A vitória de Trump nos EUA não representa apenas um acidente de percurso, mas uma tentativa de revolução conservadora dotada de sua própria metapolítica, bem como de uma perspectiva geopolítica particular. É necessário entender tudo isso.
Atualmente, todos na Rússia e ao redor do mundo estão claramente intrigados com o que está acontecendo nos Estados Unidos. O presidente eleito Donald Trump e seus assessores mais próximos, especialmente o fervoroso Elon Musk, desencadearam um nível de atividade quase revolucionário. Embora Trump ainda não tenha assumido o cargo – o que acontecerá em 20 de janeiro –, América e Europa já estão em turbulência. Trata-se de um tsunami ideológico e geopolítico que, para ser franco, ninguém antecipou. Muitos esperavam que, após ser eleito, Trump – assim como em seu primeiro mandato – adotasse uma política mais ou menos convencional, ainda que com seus traços carismáticos e espontâneos. Agora, pode-se afirmar com certeza: este não é o caso. Trump é uma revolução.
Portanto, justamente durante este período de transição, enquanto o poder está sendo transferido de Biden para Trump, faz sentido analisar seriamente: o que está acontecendo na América? É evidente que algo muito, muito importante está em curso.
O Estado Profundo e a História da Ascensão Americana
Primeiramente, é fundamental esclarecer como Trump conseguiu ser eleito, apesar do poder do chamado “Estado Profundo”. Isso requer uma análise mais ampla.
Nos Estados Unidos, o Estado Profundo representa o núcleo do aparato estatal e das elites ideológicas e econômicas intimamente ligadas a ele. No país, o governo, os negócios e a educação formam um sistema único de vasos comunicantes, em vez de estruturas estritamente separadas. A isso, podemos acrescentar as tradicionais sociedades secretas e clubes norte-americanos, que historicamente serviram como centros de comunicação para as elites. Todo esse complexo é comumente referido como “Estado Profundo”.
Além disso, os dois principais partidos – os Democratas e os Republicanos – não carregam ideologias particularmente distintas, mas expressam variações de um curso político e econômico unificado, incorporado pelo Estado Profundo. O equilíbrio entre eles serve apenas para ajustar questões secundárias, mantendo uma conexão com a sociedade em geral.
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA passaram por duas grandes fases: a era ideológica e geopolítica da Guerra Fria contra a URSS e o bloco socialista (1947–1991) e o período de unipolaridade ou o “fim da história” (1991–2024). Durante a primeira fase, os EUA foram um parceiro igualitário da URSS; na segunda, derrotaram completamente seu oponente, tornando-se a única superpotência global, tanto política quanto ideologicamente. O Estado Profundo, e não os partidos ou outras instituições, tornou-se o principal agente desse curso imutável em direção à dominação global.
Desde os anos 1990, essa dominação assumiu cada vez mais a forma de uma ideologia liberal-progressista. Sua fórmula combina os interesses do grande capital internacional com uma cultura individualista e progressista. Essa estratégia foi amplamente adotada pelo Partido Democrata, enquanto entre os republicanos foi sustentada pelos “neocons”. Sua ideia central era a crença em um crescimento linear e contínuo: da economia americana, da economia global e da disseminação planetária do liberalismo e de seus valores.
Parecia que todos os estados e sociedades do mundo haviam adotado o modelo americano – a democracia representativa, a economia de mercado capitalista, uma ideologia individualista e cosmopolita baseada nos direitos humanos, tecnologias digitais e uma cultura pós-moderna ocidentalizada. O Estado Profundo dos EUA abraçou essa agenda e atuou como seu principal garantidor, assegurando sua implementação.
Samuel Huntington e o Convite para Ajustar o Rumo
Já no início da década de 1990, alguns intelectuais americanos começaram a manifestar preocupações sobre a viabilidade a longo prazo dessa abordagem. A formulação mais clara dessas preocupações veio de Samuel Huntington, que previu um “choque de civilizações”, a ascensão da multipolaridade e a eventual crise da globalização centrada no Ocidente.
Huntington propôs o fortalecimento da identidade americana e a consolidação das demais sociedades ocidentais dentro de uma única civilização ocidental — não mais global, mas regional. No entanto, naquela época, essa perspectiva foi amplamente descartada como excessivamente cautelosa. O deep state apoiava totalmente os otimistas do “fim da história”, como o principal opositor intelectual de Huntington, Francis Fukuyama.
Isso explica a continuidade da política presidencial dos EUA de Clinton, Bush e Obama até Biden, com o primeiro mandato de Trump sendo uma anomalia. Tanto democratas quanto republicanos — exemplificados por George W. Bush entre os republicanos — expressavam a estratégia política e ideológica unificada do deep state: globalismo, liberalismo, unipolaridade e hegemonia.
No entanto, a partir do início dos anos 2000, esse otimismo globalista começou a enfrentar sérios desafios.
- A Rússia, sob Vladimir Putin, deixou de seguir cegamente a liderança dos EUA e começou a fortalecer sua soberania. Isso se tornou particularmente evidente após o discurso de Putin em Munique em 2007, os eventos na Geórgia em 2008, a anexação da Crimeia em 2014 e, especialmente, com o início da Operação Militar Especial (OME) em 2022. Tudo isso contrariava completamente os planos dos globalistas.
- A China, especialmente sob Xi Jinping, passou a adotar uma política independente, aproveitando-se da globalização, mas impondo limites rigorosos sempre que sua lógica entrava em conflito com os interesses nacionais da China ou ameaçava sua soberania.
- No mundo islâmico, os protestos esporádicos contra o Ocidente cresceram — variando entre aspirações por maior independência e a rejeição total dos valores liberais impostos.
