O Estado Profundo (Derin Devlet)

O termo “Estado Profundo” foi popularizado nos últimos como um termo para designar as estruturas burocráticas permanentes que dirigiriam a coisa pública de forma independente da alternância eleitoral. Mas tem faltado uma análise mais rigorosa desse conceito.

O termo “Estado profundo” tem sido cada vez mais utilizado no discurso político atual, fazendo a transição do jornalismo para a linguagem política comum. No entanto, o próprio termo está se tornando um pouco vago, com diferentes interpretações emergindo. Portanto, é essencial examinar mais de perto o fenômeno descrito como “Estado profundo” e entender quando e onde esse conceito foi utilizado pela primeira vez. Essa expressão surgiu pela primeira vez na política turca nos anos 1990, descrevendo uma situação muito específica na Turquia. Em turco, “Estado profundo” é derin devlet. Isso é crucial porque todos os usos subsequentes desse conceito estão de alguma forma ligados ao significado original, que emergiu primeiro na Turquia.

Desde a era de Kemal Atatürk, a Turquia desenvolveu um movimento político-ideológico particular conhecido como kemalismo. No seu cerne está o culto a Atatürk (literalmente, “Pai dos Turcos”), o secularismo estrito (rejeitando o fator religioso não apenas na política, mas também na vida pública), o nacionalismo (enfatizando a soberania e a unidade de todos os cidadãos no diversificado panorama étnico da Turquia), o modernismo, o europeísmo e o progressismo. O kemalismo representava, em muitos aspectos, a antítese direta da cosmovisão e da cultura que haviam dominado no Império Otomano, tradicionalista e religioso. Desde a criação da Turquia, o kemalismo foi e, em grande parte, continua a ser o código dominante da política turca contemporânea. Foi com base nessas ideias que o Estado turco foi estabelecido sobre as ruínas do Império Otomano.

O kemalismo dominou abertamente durante o governo de Atatürk e, posteriormente, esse legado foi transmitido aos seus sucessores políticos. A ideologia do kemalismo incluía a democracia partidária ao estilo europeu, mas o poder real estava concentrado nas mãos da liderança militar do país, especialmente no Conselho de Segurança Nacional (CSN). Após a morte de Atatürk, a elite militar tornou-se a guardiã da ortodoxia ideológica do kemalismo. O CSN turco foi estabelecido em 1960, após um golpe militar, e seu papel cresceu significativamente após outro golpe em 1980.

É importante notar que muitos altos oficiais militares turcos e agentes de inteligência eram membros de lojas maçônicas, entrelaçando o kemalismo com a maçonaria militar. Sempre que a democracia turca se desviava do kemalismo — fosse para a direita ou para a esquerda — os militares anulavam os resultados eleitorais e iniciavam repressões.

No entanto, o termo derin devlet surgiu apenas nos anos 1990, precisamente quando o islamismo político crescia na Turquia. Foi aqui que, pela primeira vez na história turca, ocorreu um confronto entre a ideologia do Estado profundo e a democracia política. O problema surgiu quando islamistas, como Necmettin Erbakan e seu seguidor Recep Tayyip Erdoğan, propuseram uma ideologia política alternativa que desafiava diretamente o kemalismo. Essa mudança envolvia tudo: o Islã substituindo o secularismo, maiores laços com o Oriente ao invés do Ocidente e a solidariedade muçulmana em vez do nacionalismo turco. Em geral, o salafismo e o neo-otomanismo suplantaram o kemalismo. A retórica antimaçônica, particularmente de Erbakan, substituiu a influência dos círculos maçônicos militares seculares por ordens sufis tradicionais e organizações islâmicas moderadas, como o movimento Nur de Fethullah Gülen.

No ponto em que a ideia do “Estado profundo” (derin devlet) surgiu, ela se consolidou como uma imagem descritiva do núcleo militar-político kemalista na Turquia, que se via como estando acima da democracia política, anulando eleições, prendendo figuras políticas e religiosas, e posicionando-se acima dos procedimentos legais da política ao estilo europeu. A democracia eleitoral funcionava apenas quando estava alinhada com o curso militar kemalista. Quando surgia uma distância crítica, como no caso dos islamistas, o partido que vencia as eleições e até liderava o governo podia ser dissolvido sem explicação. Em tais casos, a “suspensão da democracia” não tinha base constitucional — o exército não eleito agia com base na “expediência revolucionária” para salvar a Turquia kemalista.

