O Irã e a Ética Guerreira Tradicional

Como a conduta militar iraniana pode ser lida à luz da “metafísica da guerra” desenvolvida por um pensamento tradicionalista?

Com o fulminante ataque missilístico do Irã contra Israel, em que foram usadas algumas centenas de mísseis (Emad, Qadr F, Kheybar Shekan e Fattah) resultando na destruição de três bases aéreas, 20 F-35 e uma lista indeterminada de outros equipamentos e infraestruturas, chamou a atenção o fato de que não houve qualquer baixa civil israelense durantes estes ataques.

Os acostumados aos ataques israelenses e estadunidenses não conseguiram equacionar muito bem esse resultado, e ficaram confusos entre dizer que o ataque iraniano fracassou, e assustados com as filmagens que demonstram claramente que o ataque foi um sucesso.

Aqui não tivemos nenhuma surpresa, simplesmente porque os iranianos operam por um código de conduta religioso e cultural vigente há mais de mil anos; o qual impõe deveres rígidos no modo como se deve conduzir a ação militar.

Para muitos, a ideia de um “código de cavalaria” parece algo típico da Europa medieval, ou do Japão se recordarmos o “bushido”. Os mais eruditos recordarão as prescrições dármicas de Krishna a Arkuna no Bhagavad Gita. Pois então não deveria surpreender a ninguém a existência da futuwwa no Islã. Ainda que, sim, talvez seja razoável se espantar com o fato de que o Irã adere até hoje ao modelo tradicional da “cavalaria” em sua ética militar.

A “futuwwa”, que pode ser traduzida como “virilidade”, diz respeito em um sentido mais geral às virtudes e valores aos quais os jovens guerreiros devem aspirar, e que abarcam desde a etiqueta e boa educação, disciplina e senso de hierarquia, hospitalidade e cortesia, generosidade e humildade, além das características especificamente militares da coragem e da disposição para o sacrifício, da paciência estratégica, etc.

Existe na futuwwa, ainda, uma dimensão ascética específica que diz respeito à “distância interior” em relação à guerra. O cavaleiro não pode odiar o inimigo, não pode matar tendo ódio no coração, ele deve sempre estar “além do bem e do mal” durante a ação. Há um relato sobre Ali, registrado por Al-Sulami, que exemplifica:

“Em uma batalha, ele havia dominado um guerreiro inimigo e estava com sua adaga na garganta do homem quando o infiel cuspiu em seu rosto. Imediatamente, ‘Alī (r.a.) se levantou, embainhou sua adaga e disse ao homem: ‘Tirar sua vida é ilegal para mim. Vá embora!’ O homem, que havia salvado sua própria vida cuspindo no rosto do reverenciado Leão de Alá SWT, ficou surpreso. ‘Ó ‘Alī’, ele perguntou, ‘eu estava indefeso, você estava prestes a me matar, eu o insultei e você me libertou. Por quê?’ ‘Quando você cuspiu em meu rosto’, ‘Alī (r.a.) respondeu, ‘isso despertou a raiva do meu ego. Se eu o tivesse matado, não teria sido por causa de Alá SWT, mas por causa do meu ego. Eu teria sido um assassino. Você está livre para ir’. O guerreiro inimigo, comovido com a integridade demonstrada por ‘Alī (r.a.), converteu-se ao Islã no local”.

A descrição de como o guerreiro deve se portar em relação ao seu inimigo, especificamente no que concerne o distanciamento interior e o rechaço por todo sentimentalismo (inclusive a raiva) recorda imediatamente as diretrizes dadas por Krishna a Arkuna nos campos de Kurukshetra, quando Krishna orientou Arjuna a ir para além do amor e do ódio, da esperança e do desespero, e ter a mente focada absolutamente na Divindade para cumprir o seu dharma, matando os seus parentes que lideravam o exército inimigo.

É por isso que, mesmo com as atrocidades cometidas por Israel, mesmo com todas as baixezas, ignomínias e vilezas, o Irã não se rebaixa ao mesmo comportamento e, ademais, não reage com raiva – nem rasteja no chão se vitimizando, nem vocifera espumando em anseio pela morte de inocentes do lado inimigo. É a absoluta antítese de Israel nisso.

Não seria surpreendente apontar que, apesar do fundamento da futuwwa jazer no próprio Profeta Maomé e na conduta de seus companheiros, especialmente Ali e Salman Al-Farisi, foi entre os persas que a futuwwa tornou-se, também, algo como uma “ordem” ou “fraternidade”.