- Na Índia, com a eleição do primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalistas de direita e tradicionalistas chegaram ao poder.
- Os sentimentos anticoloniais aumentaram na África, e os países da América Latina começaram a afirmar cada vez mais sua independência em relação aos EUA e ao Ocidente como um todo.
Isso culminou na formação do BRICS como um protótipo de sistema internacional multipolar que opera amplamente independente do Ocidente.
O deep state americano enfrentava um sério dilema: deveria continuar insistindo em sua agenda, ignorando as crescentes tendências antagonistas e tentando suprimi-las por meio da dominação informacional, da imposição de narrativas e da censura direta nos meios de comunicação e redes sociais? Ou deveria reconhecer essas tendências e buscar novas respostas, ajustando sua estratégia fundamental a uma realidade cada vez mais em desacordo com as avaliações subjetivas de alguns analistas americanos?
Trump e o Deep State
A primeira presidência de Trump parecia um acidente — uma falha técnica. Sim, Trump chegou ao poder impulsionado por uma onda de populismo, contando com o apoio de segmentos da população dos EUA que rejeitavam cada vez mais a agenda globalista e a cultura woke (a ideologia de esquerda-liberal que defende o hiperindividualismo, a política de gênero, o feminismo, os direitos LGBTQ, a cultura do cancelamento e a promoção da imigração legal e ilegal, entre outros elementos). Foi a primeira vez que o termo “deep state” ganhou destaque no discurso público dos EUA, evidenciando a crescente contradição entre essa estrutura e os sentimentos da população em geral.
No entanto, entre 2016 e 2020, o deep state não levou Trump a sério, e o próprio Trump, durante seu mandato, não conseguiu implementar reformas estruturais. Após o fim de seu primeiro mandato, o deep state apoiou Biden e o Partido Democrata, conduzindo as eleições com uma pressão sem precedentes sobre Trump, a quem consideravam uma ameaça a todo o curso globalista e unipolar que os EUA vinham seguindo há décadas — com um certo grau de sucesso. Isso explica o slogan da campanha de Biden: “Build Back Better”, ou seja, “Reconstruir ainda melhor.” Esse lema implicava que, após a “disrupção” do primeiro mandato de Trump, era necessário retomar a implementação da agenda liberal globalista.
No entanto, tudo mudou entre 2020 e 2024. Embora Biden, apoiado pelo deep state, tenha restaurado o curso anterior, desta vez ele precisava provar que todos os indícios de uma crise do globalismo não passavam de “propaganda dos adversários,” “trabalho de agentes de Putin ou da China,” ou “esquemas de grupos marginais internos.” Com o apoio da elite do Partido Democrata e dos neoconservadores, Biden tentou apresentar a situação como se não houvesse uma crise real, como se não existissem problemas genuínos e como se a realidade não estivesse em crescente contradição com as ideias e projetos dos globalistas liberais.
Em vez disso, argumentou que era necessário intensificar a pressão sobre os opositores ideológicos: impor uma derrota estratégica à Rússia, conter a expansão regional da China (a Belt and Road Initiative), sabotar o BRICS, reprimir os movimentos populistas nos EUA e na Europa, e até eliminar Trump (legal, política e fisicamente). Isso resultou no incentivo a métodos terroristas e no endurecimento da censura da esquerda liberal. Sob Biden, o liberalismo efetivamente se tornou um sistema totalitário.
Biden perde a confiança do Deep State
No entanto, Biden não conseguiu cumprir esses objetivos por uma série de razões.
A Rússia, sob Putin, não capitulou e resistiu a uma pressão sem precedentes, incluindo sanções, o conflito com o regime ucraniano apoiado por todos os países ocidentais, desafios econômicos e uma drástica redução nas exportações de recursos naturais. Apesar disso, Putin prevaleceu, e Biden não conseguiu alcançar a vitória sobre a Rússia.
A China manteve-se firme, continuando sua guerra comercial com os EUA sem sofrer perdas críticas.
O governo de Modi na Índia não pôde ser derrubado durante a campanha eleitoral.
O BRICS realizou uma cúpula espetacular em Kazan, em território russo, em meio ao confronto com o Ocidente, marcando o avanço da multipolaridade.
As ações de Israel em Gaza e no Líbano escalaram para um genocídio, minando qualquer retórica globalista. Biden não teve escolha a não ser apoiar essas ações, o que desacreditou ainda mais sua administração.
E, o mais importante, Trump não desistiu. Ele consolidou o Partido Republicano em uma escala sem precedentes, continuando e até radicalizando sua agenda populista.
Com o tempo, o movimento de Trump desenvolveu-se em uma ideologia distinta. Sua premissa central era que o globalismo havia fracassado, e sua crise não era uma invenção dos adversários ou mera propaganda, mas sim o estado real das coisas. Consequentemente, os EUA deveriam seguir a abordagem de Samuel Huntington em vez da de Francis Fukuyama, retornar ao realismo e reviver sua identidade essencialmente americana (e, de forma mais ampla, ocidental). Isso envolve abandonar a cultura woke e os experimentos liberais das últimas décadas, redefinindo a ideologia americana para suas raízes clássicas liberais, com uma ênfase significativa no nacionalismo e no protecionismo. Esse projeto ideológico foi encapsulado no slogan de Trump: “Make America Great Again” (MAGA).
O Deep State Muda de Prioridades
Como Trump conseguiu afirmar sua posição dentro do cenário ideológico dos EUA, o deep state evitou permitir que os democratas o eliminassem. Biden (parcialmente devido ao seu declínio mental) falhou no teste do “Build Back Better”, não conseguiu convencer ninguém da viabilidade contínua do globalismo e, assim, o deep state reconheceu a realidade da crise do globalismo e a necessidade de abandonar os métodos antigos de promovê-lo.
