição e os preceitos do Islã (art. 94). Por outro lado, o Conselho de Discernimento do Interesse Superior do Estado funciona como uma espécie de “super” juiz constitucional, responsável, entre outras coisas, por resolver conflitos de interpretação entre o Conselho dos Guardiões e a Assembleia (art. 112).
Um segundo procedimento envolve a atuação do Conselho Supremo de Segurança Nacional, criado para garantir o interesse nacional e proteger a Revolução Islâmica, a integridade territorial e a soberania nacional (art. 176). Este órgão foi central durante a emergência do coronavírus, e sua particularidade reside no fato de que suas decisões não precisam necessariamente ser publicadas em fontes oficiais, sendo suficiente a ratificação pelo Líder (e, talvez, uma comunicação informal por meios de telecomunicação).
Um terceiro procedimento consiste na proclamação do estado de sítio e na formação de um governo militar, cujas decisões têm validade provisória, devendo ser convertidas pela Assembleia (algo semelhante ao nosso decreto-lei) (art. 79).
A situação concreta atual pareceu tão atípica que teria levado o Líder Supremo a confiar os poderes executivos aos Pasdaran, em derrogação à própria Constituição, se as informações de que dispomos estiverem corretas.
Uma oportunidade para entender a particularidade da “teocracia” islâmica
Todo o quadro esboçado, tanto no que diz respeito aos procedimentos previstos de forma abstrata quanto à decisão concreta que parece ter sido adotada, é interessante, entre outras coisas, porque permite observar a ordem iraniana além da simples definição de “teocracia”.
É verdade que o elemento religioso é uma constante no funcionamento dos órgãos citados, mas:
- Os Pasdaran são militares revolucionários, e não membros do clero.
- O Conselho dos Guardiões é composto por 6 juristas islâmicos (Fuqaha) nomeados pelo Líder Supremo e por 6 juristas leigos indicados pelo Poder Judiciário, sob proposta da Assembleia (que, por sua vez, é composta por leigos e clérigos).
- O Conselho de Discernimento do Interesse Superior do Estado é formado por membros de diversas origens (juristas, militares, clérigos, políticos, etc.), nomeados pelo Líder.
- O Conselho Supremo de Segurança Nacional inclui os principais representantes dos três Poderes do Estado, o comandante do quartel-general das Forças Armadas, o responsável pelo planejamento econômico e financeiro, dois representantes escolhidos pelo Líder, os ministros das Relações Exteriores, do Interior e dos Serviços de Inteligência, o Comandante Geral das Forças Armadas e os Guardiões da Revolução.
- O próprio Líder Supremo, um clérigo de grande influência, é eleito por um Conselho de Especialistas, cujos membros também são eleitos pelo povo entre representantes de diversas origens (juristas, militares, clérigos, políticos, etc.) (art. 107)!
O Líder Supremo – o único a ter sido eleito para essa função é atualmente Ali Khamenei, sucessor de Ruhollah Khomeini, cujo mandato era de duração indefinida – é reconhecido como um jurista-clérigo experiente, capaz de interpretar os preceitos do Islã.
Uma ordem à espera de uma verdadeira teocracia
Todo o sistema constitucional iraniano poderia até ser considerado provisório, na ausência de uma verdadeira teocracia. O Irã é uma nação xiita. O xiismo é a segunda maior ramificação do Islã. A primeira é o sunismo, que é o mais difundido. Como é sabido, essas duas grandes tradições divergem principalmente sobre a sucessão do Profeta Maomé. Os xiitas traçam sua origem a partir da filha Fátima e do primo e marido, Ali ibn Abi Talib, considerado o primeiro Imam (guia). Já os sunitas rejeitam essa interpretação e citam a esposa de Maomé, considerando, de forma simplificada, que qualquer pessoa que possa se proclamar Imam merece sê-lo.
Isso tem repercussões no plano jurídico-institucional do governo da comunidade islâmica. O sunismo confunde a orientação religiosa com a orientação secular. Nesse caso, o termo “teocracia” parece totalmente apropriado. Já o xiismo, por outro lado, considera necessária uma figura diretamente descendente da linhagem de Ali. No entanto, aí reside o problema, de um alcance escatológico extremo: o décimo segundo Imam teria desaparecido no século IX para escapar das perseguições do califado sunita. Isso privou de legitimidade todos os governos políticos posteriores. Durante séculos, os xiitas aceitaram a contragosto as autoridades políticas existentes. No caso do Irã, porém, Ruhollah Khomeini elaborou a teoria do “jurisconsulto experiente” (Velayat-e Faqih): é preciso que uma pessoa autorizada governe, capaz de interpretar os preceitos do Islã da maneira mais coerente possível (embora nunca de forma perfeita), enquanto aguarda o retorno do Imam. Com base nisso, a Revolução de 1979 (que derrubou o Xá da Pérsia na época) foi conduzida, e é sobre esse fundamento que o regime atual se sustenta.
Fonte: Barbadillo