Posteriormente, Erdoğan iniciou uma guerra em grande escala contra o Estado profundo da Turquia, culminando no julgamento de Ergenekon em 2007, no qual quase toda a liderança militar da Turquia foi presa sob o pretexto de preparação de um golpe. No entanto, mais tarde, Erdoğan rompeu com seu antigo aliado, Fethullah Gülen, que estava profundamente enraizado em redes de inteligência ocidentais. Erdoğan restaurou o status de muitos membros do Estado profundo, formando uma aliança pragmática com eles, principalmente com base no nacionalismo turco em comum. O debate sobre o secularismo foi amenizado e adiado, e, especialmente após a tentativa de golpe fracassada pelos gulenistas em 2016, o próprio Erdoğan começou a ser referido como um “kemalista verde”. Apesar disso, a posição do Estado profundo na Turquia enfraqueceu durante o confronto com Erdoğan, e a ideologia do kemalismo foi diluída, embora tenha sobrevivido.

Características Principais do Estado Profundo

Da história política moderna da Turquia, podemos tirar várias conclusões gerais. Um Estado profundo pode existir e faz sentido onde:

  1. Existe um sistema eleitoral democrático;
  2. Acima deste sistema, existe uma entidade militar-política não eleita, ligada a uma ideologia específica (independente da vitória de qualquer partido em particular);
  3. Existe uma sociedade secreta (como do tipo maçônico) que une a elite militar-política.

O Estado profundo revela-se quando surgem contradições entre as normas democráticas formais e o poder dessa elite (caso contrário, a existência do Estado profundo permanece obscura). O Estado profundo é possível apenas em democracias liberais, mesmo que nominais. Em sistemas políticos abertamente totalitários, como o fascismo ou o comunismo, não há necessidade de um Estado profundo. Nesses casos, um grupo rigidamente ideológico se reconhece abertamente como a autoridade suprema, posicionando-se acima das leis formais. Sistemas de partido único enfatizam esse modelo de governança, não deixando espaço para oposição ideológica e política.

Somente em sociedades democráticas, onde supostamente não deveria existir uma ideologia dominante, o Estado profundo surge como um fenômeno de “totalitarismo oculto”, que manipula a democracia e os sistemas multipartidários à vontade. Comunistas e fascistas reconhecem abertamente a necessidade de uma ideologia dominante, tornando seu poder político e ideológico direto e transparente (potestas directa, como colocou Carl Schmitt). Os liberais negam possuir uma ideologia, mas na verdade têm uma. Portanto, influenciam os processos políticos com base no liberalismo como doutrina, mas apenas de maneira indireta, através de manipulação (potestas indirecta). O liberalismo revela sua natureza abertamente totalitária e ideológica apenas quando surgem contradições entre ele e os processos políticos democráticos.

Na Turquia, onde a democracia liberal foi importada do Ocidente e não se alinhou exatamente com a psicologia política e social da sociedade, o Estado profundo foi facilmente identificado e nomeado. Em outros sistemas democráticos, a existência dessa instância totalitária-ideológica, ilegítima e formalmente “inexistente”, tornou-se aparente mais tarde. No entanto, o exemplo turco tem grande importância para entender esse fenômeno. Aqui, tudo é cristalino — como um livro aberto.

Trump e a Descoberta do “Estado Profundo” nos EUA

Agora, vamos nos concentrar no fato de que o termo “Estado profundo” apareceu nos discursos de jornalistas, analistas e políticos dos EUA durante a presidência de Donald Trump. Mais uma vez, o contexto histórico desempenha um papel decisivo. Os apoiadores de Trump, como Steve Bannon e outros, começaram a falar sobre como Trump, possuindo os direitos constitucionais para determinar o curso da política americana como presidente eleito, encontrou obstáculos inesperados que não podiam ser simplesmente atribuídos à oposição do Partido Democrata ou à inércia burocrática. Gradualmente, à medida que essa resistência se intensificava, Trump e seus apoiadores começaram a se ver não apenas como representantes da agenda republicana, tradicional para políticos e presidentes anteriores do partido, mas como algo mais. Seu foco em valores tradicionais e crítica à agenda globalista atingiu um nervo não apenas com seus oponentes políticos diretos, os “progressistas” e o Partido Democrata, mas também com uma entidade invisível e inconstitucional, capaz de influenciar de maneira coordenada e intencional todos os principais processos da política americana — finanças, grandes negócios, mídia, agências de inteligência, o judiciário, principais instituições culturais, instituições educacionais de elite, e assim por diante.