Por essa razão, o deep state permitiu a reeleição de Trump e até apoiou a formação de um grupo radical de trumpistas ideológicos. Esse grupo inclui figuras proeminentes como Elon Musk, JD Vance, Peter Thiel, Robert F. Kennedy Jr., Tulsi Gabbard, Kash Patel, Pete Hegseth, Tucker Carlson e até mesmo Alex Jones.
O ponto-chave é o seguinte: ao reconhecer Trump, o deep state americano reconheceu a necessidade objetiva de revisar a estratégia global dos EUA em termos de ideologia, geopolítica, diplomacia e outras áreas. A partir de agora, tudo está sujeito a revisão.
Trump e o trumpismo, e de forma mais ampla o populismo, não são mais vistos como falhas técnicas ou anomalias, mas sim como marcadores de uma crise genuína e fundamental do globalismo e, além disso, de seu fim.
Este atual mandato de Trump não é apenas mais um episódio da alternância entre democratas e republicanos — ambos tradicionalmente seguindo uma agenda unificada apoiada pelo deep state, independentemente dos resultados eleitorais. Em vez disso, ele marca o início de um novo capítulo na história da hegemonia americana: uma profunda reavaliação de sua estratégia, ideologia, apresentação e estrutura.
Pós-liberalismo
Vamos agora analisar os contornos emergentes do trumpismo como uma ideologia, passo a passo. O vice-presidente JD Vance identifica-se abertamente como “pós-liberal”. Isso significa uma ruptura completa e total com o liberalismo de esquerda que dominou os EUA nas últimas décadas.
O deep state, que geralmente carece de uma ideologia coerente própria, agora parece disposto a experimentar uma revisão significativa da ideologia liberal, senão sua completa destruição. Diante de nossos olhos, o trumpismo está assumindo as características de uma ideologia distinta e independente, muitas vezes em oposição direta ao liberalismo de esquerda que predominou até agora.
O trumpismo como ideologia não é monolítico e contém múltiplos polos. No entanto, seu quadro geral está se tornando cada vez mais claro: Rejeição ao globalismo, liberalismo de esquerda (progressismo) e cultura woke
O trumpismo rejeita de forma firme e aberta o globalismo — a visão de um único mercado e espaço cultural global, onde as fronteiras nacionais se tornam cada vez mais difusas e os Estados-nações gradualmente cedem seus poderes a órgãos supranacionais (como a União Europeia). Os globalistas acreditam que isso levará, em breve, à criação de um governo mundial, como defendido abertamente por figuras como Klaus Schwab, Bill Gates e George Soros. Nessa visão, todas as pessoas do mundo se tornariam cidadãos globais com direitos iguais dentro de uma estrutura econômica, tecnológica, cultural e social unificada. As ferramentas desse processo, ou do chamado “Great Reset”, incluem pandemias e agendas ambientais.
Para o trumpismo, tudo isso é completamente inaceitável. Em vez disso, ele defende a preservação dos Estados-nações ou sua integração em civilizações — pelo menos dentro do contexto da civilização ocidental, na qual os EUA assumem a liderança. Mas essa liderança não se baseia mais na bandeira da ideologia globalista liberal; em vez disso, fundamenta-se nos valores do trumpismo. Isso se assemelha muito ao argumento original de Huntington sobre a consolidação do Ocidente em oposição a outras civilizações.
Rejeição ao Globalismo
O trumpismo se alinha mais de perto com a escola do realismo nas relações internacionais, que reconhece a soberania nacional e não exige sua abolição. A rejeição ao globalismo também implica uma crítica às campanhas de vacinação e às agendas ambientais. Figuras como Bill Gates e George Soros são retratadas como personificações do mal absoluto dentro desse contexto.
Anti-Woke
Os trumpistas também se opõem firmemente à ideologia woke, que eles definem como englobando:
- A política de gênero e a legalização de perversões;
- A teoria crítica da raça, que busca que grupos historicamente oprimidos se vinguem das populações brancas;
- O incentivo à migração, incluindo a imigração ilegal;
- A cultura do cancelamento e a censura da esquerda liberal;
- O pós-modernismo.
Em vez desses valores “progressistas” e antitradicionais, o trumpismo defende um retorno aos valores tradicionais (no contexto dos EUA e da civilização ocidental). Assim, uma ideologia anti-woke está sendo construída.
Por exemplo:
- O conceito de múltiplos gêneros é substituído pela declaração da existência de apenas dois sexos naturais. Pessoas transgênero e a comunidade LGBTQ+ são vistas como desvios marginalizados, e não como normas sociais.
- O feminismo e a crítica severa à masculinidade e ao patriarcado são rejeitados. Consequentemente, a masculinidade e o papel dos homens na sociedade são restaurados às suas posições centrais. Os homens não devem mais sentir necessidade de se desculpar por serem homens. Por essa razão, o trumpismo é, às vezes, chamado de “bro-revolução” ou “revolução dos homens.”
A teoria crítica da raça é combatida por uma reabilitação da civilização branca. No entanto, formas extremas de racismo branco são geralmente restritas a movimentos marginais dentro do trumpismo. Mais frequentemente, isso resulta na rejeição da crítica obrigatória aos brancos, mantendo uma atitude relativamente tolerante em relação aos não brancos, desde que estes não exijam arrependimento compulsório dos brancos.
