José Alsina Calvés examina como a vitória de Trump marca abandono do paradigma liberal nas relações internacionais em favor do realismo político. O autor contrasta a abordagem globalista baseada em “valores democráticos” com o novo foco no interesse nacional americano, alertando que apesar da ruptura com o multilateralismo, certas políticas prejudiciais à Espanha e à Hispano-América permanecem inalteradas, como o apoio incondicional a Israel e Marrocos.
Alexander Dugin, em seu livro Teoria do Mundo Multipolar, faz uma descrição interessante dos vários paradigmas que podem operar nas relações internacionais. Tratarei de apenas dois deles, que são os que nos interessam para os fins deste artigo.
Em primeiro lugar, trataremos do chamado paradigma liberal, que é o que tem estado em vigor até agora nas relações EUA/UE/Rússia e que determinou as posições sobre a guerra da Ucrânia. O dogma fundamental do paradigma liberal é de origem progressiva: ele acredita que a natureza humana e, a partir dela, sua expressão política na forma do Estado, está sujeita a mudanças qualitativas, partindo do pressuposto de que as mudanças são para melhor.
A partir dessas perspectivas, conclui-se que as formas políticas podem evoluir e podem ir além das fronteiras estatais e do egoísmo nacional. Isso pressupõe a possibilidade de cooperação e integração entre diferentes estados com base em ideais “morais” e valores comuns.
Essa suposta “moralização” das relações internacionais faz com que os liberais se concentrem na questão: que tipo de regime político existe em um estado ou outro e, dependendo se esse regime é liberal-democrático (o único “bom”) ou não, suas relações com ele serão completamente diferentes.
Como resultado, a relação dos países “democráticos” entre si terá uma estrutura completamente diferente de suas relações com os países “não democráticos”. O dogma de que as democracias não lutam entre si está no DNA desse paradigma das RI.
Deve-se ficar claro que, para que um regime político seja considerado “democrático”, não basta haver eleições, parlamento e partidos políticos. É necessário que o núcleo central desse regime abrace os “valores democráticos”, ou seja, a ideologia de gênero, o neofeminismo, a ideologia climática, os “direitos humanos”, o cosmopolitismo e toda a salada ideológica dos chamados “valores ocidentais”.
Com regimes “não democráticos”, não há espaço para compromisso, pacto ou negociação. Somente a “cruzada ideológica”, a destruição do adversário, a “guerra santa” são válidas.
Esse paradigma tem dominado o Ocidente coletivo (EUA e UE) desde o início da guerra da Ucrânia. Curiosamente, antes do início do conflito, muitos países da UE mantinham boas relações diplomáticas e econômicas com a Rússia.
É bastante evidente que, por trás desse paradigma, há uma enorme dose de hipocrisia e discricionariedade. Também é bastante evidente que, por trás desse “multilateralismo” (um termo iniciado sob a presidência de Obama), há uma submissão absoluta da UE aos ditames dos EUA.
O globalismo que decorre do paradigma liberal tende, por um lado, a diluir (aparentemente) a liderança dos EUA como Estado-nação e a defender a ideia de um “governo mundial” que implementará seu projeto em toda a Terra. Quando falam de um mundo “baseado em regras”, esquecem de especificar quem vai estabelecer essas regras.
Qualquer Estado que se oponha a esse projeto é um “Estado pária”, não é realmente “democrático” (mesmo que tenha um parlamento, eleições e partidos políticos) e deve ser combatido, pois é uma ameaça à “segurança”. Alguém disse certa vez que não há nada como o “pacifismo” para alimentar as guerras mais sangrentas.
A vitória eleitoral incontestável de Trump nos EUA derrubou completamente esse paradigma. Gostaria de deixar claro que o autor não participa do entusiasmo acrítico por Trump demonstrado por alguns setores “patrióticos”, mas tenta analisar as consequências dessa vitória e o impacto que ela pode ter sobre os interesses da Espanha, da Hispanidade e das nações europeias (não da UE).
A política de Trump rejeita o paradigma liberal de RI e adota o paradigma realista. Vamos ver em que ele consiste.
Nessa perspectiva, os estados-nação são os principais atores nas RI, o que implica a ausência de qualquer autoridade reguladora acima dos estados. Quando algo desse tipo existe (ONU, Tribunal de Haia), esse órgão, de fato, serve aos interesses de um Estado poderoso. O comportamento de um determinado Estado na arena internacional está sujeito à lógica dos interesses nacionais (“América, ou seja, os EUA, em primeiro lugar”).
Para os realistas das RI, o lado factual dos processos das RI é mais importante do que o lado normativo, e o mais importante é a identificação de fatos e normas objetivas que tenham uma base material racional.
Todas as decisões que Trump e sua equipe estão tomando em relação ao conflito na Ucrânia correspondem a esse paradigma. Primeiramente, há um abandono completo de qualquer estratégia de “multilateralismo”. O protagonista é o Estado-nação dos EUA, e os supostos “aliados” (leia-se vassalos) não têm mais importância alguma.
Em segundo lugar, os regimes políticos que sejam ou não vigentes nos Estados envolvidos nesse conflito não têm importância alguma, pois os interesses do Estado-nação dos EUA são primordiais. O principal adversário dos EUA é a China, não por causa de seu regime político, mas por causa de seu potencial econômico. A Rússia não é adversária dos interesses dos EUA, portanto, deve-se fazer as pazes com a Rússia, dar a ela o que ela quer (status de potência regional) e concentrar-se na China. Além disso, a aproximação entre os EUA e a Rússia pode enfraquecer os laços entre a Rússia e a China. É semelhante ao que Henry Kissinger (outro realista) fez, mas ao contrário: ele conduziu uma aproximação com a China de Mao a fim de contribuir para seu confronto com a URSS.
A terceira consequência, e talvez a mais importante, da adoção do realismo por parte de Trump é o fato de que ela destrói o projeto globalista por dentro. Colocar os interesses do estado-nação dos EUA acima de tudo o leva a uma política de tarifas que constitui um ataque frontal ao livre comércio, que é um dos sustentáculos do globalismo. Sua política anti-imigração é um novo trunfo contra outro sustentáculo do globalismo: a “livre circulação de pessoas”.
Apesar de tudo isso, é preciso deixar claro que nem todos os itens da política externa dos EUA foram alterados por Trump, e alguns deles interferem diretamente nos interesses da Espanha e dos hispânicos.
Trump (assim como Biden) continua, ininterruptamente, a apoiar o Estado de Israel e sua política de extermínio e limpeza étnica contra os palestinos. O Estado sionista é uma cabeça de ponte para os interesses dos EUA no Oriente Médio, e eles não abrirão mão disso.
Um corolário importante dessa aliança é o eixo EUA-Israel-Marrocos, que afeta diretamente os interesses da Espanha. O Marrocos é um aliado preferencial dos EUA, que reconheceu sua soberania sobre o antigo Saara Espanhol. Em um hipotético conflito entre Espanha e Marrocos, já sabemos de que lado os EUA estariam.
Por outro lado, o projeto de uma plataforma continental hispano-americana ou ibero-americana (que incluiria o Brasil) teve e sempre terá seu principal inimigo nos EUA, e isso não mudou com Trump.
O autor sempre defendeu o paradigma da multipolaridade nas RI, um paradigma que não é o de Trump. Deixemos a análise de como esse paradigma pode se beneficiar ou ser prejudicado pela política internacional de Trump para outro artigo.
Fonte: Geopolitika.ru