Parecia que as ações do aparato governamental como um todo deveriam seguir o curso e as decisões de um presidente dos Estados Unidos eleito legalmente. Mas descobriu-se que não era bem assim. Independente de Trump, em algum nível superior de “poder das sombras”, processos incontroláveis estavam em andamento. Assim, o “Estado profundo” foi descoberto nos próprios EUA.

Nos EUA, assim como na Turquia, existe, sem dúvida, uma democracia liberal. Mas a existência de uma entidade militar-política não eleita, atada a uma ideologia específica (independente da vitória de qualquer partido em particular) e possivelmente parte de uma sociedade secreta (como uma organização do tipo maçônico), era algo completamente inesperado para os americanos. Portanto, o discurso sobre o “Estado profundo” durante esse período tornou-se uma revelação para muitos, transformando-se de uma “teoria da conspiração” em uma realidade política visível.

É claro que o assassinato não resolvido de John F. Kennedy, a provável eliminação de outros membros de seu clã, inúmeras inconsistências em torno dos trágicos eventos de 11 de setembro, e vários outros segredos não solucionados na política americana, levaram os americanos a suspeitar da existência de algum tipo de “poder oculto” nos EUA. Teorias da conspiração populares propuseram os candidatos mais improváveis — desde cripto-comunistas até reptilianos e Anunnaki. Mas a história da presidência de Trump, e ainda mais, sua perseguição após a derrota para Biden e as duas tentativas de assassinato durante a campanha eleitoral de 2024, tornam necessário levar o “estado profundo” nos EUA a sério. Já não é algo que possa ser descartado. Ele definitivamente existe, atua, é ativo, e… governa.

Conselho de Relações Exteriores: Rumo à Criação de um Governo Mundial

Em busca de uma explicação para esse fenômeno, devemos primeiro nos voltar para as organizações políticas dos EUA do século 20 que eram mais ideologicamente motivadas e procuravam operar além das linhas partidárias. Se tentarmos encontrar o núcleo do “Deep State” entre os militares, agências de inteligência, magnatas de Wall Street, magnatas da tecnologia e outros, é improvável que cheguemos a uma conclusão satisfatória. A situação ali é muito individualizada e difusa. Antes de mais nada, a atenção deve ser dada à ideologia.

Deixando de lado as teorias da conspiração, duas entidades se destacam como mais adequadas para esse papel: o CFR (Conselho de Relações Exteriores), fundado na década de 1920 por apoiadores do presidente Woodrow Wilson, um fervoroso defensor do globalismo democrático, e o movimento dos neoconservadores americanos, surgido mais tarde a partir do outrora marginal meio trotskista, que gradualmente ganhou influência significativa nos EUA. Tanto o CFR quanto os neoconservadores são independentes de qualquer partido. Seu objetivo é orientar o curso estratégico da política dos EUA como um todo, independentemente de qual partido esteja no poder em determinado momento. Além disso, ambas as entidades possuem ideologias bem estruturadas e claras — o globalismo liberal de esquerda no caso do CFR e a hegemonia americana assertiva no caso dos neoconservadores. O CFR pode ser considerado os globalistas de esquerda e os neocons os globalistas de direita.