Contra a Imigração
O trumpismo exige limites rigorosos à imigração e a expulsão completa de imigrantes ilegais. A deportação de imigrantes indocumentados é vista como uma necessidade. Os trumpistas defendem uma identidade nacional unificada, afirmando que qualquer pessoa que imigre para sociedades ocidentais, oriunda de outras civilizações e culturas, deve adotar os valores tradicionais da nação anfitriã. O multiculturalismo liberal, que permite que os migrantes permaneçam culturalmente autônomos, é totalmente rejeitado.
Uma retórica particularmente dura é dirigida contra os imigrantes ilegais da América Latina, cujo fluxo é visto como uma ameaça ao equilíbrio étnico de estados inteiros, onde os latinos estão se tornando a maioria. As comunidades islâmicas, que também estão crescendo e resistem amplamente às normas e exigências ocidentais, são outra fonte de preocupação — especialmente porque os liberais não apenas deixaram de exigir sua assimilação, mas também incentivaram ativamente que essas comunidades se afirmassem.
Economicamente, os trumpistas veem com extrema hostilidade a atividade chinesa nos EUA. Muitos defendem a expropriação total de propriedades e negócios de propriedade chinesa dentro do país.
Os afro-americanos, em geral, não despertam hostilidade significativa, mas quando se organizam em movimentos políticos agressivos, como o Black Lives Matter (BLM), e transformam criminosos ou viciados em heróis (como no caso de George Floyd), os trumpistas respondem de forma firme e decisiva. É provável que a narrativa em torno de Floyd e sua “canonização” seja revista em breve.
Contra a Censura Liberal-Progressista
Os trumpistas estão unidos em sua oposição à censura liberal-progressista. Sob o pretexto de correção política e combate ao extremismo, os liberais criaram um sistema abrangente de manipulação da opinião pública, eliminando efetivamente a liberdade de expressão. Isso se aplica tanto à grande mídia quanto às redes sociais sob seu controle.
Qualquer pessoa que se desvie minimamente da agenda liberal-progressista é imediatamente rotulada como “extrema-direita”, “racista”, “fascista” ou “nazista”, sendo submetida à exclusão, ao deplatforming e até mesmo à perseguição legal, que em alguns casos pode levar à prisão.
Essa censura tornou-se gradualmente totalitária. O trumpismo — assim como outros movimentos antiglobalistas, como os da Rússia ou as correntes populistas europeias — tornou-se seu principal alvo. As elites liberais passaram a considerar abertamente os cidadãos comuns como elementos ignorantes e inconscientes da sociedade, redefinindo a democracia não mais como o “governo da maioria”, mas como o “governo das minorias”.
Qualquer coisa que divergisse da agenda woke liberal-progressista passou a ser rotulada como “fake news”, “propaganda de Putin”, teorias da conspiração ou visões extremistas perigosas que exigiam medidas punitivas. Como resultado, a zona de discurso aceitável foi drasticamente reduzida, com qualquer posicionamento fora do dogma woke sendo considerado inaceitável e sujeito à supressão. Isso se estendeu a todos os aspectos do globalismo liberal, incluindo questões de gênero, imigração, teoria crítica da raça, vacinação e assim por diante.
Na prática, o liberalismo tornou-se totalitário e absolutamente intolerante, com a “inclusividade” sendo definida como transformar todas as pessoas em liberais.
O trumpismo rejeita radicalmente tudo isso, exigindo a restauração da liberdade de expressão, que foi gradualmente eliminada ao longo das últimas décadas. Segundo o trumpismo, nenhuma ideologia deve ter tratamento preferencial, e a proteção da liberdade de expressão em todo o espectro ideológico — da extrema-direita à extrema-esquerda — é a base de sua ideologia.
Contra o Pós-Modernismo
Os trumpistas também rejeitam o pós-modernismo, geralmente associado às tendências culturais e artísticas progressistas de esquerda. O trumpismo ainda não desenvolveu seu próprio estilo cultural, mas concentra-se na desconstrução da hegemonia da cultura pós-modernista e na promoção da diversificação dos interesses culturais.
Em oposição ao niilismo inerente ao pós-modernismo, os trumpistas defendem valores tradicionais, como religião, esportes, família e moralidade.
A maioria dos apoiadores de Trump não são intelectuais sofisticados; eles demandam, sobretudo, uma reavaliação da hegemonia pós-modernista e a reversão da tendência de elevar a arte degenerada como norma.
No entanto, alguns ideólogos trumpistas propõem “reapropriar-se” do pós-modernismo dos liberais-progressistas e construir um “pós-modernismo alternativo”, que poderia ser descrito como um “pós-modernismo de direita”. Eles sugerem o uso da ironia e da desconstrução para virar essas ferramentas contra as fórmulas e cânones da esquerda liberal — da mesma forma que foram anteriormente usadas contra tradicionalistas e conservadores.
Durante a primeira campanha presidencial de Trump, seus apoiadores se reuniram em plataformas como o 4chan, produzindo memes irônicos e discursos absurdos que zombavam e provocavam intencionalmente os liberais. Alguns pensadores, como Curtis Yarvin ou Nick Land, foram ainda mais longe, promovendo a ideia de uma “Ilustração Sombria” (Dark Enlightenment), defendendo uma interpretação antiliberal do mundo, chegando até a sugerir o estabelecimento de uma monarquia nos EUA.
De Hayek a Soros e de Volta Outra Vez
Do ponto de vista dos liberais-progressistas, a história política da humanidade no último século avançou do liberalismo clássico para seu extremo esquerdista e até mesmo de extrema esquerda. Os liberais clássicos toleravam desvios, mas apenas em nível individual, nunca os elevando à condição de normas ou leis. Os liberais progressistas, por outro lado, normalizaram tais desvios, chegando a consagrá-los na legislação, enquanto davam continuidade ao projeto liberal clássico de desmantelamento de qualquer forma de identidade coletiva, levando o individualismo ao seu extremo lógico.