Em outras palavras, a partir da conquista da Pérsia, jovens cavaleiros passaram a se organizar em fraternidades militares iniciáticas de fundamento religioso, as quais eram chamadas precisamente, também, de “futuwwa”.

Segundo a tradição, teria sido o próprio já citado Al-Farisi, um persa, que teria iniciado a codificação e estruturação da futuwwa sob a forma de “ordem de cavalaria”. Foi nisso que as virtudes espirituais islâmicas dos Companheiros do Profeta se fundiram com as antigas tradições dos ‘ayyarun, uma espécie de “casta guerreira” sassânida zoroastrista que, ao se converter ao Islã, fundiu sua tradição militar iniciática com a espiritualidade islâmica.

É interessante como, simultaneamente, desenvolvia-se na Europa o espírito da cavalaria, gradualmente, a partir da fusão entre os resquícios de uma tradição militar romana salvaguardada pelos francos, com o exemplo dos heróis germânicos, a inspiração católica da “piedade cavalheiresca” e elementos da ética aristotélica.

Mas na medida em que, eventualmente, vão se chocando católicos e muçulmanos tanto na Península Ibérica quanto na Ásia Ocidental, ambas tradições cavalheirescas vão se influenciando mutuamente. Isso tanto é verdade que boa parte da literatura cavalheiresca medieval faz questão de exaltar o caráter honroso e virtuoso dos “mouros”, a ponto de Saladino tornar-se um personagem típico dos poemas e contos medievais, nunca como propriamente um “vilão”, mas como um anti-herói virtuoso.

Veja-se, por exemplo, o poema “Ordene de Chevalerie”, que trata do diálogo entre Hugo II de Tiberíades e Saladino, em que Saladino pede a Hugo, seu prisioneiro, que lhe transmita a iniciação cavalheiresca europeia, e reconhece nela muito em comum com a futuwwa, depois libertando o cavaleiro.

É assim que diz o barão Julius Evola, em sua “Metafísica da Guerra”:

“Dessa forma, e apesar de tudo, as Cruzadas foram capazes de enriquecer o intercâmbio cultural entre o Ocidente gibelino e o Oriente árabe (ele próprio o centro de elementos tradicionais mais antigos), um intercâmbio cuja importância é muito maior do que a maioria dos historiadores ainda reconheceu. Como os cavaleiros das ordens cruzadas se encontravam na presença de cavaleiros de ordens árabes que eram quase seus pares, manifestando correspondências na ética, nos costumes e, às vezes, até mesmo nos símbolos, a ‘guerra sagrada’ que havia impelido as duas civilizações uma contra a outra em nome de suas respectivas religiões levou-as, ao mesmo tempo, a se encontrarem, ou seja, a perceberem que, apesar de terem como ponto de partida duas fés diferentes, elas acabaram por conceder à guerra o valor idêntico e independente da espiritualidade”.

Nesse sentido, não há como não encontrarmos muitas coisas em comum na conduta que vemos no Irã contemporâneo, no que concerne suas ações militares, sempre cirúrgicas, sempre precisas, sempre voltadas contra alvos militares, sempre evitando os inocentes, e o espírito da grande tradição romano-germânica europeia, desaparecido na Europa Ocidental com a Modernidade iluminista.

Quanto à conduta militar do campo adversário, basta recordarmos o que publicou como código de conduta oficial para seus homens o Coronel-Rabino Avidan, capelão-chefe do distrito militar central, em 1973: “Quando nossas forças se deparam com civis durante uma guerra ou em uma perseguição ou em um ataque, desde que não haja certeza de que esses civis sejam incapazes de prejudicar nossas forças, então, de acordo com a Halakhah, eles podem e até devem ser mortos… Na guerra, quando nossas forças atacam o inimigo, elas têm permissão e até mesmo ordem da Halakhah para matar até mesmo civis bons, ou seja, civis que são ostensivamente bons”.

Na mesma direção, em julho desse ano o autor Mark Fish escreveu um artigo para o Jerusalem Post no qual ele insiste em que as diretrizes etnocidas orientadas por Jeová contra midianitas, amalequitas e outros povos levantino, eram aplicáveis hoje contra todos os árabes e contra qualquer povo que possa ser considerado um “inimigo imoral”.

Dessa forma, apesar do Rei Davi ter, inclusive, servido historicamente de inspiração para o imaginário cavalheiresco tanto entre europeus cristãos quanto entre árabe-persas muçulmanos, não se pode dizer que haja, hoje, alguma tradição cavalheiresca no militarismo israelense.

Ao contrário: tudo na conduta israelense exemplifica a antítese das virtudes guerreiras tradicionais.

Imagem padrão
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 43

Deixar uma resposta