Desde o seu início, o CFR focou em transformar os EUA de um Estado-nação em um “império” democrático global. Contra os isolacionistas, o CFR defendeu a tese de que os EUA estão destinados a tornar o mundo todo liberal e democrático. Os ideais e valores da democracia liberal, do capitalismo e do individualismo foram colocados acima dos interesses nacionais. Ao longo do século 20 — exceto por uma breve pausa durante a Segunda Guerra Mundial — essa rede de políticos, especialistas, intelectuais e representantes de corporações transnacionais trabalhou para criar organizações supranacionais: primeiro a Liga das Nações, depois as Nações Unidas, o Clube Bilderberg, a Comissão Trilateral, entre outras. Sua tarefa era criar uma elite liberal global unificada que compartilhasse a ideologia do globalismo em todos os aspectos — filosofia, cultura, ciência, economia, política, entre outros. As atividades dos globalistas dentro do CFR visavam ao estabelecimento de um governo mundial, o que implicava no gradual enfraquecimento dos estados-nação e na transferência de poder por antigas entidades soberanas para as mãos de uma oligarquia global, composta pelas elites liberais mundiais, treinadas de acordo com os modelos ocidentais.

Por meio de suas redes europeias, o CFR desempenhou um papel ativo na criação da União Europeia (um passo concreto em direção ao governo mundial). Seus representantes — particularmente Henry Kissinger, o líder intelectual duradouro da organização — desempenharam um papel fundamental na integração da China no mercado global, um movimento eficaz para enfraquecer o bloco socialista. O CFR também promoveu ativamente a teoria da convergência e conseguiu influenciar a liderança soviética tardia, até Gorbachev. Sob a influência das estratégias geopolíticas do CFR, ideólogos soviéticos tardios escreveram sobre a “governabilidade da comunidade global.”

Nos EUA, o CFR é estritamente apartidário e inclui tanto democratas, aos quais é um pouco mais próximo, quanto republicanos. Em essência, serve como o estado-maior do globalismo, com iniciativas europeias semelhantes — como o Fórum de Davos de Klaus Schwab — atuando como seus ramos. Às vésperas do colapso da União Soviética, o CFR estabeleceu uma filial em Moscou no Instituto de Estudos Sistêmicos sob o acadêmico Gvishiani, de onde emergiu o núcleo dos liberais da Rússia na década de 1990 e a primeira onda de oligarcas movidos por ideologias.

É claro que Trump encontrou-se diretamente com essa entidade, apresentada nos EUA e no mundo como uma plataforma inofensiva e prestigiada para a troca de opiniões por “especialistas” independentes. Mas, na realidade, trata-se de um verdadeiro quartel-general ideológico. Trump, com sua agenda conservadora tradicional, ênfase nos interesses americanos e crítica ao globalismo, entrou em conflito direto e aberto com ela. Trump pode ter sido o presidente dos Estados Unidos por um breve período, mas o CFR tem uma história de um século de determinação na direção da política externa americana. E, claro, ao longo de seus cem anos no poder e em torno dele, o CFR formou uma extensa rede de influência, disseminando suas ideias entre militares, funcionários, figuras culturais e artistas, mas principalmente nas universidades americanas, que se tornaram cada vez mais ideologizadas ao longo do tempo. Formalmente, os EUA não reconhecem qualquer dominação ideológica. Mas a rede do CFR é altamente ideológica. O triunfo planetário da democracia, o estabelecimento de um governo mundial, a vitória completa do individualismo e das políticas de gênero — esses são os objetivos mais elevados, dos quais qualquer desvio é inaceitável.

O nacionalismo de Trump, sua agenda “America First” e suas ameaças de “drenar o pântano globalista” representaram um desafio direto a essa entidade, a guardiã dos códigos do liberalismo totalitário (como qualquer ideologia).

Para Matar Putin e Trump

Pode-se considerar o CFR (Conselho de Relações Exteriores) uma sociedade secreta? Dificilmente. Embora prefira a discrição, geralmente opera de forma aberta. Por exemplo, pouco depois do início da Operação Militar Especial Russa, líderes do CFR (Richard Haass, Fiona Hill e Celeste Wallander) discutiram abertamente a viabilidade de assassinar o presidente Putin (uma transcrição dessa discussão foi postada no site oficial do CFR). O Estado profundo americano, ao contrário do turco, pensa globalmente. Assim, eventos na Rússia ou na China são considerados por aqueles que se veem como o futuro governo mundial como “assuntos internos”. E matar Trump seria ainda mais simples — se não conseguirem prendê-lo ou removê-lo das eleições.