Essa progressão pode ser traçada através de três figuras simbólicas da ideologia liberal do século XX:
- Friedrich Hayek, o fundador do neoliberalismo, defendia a rejeição de qualquer ideologia que prescrevesse o que os indivíduos deveriam pensar ou fazer. Representava o antigo liberalismo clássico, que celebrava a liberdade individual absoluta e um mercado irrestrito.
- Karl Popper, aluno de Hayek, expandiu essa crítica às ideologias totalitárias, focando no fascismo e no comunismo, mas também estendendo-a a figuras como Platão e Hegel. Nos escritos de Popper, emergiu um tom claramente autoritário. Ele rotulava os liberais e defensores do liberalismo como membros de uma “sociedade aberta”, enquanto classificava todos os demais como “inimigos da sociedade aberta”, prescrevendo sua eliminação — até mesmo preventiva — antes que pudessem prejudicar o avanço da “sociedade aberta”.
- George Soros, aluno de Popper, levou essa abordagem ainda mais longe, defendendo a derrubada de qualquer regime antiliberal, apoiando os movimentos mais radicais — muitas vezes terroristas — que se opunham a tais regimes e punindo, criminalizando e eliminando implacavelmente os opositores da “sociedade aberta” no próprio Ocidente. Soros declarou figuras como Trump, Putin, Modi, Xi Jinping e Orbán como seus inimigos pessoais e os combateu ativamente, utilizando a imensa riqueza acumulada por meio de especulação financeira.
Soros tornou-se o arquiteto das revoluções coloridas no Leste Europeu, no espaço pós-soviético, no mundo islâmico e até no Sudeste Asiático e na África. Ele apoiou integralmente as restrições draconianas às liberdades pessoais durante a pandemia de COVID-19, promovendo a vacinação em massa obrigatória e perseguindo severamente qualquer dissidência. Assim, o novo liberalismo tornou-se abertamente totalitário, extremista e até mesmo terrorista por natureza.
O trumpismo propõe reverter essa sequência — de Hayek a Popper e a Soros — e retornar ao início. Ele defende um retorno ao liberalismo clássico anti-totalitário de Hayek, que promovia a liberdade absoluta de pensamento e um mercado de laissez-faire. Alguns trumpistas vão ainda mais longe, pedindo um ressurgimento do tradicionalismo americano profundo, anterior à Guerra Civil.
As Divisões Internas do Trumpismo
Nossa análise delineia os contornos amplos da ideologia do trumpismo. No entanto, mesmo dentro desse quadro geral, algumas facções e tensões começam a surgir, às vezes de forma bastante antagonista.
Uma linha divisória recentemente descrita é o “conflito entre tecnocratas de direita e tradicionalistas de direita” — ou a disputa entre a “direita tecnológica” (tech right) e a “direita tradicionalista” (trad right).
O líder indiscutível e símbolo dos tecnocratas de direita é Elon Musk. Musk combina o futurismo tecnológico — marcado por suas famosas promessas de colonizar Marte e expandir os limites da inovação — com valores conservadores e apoio ativo ao populismo de direita. Sua posição é amplamente conhecida e acompanhada de perto em todo o Ocidente.
Antes mesmo da posse de Trump, Musk começou a promover ativamente uma nova agenda conservadora de direita em sua plataforma X, buscando substituir as redes globalistas de Soros. Onde Soros costumava subornar políticos e orquestrar mudanças de regime em todo o mundo, Musk agora persegue táticas semelhantes — mas em favor dos antiglobalistas e de populistas europeus como Alice Weidel, líder do Alternativa para a Alemanha (AfD), Nigel Farage no Reino Unido e Marine Le Pen na França.
No entanto, dentro dos EUA, a agenda de Musk enfrenta oposição de uma facção liderada por Steve Bannon, ex-conselheiro de segurança nacional de Trump durante seu primeiro mandato. Bannon e seus aliados representam os tradicionalistas de direita. O conflito emergiu em torno da concessão de residência a imigrantes legais — uma política apoiada por Musk, mas fortemente rejeitada por Bannon.
Bannon articulou os princípios do nacionalismo americano, exigindo procedimentos mais rigorosos para a concessão da cidadania e cunhou o slogan: “America for Americans!” Muitos apoiaram Bannon, que criticou Musk por ter se alinhado recentemente aos conservadores, enquanto os nacionalistas americanos lutavam por esses valores há décadas.
Essa divergência destaca as crescentes tensões dentro do trumpismo entre o globalismo de direita, o futurismo e a tecnocracia de um lado, e o nacionalismo de direita do outro.
A Divisão Pró-Israel e Anti-Israel
Outra linha de fratura emergiu entre os trumpistas pró-Israel e anti-Israel.
O próprio Trump, juntamente com o vice-presidente JD Vance e Pete Hegseth (indicado como Secretário de Defesa na nova administração de Trump), é um defensor ferrenho de Israel. A postura pró-Israel de Trump e seu apoio inabalável a Netanyahu provavelmente contribuíram para seu sucesso eleitoral. A influência do lobby judaico continua extraordinariamente forte nos EUA.
No entanto, figuras como John Mearsheimer, Jeffrey Sachs e o jornalista Alex Jones — realistas proeminentes no campo de Trump — se opõem a esse aspecto do trumpismo. Eles argumentam que os EUA devem adotar uma abordagem mais pragmática para o Oriente Médio, reconhecendo que os interesses americanos muitas vezes divergem dos de Israel.
