O Presidente Yoon Suk-yeol tentou um golpe de Estado em Seul, sem sucesso. Mas ele expôs as fragilidades de todo o modelo liberal-democrático neoiluminista.
Encerrada a janela ativa da tentativa de golpe de Estado na Coreia do Sul torna-se viável analisar os eventos mais detidamente para situá-los no contexto nacional e internacional.
O Presidente da Coreia do Sul, Yoon Suk-yeol decretou lei marcial extraordinária para poder combater genéricas “forças antiestatais” suspeitas de “colaborar com a Coreia do Norte”, e que estariam infiltradas no Legislativo, impedindo o funcionamento do governo.
Após decretar lei marcial, o Presidente enviou as Forças Armadas de noite para fechar o Parlamento e ocupar instalações dos meios de comunicação de massa para, com isso, impor uma censura militar e controlar o fluxo de informações.
A Constituição sul-coreana prevê a possibilidade de uma medida como uma lei marcial, mas ela precisaria ser aprovada pelo Parlamento para entrar em vigor. Como a “ameaça” usada para justificar a lei marcial estaria no próprio Parlamento, Yoon Suk-yeol não queria permitir qualquer votação.
Mas afinal, o Presidente da Coreia do Sul carecia de uma vontade suficientemente forte. Ele próprio titubeou e tremeu. As ordens não eram claras, as intenções não estavam explicadas, portanto as suas forças careciam de convicção. E, assim, deixaram os parlamentares entrarem no Parlamento e votarem contra a lei marcial.
A partir desse momento, Yoon Suk-yeol só poderia ou dobrar a aposta ou se render e ver o próprio fim. Ele acabou seguindo o caminho e agora veremos os desdobramentos. Ele possivelmente será impichado e preso.
Em primeiro lugar, a desistência do golpe não serve como testemunho da força da democracia liberal. Ao contrário, um homem maximamente impopular e com poucos aliados institucionais – contando apenas com parte das Forças Armadas e do Judiciário – ainda assim conseguiu iniciar uma lei marcial e ensaiar um golpe para o estabelecimento ditadura.
Fracassou apenas por falta de convicção. E se ele tivesse apoio popular, mesmo a falta de convicção não seria um impedimento definitivo já que o povo complementaria o labor dos militares. Nesse sentido, as lições dessa tentativa de golpe serão anotadas e servirão de exemplo para outras tentativas do tipo ao redor do mundo.
A realidade é que a consciência da insuficiência da democracia liberal é generalizada, e essa consciência se espalha tanto entre “democratas” quanto entre “liberais”, promovendo um divórcio metapolítico entre esses aspectos da pós-política.
Os liberais recorrem inicialmente à juristocracia para garantir a manutenção da despolitização da sociedade e represar ou suprimir a vontade popular. Os democratas recorrem imediatamente ao cesarismo como esforço para fazer encarnar num homem todos os anseios populares e romper com a tecnocracia tirânica das elites.
Mas em alguns países, a mera atuação legalista da juristocracia pode não bastar para garantir o controle dos liberais, e se a juristocracia não estiver em condições de ela própria implementar um estado de exceção, as forças liberais podem, também, recorrer a uma forma de cesarismo que restaure o “político” apenas para o fim de suprimir tendências iliberais.
O cesarismo, recordemos, não é “bom”. Ele é um fenômeno e uma ferramenta. É um fenômeno das politeias legalistas em crise e possui um caráter de “interlúdio”. Na medida em que o cesarismo representa simplesmente uma suspensão da normalidade, mas fundada em uma aceitação parcial da ordem hegemônica, como descreveu Gramsci, ela pode se revelar um fenômeno efêmero.
Spengler também, apesar das citações recortadas, não era otimista em relação aos fenômenos cesaristas em si, considerando-os um “últimos suspiro” do vigor de um povo antes do colapso final da civilização no inverno. Naturalmente, é possível que um “César” represente algo mais também, mas apenas na medida em que ele for capaz de transformar “reação” em “ação originária”, fundando uma nova ordem, com um novo vigor, uma nova normalidade e novos valores.
Portanto, a tentativa de golpe de Yoon Suk-yeol parece representar precisamente um esforço pós-liberal de implementar um estado de exceção para suprimir o dissenso pela tirania e, depois, retornar à normalidade pós-política. É indicativo disso o próprio fato de que o Presidente da Coreia do Sul pertence à ordem liberal-juristocrática de seu país, estando intimamente conectado com as carreiras do judiciário e da promotoria.
As causas superficiais dessa tentativa estão nas acusações de corrupção voltadas contra ele e sua esposa, mas as causas profundas envolvem o cansaço da população em relação a um governo que dá todos os indícios de querer usá-los de bucha-de-canhão em prol dos EUA. De um modo geral, a população sul-coreana está cansada da ocupação militar e do antagonismo desnecessário em relação à Coreia do Norte, bem como de ideias estapafúrdias como uma “OTAN do Pacífico”.
Para além disso, a Coreia do Sul em si é uma distopia pós-liberal. O país sofreu uma modernização espiritual, cultural, psicológica e econômica radical após a invasão estadunidense, e não sobrou pedra sobre pedra. Espiritualmente, os sul-coreanos caíram no niilismo e se tornaram prisioneiros das seitas mais estranhas e insanas do mundo. A cultura coreana tradicional praticamente desapareceu no sul e foi substituída por uma paródia asiática da indústria cultural estadunidense. Psicologicamente, todas as tendências negativas da sociedade estadunidense se entranharam com força na Coreia do Sul, do social-darwinismo à guerra dos sexos, passando pelo individualismo e o materialismo. E toda a economia está fundada em uma lógica tecnofeudal em que os chaebols controlam tudo e boa parte da população vive em favelas iguais às piores favelas brasileiras, se submetendo a trabalho escravo no qual, não raro, ainda há até punições corporais.
Em suma, a crise política sul-coreana possui elementos locais, mas apresenta também uma face da crise universal da democracia liberal. Mas as causas profundas da decadência sul-coreana não serão solucionadas com “golpes” desse tipo.
De resto, porém, as lições desse golpe de Estado fracassado serão estudadas em todo o mundo por outros pretendentes a “césares” da pós-modernidade.