É importante notar que as lojas maçônicas desempenham um papel fundamental no sistema político americano desde a Guerra de Independência dos EUA. Como resultado, redes maçônicas estão entrelaçadas com o CFR e servem como corpos de recrutamento para ele. Hoje, os globalistas liberais não precisam mais se esconder. Seus programas foram completamente abraçados pelos EUA e pelo Ocidente coletivo. À medida que o “poder secreto” se fortalece, gradualmente deixa de ser secreto. O que antes precisava ser guardado pela disciplina do sigilo maçônico agora se tornou uma agenda global aberta. Os maçons não hesitavam em eliminar fisicamente seus inimigos, embora não falassem abertamente sobre isso. Hoje, eles falam. Essa é a única diferença.

Neocons: De Trotskistas a Imperialistas

O segundo centro do Estado profundo são os neoconservadores. Originalmente, eram trotskistas que odiavam a União Soviética e Stalin porque, em sua visão, a Rússia construiu não um socialismo internacional, mas um “socialismo nacional”, ou seja, socialismo em um só país. Como resultado, em sua opinião, nunca foi criada uma sociedade socialista verdadeira, nem o capitalismo foi plenamente realizado. Trotskistas acreditam que o verdadeiro socialismo só pode surgir depois que o capitalismo se tornar planetário e triunfar em todos os lugares, misturando irreversivelmente todos os grupos étnicos, povos e culturas, ao mesmo tempo que abole tradições e religiões. Só então (e não um momento antes) chegará o momento da revolução mundial.

Portanto, os trotskistas americanos concluíram que precisavam ajudar o capitalismo global e os EUA como sua principal potência, enquanto buscavam destruir a União Soviética (e mais tarde a Rússia, como sua sucessora), juntamente com todos os estados soberanos. Acreditavam que o socialismo só poderia ser estritamente internacional, o que significava que os EUA precisavam fortalecer sua hegemonia e eliminar seus opositores. Somente após o Norte rico estabelecer completa dominação sobre o Sul empobrecido e o capitalismo internacional reinar supremo em todos os lugares, as condições estariam maduras para avançar para a próxima fase do desenvolvimento histórico.

Para executar este plano diabólico, os trotskistas americanos tomaram a decisão estratégica de entrar na política de grande escala — mas não diretamente, já que ninguém nos EUA votaria neles. Em vez disso, infiltraram-se nos principais partidos, primeiro através dos democratas e depois, ganhando impulso, também pelos republicanos.

Os trotskistas reconheciam abertamente a necessidade de ideologia e viam a democracia parlamentar com desprezo, encarando-a apenas como uma cobertura para o grande capital. Assim, ao lado do CFR, outra versão do Estado profundo foi formada nos EUA. Os neocons não ostentavam seu trotskismo, mas seduziam militaristas americanos tradicionais, imperialistas e apoiadores da hegemonia global. E foi com essas pessoas, que até Trump praticamente dominavam o Partido Republicano, que Trump teve de lutar.

Democracia é Ditadura

Em certo sentido, o estado profundo americano é bipolar, o que significa que possui dois polos:

  • o polo globalista de esquerda (CFR)
  • e o polo globalista de direita (os neocons).

Ambas as organizações são apartidárias, não eleitas e carregam uma ideologia agressiva e proativa que, essencialmente, é abertamente totalitária. Em muitos aspectos, elas se alinham, diferenciando-se apenas na retórica. Ambas são ferozmente contra a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping, além de se oporem à multipolaridade em geral. Dentro dos EUA, ambas são igualmente contrárias a Trump, já que ele e seus apoiadores representam uma versão mais antiga da política americana, desconectada do globalismo e focada em questões internas. Tal postura de Trump é uma verdadeira rebelião contra o sistema, comparável às políticas islamistas de Erbakan e Erdogan desafiando o kemalismo na Turquia.

Isso explica por que o discurso em torno do estado profundo surgiu com a presidência de Trump. Trump e suas políticas conquistaram o apoio de uma massa crítica de eleitores americanos. No entanto, ficou claro que essa postura não estava alinhada com as visões do Estado profundo, que se revelou ao agir duramente contra Trump, ultrapassando o quadro legal e pisoteando as normas da democracia. “A democracia somos nós”, declarou essencialmente o estado profundo americano. Muitos críticos começaram a falar de um golpe de estado. E é basicamente isso o que aconteceu. O poder sombra nos EUA entrou em choque com a fachada democrática e começou a se assemelhar cada vez mais a uma ditadura — liberal e globalista.