Curiosamente, pessoas próximas a Trump frequentemente mantêm posições contraditórias sobre essas questões. Por exemplo, Alex Jones, crítico de Israel, apoia Musk, enquanto Steve Bannon, opositor de Musk, alinha-se com o campo pró-Israel.
Teoria Geracional
Uma breve discussão sobre a teoria geracional, desenvolvida por William Strauss e Neil Howe, pode ajudar a esclarecer o lugar do trumpismo na história política e social dos EUA.
De acordo com essa teoria, a história dos EUA consiste em ciclos recorrentes de aproximadamente 85 anos (cerca da duração de uma vida humana), divididos em quatro “viradas” ou eras, semelhantes às estações do ano:
- “Alta” (Primavera): Um período de mobilização coletiva, otimismo e coesão social;
- “Despertar” (Verão): Um foco na vida interior, espiritualidade e individualismo;
- “Desintegração” (Outono): Fragmentação social, materialismo e enfraquecimento das instituições;
- “Crise” (Inverno): Um período de colapso social, caracterizado pela incompetência dos líderes e pela decadência cultural.
Dentro desse quadro, o atual período de “crise” teria começado no início dos anos 2000, culminando em eventos como o 11 de setembro, intervenções militares, a pandemia de COVID-19 e a guerra na Ucrânia. A eleição de Trump marca o fim dessa “crise” e o início de um novo ciclo — um retorno à “alta”.
A Geopolítica do Trumpismo
Agora, passemos a outra dimensão do trumpismo — sua política externa. A mudança essencial é o afastamento das perspectivas globalistas em favor do centrismo americano e do expansionismo dos EUA.
Um exemplo vívido disso são as declarações de Trump sobre a incorporação do Canadá como o 51º estado, a compra da Groenlândia, o controle sobre o Canal do Panamá e a renomeação do Golfo do México como “Golfo Americano”. Essas declarações refletem um realismo agressivo nas relações internacionais e, mais significativamente, um retorno à Doutrina Monroe após um século de domínio da doutrina globalista de Woodrow Wilson.
A Doutrina Monroe, articulada no século XIX, priorizava o controle dos EUA sobre o continente norte-americano e, em certa medida, sobre a América do Sul, visando reduzir e eventualmente eliminar a influência das potências europeias no Novo Mundo. A doutrina de Wilson, desenvolvida após a Primeira Guerra Mundial, deslocou o foco dos EUA como Estado-nação para uma missão global: espalhar as normas da democracia liberal em todo o mundo e manter suas estruturas em escala planetária. Durante a Grande Depressão, a doutrina wilsoniana perdeu força, mas ressurgiu após a Segunda Guerra Mundial, dominando a política externa americana por décadas.
Sob o globalismo wilsoniano, pouco importava quem controlava o Canadá, a Groenlândia ou o Canal do Panamá, pois todos operavam sob regimes liberal-democráticos alinhados com a elite globalista.
Hoje, Trump está alterando decisivamente esse foco. Os EUA, como Estado-nação, “voltaram a importar”, e exige-se que o Canadá, a Dinamarca e o Panamá se submetam não a um governo mundial (que Trump busca efetivamente desmantelar), mas a Washington, aos Estados Unidos e a Trump como o líder carismático do novo período de “alta”.
Um mapa dos EUA que inclua um 51º estado (caso Porto Rico seja considerado), a Groenlândia e o Canal do Panamá ilustra vividamente essa mudança do globalismo wilsoniano de volta à Doutrina Monroe.
O Desmantelamento dos Regimes Globalistas na Europa
Um dos desenvolvimentos mais surpreendentes, que já desconcertou o Ocidente, é a rapidez com que os trumpistas — sem ainda consolidar totalmente o poder — começaram a implementar seu programa internacionalmente. Por exemplo, a partir de dezembro de 2024, Elon Musk lançou campanhas ativas em sua plataforma X para remover líderes desfavoráveis à nova era dos Estados Unidos “trumpistas”.
Anteriormente, esse domínio pertencia às estruturas globalistas apoiadas por Soros. Musk, sem perder tempo, começou a executar estratégias semelhantes, mas desta vez em apoio a líderes populistas e antiglobalistas na Europa, como Alice Weidel, do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), Nigel Farage, no Reino Unido, e Marine Le Pen, na França.
O governo da Dinamarca, que resistiu à ideia de ceder a Groenlândia, e o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, que se opôs à possibilidade de seu país se tornar o 51º estado dos EUA, também foram alvos do intenso escrutínio de Musk.
Os globalistas europeus, que representam os remanescentes da antiga rede de poder, estão perplexos e manifestaram oposição à interferência direta dos EUA na política europeia. Em resposta, Musk e os trumpistas argumentaram, de forma razoável, que ninguém se opôs à interferência de Soros — então agora chegou a vez deles. Eles sustentam que, se os EUA são os mestres do mundo, a Europa deve obedecer a Washington, assim como fez sob Obama, Biden e Soros — ou seja, sob o deep state.
Musk, juntamente com figuras como Peter Thiel e Mark Zuckerberg, parece estar desmantelando o sistema globalista, começando pela Europa. Eles trabalham para levar ao poder líderes populistas que compartilham dos valores trumpistas. Alguns países, como a Hungria (sob Orbán), a Eslováquia (sob Fico) e a Itália (sob Meloni), encontraram maior facilidade em se alinhar a esse modelo, pois já defendem valores tradicionais e, em diferentes graus, se opõem aos globalistas.
Nos demais países europeus, os trumpistas parecem determinados a mudar governos por qualquer meio necessário — essencialmente empregando as mesmas táticas que seus predecessores globalistas. Por exemplo, Musk lançou uma campanha sem precedentes contra o líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Keir Starmer, retratando-o como um apologista e cúmplice de “gangues paquistanesas de estupradores imigrantes desenfreados no Reino Unido”. Com acusações tão duras vindas de Washington, a opinião pública britânica pode ser inclinada a acreditar nelas.
Uma campanha semelhante está tomando forma contra Emmanuel Macron, na França, e contra o establishment liberal da Alemanha, que tenta conter a ascensão meteórica do partido populista de direita AfD.
A Europa, que já era estritamente pró-americana, agora enfrenta uma mudança de curso ideológico, se não uma reversão completa. Essa mudança abrupta é profundamente perturbadora para os líderes europeus, que, como animais treinados obedientes em um circo, haviam aprendido a seguir cegamente as ordens de seus mestres. Agora, eles estão sendo pressionados a renunciar aos próprios princípios que serviram fielmente (com cinismo e falsidade) e a jurar lealdade a um novo quartel-general ideológico trumpista.
Alguns irão se submeter; outros irão resistir. Mas o processo já está em andamento — os trumpistas estão desmantelando liberais e globalistas na Europa. Mais uma vez, isso segue as recomendações de Samuel Huntington. Os trumpistas buscam um Ocidente consolidado como uma civilização geopolítica e ideológica integrada. Essencialmente, o objetivo é criar um império americano plenamente desenvolvido.
Anti-China
Outro pilar-chave da política externa trumpista é a oposição à China. Para os trumpistas, a China representa grande parte do que eles desprezam no liberalismo progressista e no globalismo: ideologia de esquerda e internacionalismo. A China, em seus olhos, incorpora ambos, os quais tradicionalmente associam às políticas dos globalistas americanos.
Na realidade, a China moderna é muito mais complexa. No entanto, os trumpistas a veem como o principal antagonista porque o país soube aproveitar a globalização em seu benefício, estabelecendo-se como uma potência independente e adquirindo participações significativas na indústria, nos negócios e nas terras dos EUA. A terceirização da manufatura americana para o Sudeste Asiático, em busca de mão de obra mais barata, privou os EUA de sua soberania industrial, tornando-os dependentes de fontes externas.
Para os trumpistas, a ascensão da China é atribuída diretamente aos globalistas americanos, que são responsabilizados por essa situação. Assim, a China é vista como o principal inimigo.
Em comparação com a China, a Rússia é considerada uma preocupação menor e, em grande parte, saiu do foco de atenção. A China assumiu o centro do palco como o principal adversário. Mais uma vez, a responsabilidade pela desordem global é atribuída aos globalistas americanos.
Tendência Pró-Israel
Um segundo tema importante na política externa trumpista é o apoio a Israel e às suas facções de “extrema-direita”. Embora não haja consenso entre os trumpistas sobre essa questão (alguns são anti-Israel), a tendência dominante é pró-Israel. Isso está alinhado com as teorias protestantes do judaico-cristianismo, que preveem a chegada de um Messias judeu como um precursor da conversão dos judeus ao cristianismo, além de uma rejeição generalizada do Islã.
A islamofobia dos trumpistas reforça sua solidariedade com Israel. Em particular, eles veem o eixo xiita do Islã (Irã, xiitas iraquianos, houthis iemenitas e alauítas sírios) como uma ameaça primária. O trumpismo é fortemente anti-xiita e amplamente leal ao sionismo de direita.
Contra os Latinos
A questão dos latinos é uma das maiores preocupações na política interna dos EUA sob a perspectiva trumpista. Mais uma vez, as ideias de Samuel Huntington são relevantes aqui. Décadas atrás, Huntington identificou a imigração em massa da América Latina como a principal ameaça à identidade fundamental dos EUA, enraizada na cultura WASP (Protestante Anglo-Saxã Branca). Ele argumentava que, até certo ponto, os anglo-saxões conseguiam assimilar outros grupos étnicos no “caldeirão” americano, mas o influxo esmagador de latinos tornou isso impossível.
Como resultado, o sentimento anti-imigração nos EUA assumiu uma forma específica — oposição à imigração em massa, particularmente da América Latina. O Grande Muro, iniciado por Trump durante seu primeiro mandato, simbolizou essa posição.
Essa postura também molda a visão trumpista sobre os países latino-americanos. Essas nações são vistas, de forma generalizada, como “esquerdistas” e como fontes de imigração criminosa. O retorno à Doutrina Monroe enfatiza a necessidade de os EUA exercerem um controle mais rígido sobre a América Latina, aumentando as tensões com o México e impulsionando exigências por controle total do Canal do Panamá.
Esquecendo a Rússia, muito menos a Ucrânia
No cenário das relações internacionais, a Rússia ocupa um lugar relativamente insignificante na geopolítica trumpista. Os trumpistas não compartilham da russofobia ideológica e apriorística dos globalistas, mas também não nutrem um carinho especial pela Rússia.
Existe uma minoria dentro do trumpismo que considera a Rússia parte da civilização cristã branca e acredita que seria um erro empurrá-la ainda mais para os braços da China. No entanto, essas vozes são raras. Para a maioria, a Rússia simplesmente não importa. Economicamente, não é uma concorrente séria (ao contrário da China), não possui uma diáspora significativa nos EUA, e o conflito com a Ucrânia é visto como uma questão regional e secundária, pela qual os globalistas (os adversários dos trumpistas) são responsáveis.
Encerrar o conflito na Ucrânia seria desejável, mas, se uma solução rápida não for viável, os trumpistas estão dispostos a deixar o problema nas mãos dos regimes globalistas da Europa. A pressão resultante sobre esses regimes apenas os enfraqueceria, o que está alinhado com os objetivos trumpistas.