O Estado Profundo Europeu

Agora, vamos considerar o que o estado profundo pode significar no caso dos países europeus. Recentemente, os europeus começaram a perceber que algo incomum está acontecendo com a democracia em seus países. A população vota de acordo com suas preferências, apoiando cada vez mais diversos populistas, especialmente de direita. No entanto, alguma entidade dentro do estado imediatamente reprime os vencedores, submete-os à repressão, desacredita-os e os remove do poder à força. Vemos isso na França de Macron com o partido de Marine Le Pen, na Áustria com o Partido da Liberdade, na Alemanha com o Alternativa para a Alemanha e o partido de Sahra Wagenknecht, e nos Países Baixos com Geert Wilders, entre outros. Eles ganham eleições democráticas, mas são então afastados do poder.

Situação familiar? Sim, lembra muito a Turquia e os militares kemalistas. Isso sugere que estamos lidando com um estado profundo na Europa também.

Fica imediatamente evidente que, em todos os países europeus, essa entidade não é nacional e opera de acordo com o mesmo modelo. Não é apenas um estado profundo francês, alemão, austríaco ou holandês. Trata-se de um estado profundo pan-europeu, que faz parte de uma rede globalista unificada. O centro dessa rede está localizado no estado profundo americano, principalmente no CFR, mas essa rede também envolve fortemente a Europa. Aqui, forças liberal-esquerdistas, em estreita aliança com a oligarquia econômica e intelectuais pós-modernos — quase sempre de origem trotskista — formam a classe dirigente não eleita, mas totalitária, da Europa. Essa classe se vê como parte de uma comunidade atlântica unificada. Essencialmente, são a elite da OTAN. Novamente, podemos lembrar dos militares turcos. A OTAN é a estrutura que sustenta todo o sistema globalista, a dimensão militar do estado profundo coletivo do Ocidente.

Não é difícil localizar o Estado profundo europeu em estruturas semelhantes ao CFR, como o ramo europeu da Comissão Trilateral, o Fórum de Davos de Klaus Schwab, entre outros. Essa é a autoridade com a qual a democracia europeia colide quando, assim como Trump nos EUA, tenta fazer escolhas que as elites europeias consideram “erradas”, “inaceitáveis” e “reprováveis”. E não se trata apenas das estruturas formais da União Europeia. O problema reside em uma força muito mais poderosa e eficaz que não assume nenhuma forma legal. São os portadores do código ideológico, que, de acordo com as leis formais da democracia, simplesmente não deveriam existir. São os guardiões do liberalismo profundo, sempre respondendo duramente a qualquer ameaça que surja dentro do próprio sistema democrático.

Mas no caso dos EUA, as lojas maçônicas desempenharam um papel significativo na história política da Europa moderna, servindo como quartéis-generais para reformas sociais e transformações seculares. Hoje, não há mais uma grande necessidade de sociedades secretas, pois elas já operam abertamente há muito tempo, mas a manutenção das tradições maçônicas continua sendo parte da identidade cultural da Europa.

Assim, chegamos ao nível mais alto de uma entidade antidemocrática, profundamente ideológica, que opera em violação de todas as regras e normas legais e detém completo poder na Europa. Este é um poder indireto, ou uma ditadura oculta — o estado profundo europeu, como parte integrante do sistema unificado do Ocidente coletivo, ligado pela OTAN.

O Estado Profundo na Rússia nos anos 1990

O último ponto é aplicar o conceito de Estado profundo à Rússia. É notável que, no contexto russo, esse termo seja usado muito raramente, se é que é usado. Isso não significa que algo semelhante a um Estado profundo não exista na Rússia. Ao contrário, sugere que nenhuma força política significativa com apoio popular crítico ainda o confrontou. No entanto, podemos descrever uma entidade que, com algum grau de aproximação, pode ser chamada de “Estado profundo russo.”