Para os trumpistas, a Ucrânia não tem importância estratégica e é vista principalmente como um meio de expor escândalos de corrupção ligados às administrações de Obama e Biden.
Embora os trumpistas geralmente não adotem uma posição pró-Rússia no conflito, eles também se opõem categoricamente ao nível sem precedentes de apoio concedido à Ucrânia durante a presidência de Biden.
Multipolaridade Passiva
A atitude do trumpismo em relação à multipolaridade é complexa. A ideia de um mundo multipolar não se alinha totalmente à ideologia trumpista. Enquanto os globalistas buscavam uma unipolaridade inclusiva, o trumpismo vislumbra uma nova hegemonia americana centrada nos valores tradicionais dos EUA: um Ocidente branco, cristão, com normas patriarcais, que valoriza simultaneamente a liberdade, o individualismo e o mercado.
Para aqueles que estão fora desse quadro, o trumpismo oferece duas opções: alinhar-se ao Ocidente ou permanecer na periferia da prosperidade e do desenvolvimento. Não se trata mais de inclusão, mas sim de uma exclusividade seletiva. O Ocidente se torna um clube ao qual os outros podem aspirar a ingressar, mas devem cumprir rigorosos requisitos para fazê-lo.
Os trumpistas são indiferentes a outras civilizações. Se insistirem em seguir seus próprios caminhos, problema deles. Mas aqueles que desejam se juntar ao Ocidente devem passar por testes rigorosos. Mesmo assim, provavelmente permaneceriam como participantes de segunda classe.
Dessa forma, o trumpismo não promove ativamente um mundo multipolar, mas o tolera passivamente. A multipolaridade é vista como um resultado inevitável do colapso globalista, e não como um objetivo positivo.
Multipolaridade Interna nos Estados Unidos
Um dos aspectos mais marcantes do trumpismo é seu foco intenso nas questões internas dos EUA. Os slogans “MAGA” (Make America Great Again) e “America First!” enfatizam essa prioridade. Assim, embora a multipolaridade seja frequentemente discutida no contexto das relações internacionais, os trumpistas enfrentam seus desafios principalmente dentro dos próprios EUA.
Na teoria multipolar, o mundo é dividido em várias grandes civilizações:
- Ocidental;
- Russo-eurasiana;
- Chinesa;
- Indiana;
- Islâmica;
- Africana;
- Latino-americana.
Essas civilizações formam uma heptarquia — sete polos, alguns plenamente realizados como Estados-civilização, enquanto outros existem de forma mais virtual ou emergente. A teoria civilizacional de Huntington ecoa essa estrutura, acrescentando uma civilização budista-japonesa ao quadro.
Na política externa, o trumpismo é amplamente indiferente à heptarquia, pois não tem um objetivo abrangente de sabotar a multipolaridade (como os globalistas) ou de promovê-la ativamente. No entanto, a multipolaridade se manifesta de forma acentuada na política interna dos EUA, onde diversas influências civilizacionais convergem por meio de comunidades imigrantes significativas.
Com o abandono das normas woke e da inclusividade, tornou-se novamente aceitável nos EUA discutir abertamente questões de raça, etnia e identidade religiosa. Isso leva a um confronto com a multipolaridade interna representada por várias diásporas.
- Diáspora latino-americana: Considerada a maior ameaça à identidade fundamental WASP dos EUA, pois a erosiona ativamente. Como resultado, os trumpistas demonizam esse fenômeno, destacando sua associação com máfias étnicas, imigração ilegal, cartéis de drogas, tráfico humano e outras questões.
- Diáspora chinesa: A crescente influência da China intensifica a sinofobia entre os trumpistas. Sendo a China o principal concorrente econômico e financeiro dos EUA, sua presença no cenário interno exacerba tensões.
- Comunidades islâmicas: Amplamente presentes nos EUA e no Ocidente, são tradicionalmente vistas com desconfiança pelos conservadores americanos. A islamofobia dos trumpistas reforça sua postura pró-Israel e sua oposição às influências do Oriente Médio nos EUA.
- Diáspora indiana: Ocupa uma posição única. Cresceu significativamente, especialmente no Vale do Silício, onde os indianos dominam setores-chave. Aliados importantes de Trump, como Vivek Ramaswamy, Kash Patel e a esposa indo-americana do vice-presidente JD Vance, demonstram uma abertura à influência indiana. Figuras como Tulsi Gabbard, que adotou o hinduísmo, também ilustram essa tendência. Apesar da oposição ocasional de nacionalistas trumpistas como Steve Bannon e Ann Coulter, a abordagem geral ao papel da Índia é positiva, sendo vista como parceira preferencial dos EUA no equilíbrio de forças contra a China.
- Comunidade afro-americana: Representa um desafio devido à sua história de consolidação racial em oposição aos brancos, algo incentivado pelos globalistas. Os trumpistas buscam combater isso promovendo uma maior assimilação, ao mesmo tempo em que resistem a esforços para estabelecer blocos raciais autônomos.
- Influência russa: Ao contrário de outros polos, a Rússia tem uma presença mínima nos EUA. Não há uma diáspora russa significativa, e os russos geralmente se integram na sociedade branca americana junto com outros grupos europeus. Assim, a presença da Rússia na multipolaridade interna dos EUA é insignificante.
Conclusão
O trumpismo não é apenas um movimento político; é uma ideologia plenamente desenvolvida. Ele abrange dimensões político-filosóficas e geopolíticas, revelando gradualmente seus contornos com mais clareza. Seus princípios fundamentais já estão evidentes, formando a base para uma reavaliação radical da identidade dos EUA e de seu papel no mundo.
Fonte: Geopolitika.ru