Na Federação Russa, após o colapso da União Soviética, a ideologia de Estado foi proibida, e, nesse sentido, a Constituição russa se alinha perfeitamente com outros regimes nominalmente liberal-democráticos. As eleições são multipartidárias, a economia é baseada no mercado, a sociedade é secular e os direitos humanos são respeitados. De uma perspectiva formal, a Rússia contemporânea não difere fundamentalmente dos países da Europa, América ou Turquia.

No entanto, algum tipo de entidade implícita, apartidária, existiu na Rússia, especialmente durante a era Yeltsin. Naquela época, essa entidade era chamada genericamente de “A Família”. A Família desempenhava as funções de um estado profundo. Embora Yeltsin fosse o presidente legítimo (embora nem sempre legítimo no sentido mais amplo), os outros membros dessa entidade não eram eleitos por ninguém e não tinham autoridade legal. A Família nos anos 1990 era composta por parentes de Yeltsin, oligarcas, funcionários de segurança leais, jornalistas e liberais ocidentalizadores comprometidos. Eram eles que implementavam as principais reformas capitalistas no país, empurrando-as independentemente da lei, mudando-a à vontade ou simplesmente ignorando-a. Atuavam não apenas por interesses de clã, mas como um verdadeiro Estado profundo — banindo certos partidos, apoiando artificialmente outros, negando poder aos vencedores (como o Partido Comunista e o LDPR), concedendo-o a indivíduos desconhecidos e sem distinção, controlando a mídia e o sistema educacional, realocando indústrias inteiras a figuras leais e eliminando o que não lhes interessava.

Naquela época, o termo “Estado profundo” não era conhecido na Rússia, mas o fenômeno em si estava claramente presente.

Deve-se notar, no entanto, que em um período tão curto após o colapso do sistema de partido único abertamente totalitário e ideológico, um Estado profundo completamente desenvolvido não poderia ter se formado de maneira independente na Rússia. Naturalmente, as novas elites liberais simplesmente se integraram à rede global ocidental, extraindo dela tanto a ideologia quanto a metodologia de poder indireto (potestas indirecta) — por meio de lobby, corrupção, campanhas midiáticas, controle sobre a educação e estabelecimento de padrões sobre o que era benéfico e o que era prejudicial, o que era permitido e o que deveria ser proibido. O estado profundo da era Yeltsin rotulava seus opositores como “vermelho-marrom”, bloqueando preventivamente desafios sérios tanto da direita quanto da esquerda. Isso indica que havia alguma forma de ideologia (formalmente não reconhecida pela Constituição) que servia de base para tais decisões sobre o que era certo e errado. Essa ideologia era o liberalismo.

Ditadura Liberal

O Estado profundo surge apenas dentro das democracias, funcionando como uma instituição ideológica que as corrige e controla. Esse poder nas sombras tem uma explicação racional. Sem tal regulador supra-democrático, o sistema político liberal poderia mudar, pois não há garantias de que o povo não escolha uma força que ofereça um caminho alternativo para a sociedade. Foi exatamente isso que Erdoğan na Turquia, Trump nos EUA e os populistas na Europa tentaram — e em parte conseguiram — fazer. No entanto, o confronto com os populistas força o estado profundo a sair das sombras. Na Turquia, isso foi relativamente fácil, pois o domínio das forças militares kemalistas estava amplamente de acordo com a tradição histórica. Mas no caso dos EUA e da Europa, a descoberta de um quartel-general ideológico operando por meio de coerção, métodos totalitários e frequentes violações da lei — sem qualquer legitimidade eleitoral — surge como um escândalo, pois atinge fortemente a crença ingênua no mito da democracia.

O Estado profundo é construído sobre uma tese cínica no espírito da Revolução dos Bichos, de Orwell: “Alguns democratas são mais democráticos do que outros.” Mas cidadãos comuns podem ver isso como ditadura e totalitarismo. E eles estariam certos. A única diferença é que o totalitarismo de partido único opera abertamente, enquanto o poder nas sombras que se coloca acima do sistema multipartidário é forçado a esconder sua própria existência.

Isso não pode mais ser ocultado. Vivemos em um mundo onde o estado profundo se transformou de uma teoria da conspiração em uma realidade política, social e ideológica clara e facilmente identificável.

É melhor encarar a verdade de frente. O estado profundo é real, e é sério.

Fonte: Geopolitika.

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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