Marden Samuel explora a relação entre Marxismo e Cristianismo, demonstrando que o marxismo, em essência, partilha raízes com valores cristãos na sua crítica ao capitalismo.
Atualmente se há um tabu entre a direita com qualquer coisa que “cheire” a marxismo. Porém, este artigo servirá para mostrar o quanto o pensamento marxista tinha uma essência cristã na sua oposição ao capitalismo e o quanto o cristianismo influenciou Marx, mesmo sem ele perceber.
A crítica marxista contra a burguesia
Quando se lê a crítica de Marx e Engels no Manifesto Comunista contra o capitalismo, se percebe duas coisas: um pano de fundo cristão e um endosso de certo conservadorismo social. Vejamos uma citação do Manifesto para provar este ponto:
“A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível «pagamento a pronto».
Afogou o frémito sagrado da exaltação pia, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, na água gelada do cálculo egoísta. Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades bem adquiridas e certificadas pôs a liberdade única, sem escrúpulos, de comércio. Numa palavra, no lugar da exploração encoberta com ilusões políticas e religiosas, pôs a exploração seca, direta, despudorada, aberta.
A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as atividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.A burguesia arrancou à relação familiar o seu comovente véu sentimental e reduziu-a a uma pura relação de dinheiro.”
– O Manifesto Comunista, páginas 31 e 32, editora Avante!
Percebam de onde parte a crítica marxista do capitalismo. O capitalismo é ruim na sua essência, pois quebra todo sistema de valores e ideais, o velho regime na visão de Marx e Engels acaba sendo melhor, pois por mais opressivo que ele era, ele tinha um fundo de transcendência que dava propósito, mesmo que baseado em “ilusões políticas e religiosas”, como eles dizem. Podemos perceber que Marx e Engels se preocupam com a ausência de propósito da modernidade capitalista.
Jesus fala a mesma coisa ao se referir a Grande Babilônia, um símbolo espiritual do capitalismo, símbolo esse que será completamente destruído na sua volta a Terra:
2. Então, ele bradou com poderosa voz: “Caiu! Caiu a grande Babilônia, e tornou-se habitação de demônios e antro de toda espécie de espírito imundo e esconderijo de toda ave impura e detestável,
3. porquanto, todas as nações beberam do vinho da cólera da sua prostituição. Os monarcas da terra se prostituíram com ela e os negociadores da terra se enriqueceram à custa do seu luxo extravagante!”
9. Os reis da terra, que com ela se prostituíram e aproveitaram do seu luxo, se desesperarão e prantearão por ela, assim que avistarem a fumaça do seu incêndio colossal.
10. Aterrorizados por causa do tormento dela, ficarão observando de longe e gritarão: ‘Ai! Ai da Grande Cidade, Babilônia, a cidade forte! Como foi que em apenas uma hora chegou a tua condenação?’
11. Os comerciantes da terra prantearão e lamentarão por ela, pois ninguém mais pode comprar as suas mercadorias;
(Apocalipse de São João, 18)
Repare com o que o texto de apocalipse 18 relaciona a Grande Babilônia: ganância, luxo, extravagância, luxúria, comércio. Tudo isso é a marca da exuberância capitalista, da decadência burguesa e da perda de propósito desencadeada por esse domínio burguês.
O capitalismo como destruidor da cultura
Outra crítica marxista ao capitalismo se dá ao caráter globalizante do capitalismo. O capitalismo tem a necessidade de destruir tudo que distingue os povos, seja a religião, a cultura, os costumes, além de destruir as próprias diferenças entre as diversas nações dentro de um Estado, como as diversas culturas locais e o regionalismo provincial:
“A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária disto foi a centralização política. Províncias independentes, quase somente aliadas, com interesses, leis, governos e direitos alfandegários diversos, foram comprimidas numa nação, num governo, numa lei, num interesse nacional de classe, numa linha aduaneira.”
– O Manifesto Comunista, página 34, editora Avante!
A crítica marxista aqui é uma oposição a lógica da Torre de Babel. Esta torre representa plenamente a lógica globalizante do capitalismo. Uma lógica que prevê a destruição de todas as distinções entre os povos para que o mercado possa alcançar todos de forma igual.
Por exemplo, cada povo e cada cultura possui hábitos de consumo diferentes, o gaúcho culturalmente come mais carne de boi; o muçulmano por questões religiosas não come porco. Perceba que pela cultura gaúcha focar muito no gado, isso atrapalha o mercado de outras carnes no estado; de igual forma, o mercado de suínos tem zero alcance em países muçulmanos devido sua religião, que proibi o consumo de porco.
Por causa disso, para a lógica burguesa, culturas e religiões são barreiras que atrapalham o livre-comércio, são o equivalente as barreiras tarifárias e regulamentações estatais que o capitalismo tanto odeia, tudo isso porque tanto a cultura, a religião, as tarifas e as regulamentações representam as mesmas coisas para o capitalista: barreiras ao lucro ilimitado e ao mercado.
O relação Igreja e Estado no marxismo
Sobre a relação do marxismo com a religião, muitas das vezes se faz uma confusão.
O marxismo é sim materialista, mas a definição de materialismo varia de acordo com a vertente de esquerda, e o problema marxista com a religião no fundo acaba não sendo com a religião em si e sim com o ato dela ter sido usada e estar sendo usada como legitimação das desigualdades sociais e do capitalismo, de sistemas políticos elitistas, dela ter embriagado o pobre para aceitar a opressão imposta a ele em nome de uma recompensa no pós-vida.
Engels por exemplo, no seu livro Contribuições para a História do Cristianismo Primitivo, diz que apesar de considerar o cristianismo como lenda e superstição, possui uma visão positiva do cristianismo primitivo, o vendo como um precursor do socialismo:
“A história do Cristianismo Primitivo oferece importantes pontos de contato com o movimento operário moderno. Como este, o Cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos pelo Império Romano. Ambos os movimentos, o Cristianismo e o socialismo, pregam a libertação da servidão e da miséria; o Cristianismo transpõe essa libertação para o além, para uma vida após a morte, no céu; o socialismo coloca-a neste mundo mediante a transformação da sociedade. Ambos são perseguidos e cerceados; seus militantes proscritos e submetidos a leis de exceção – uns como inimigos do gênero humano, outros como inimigos do governo, da religião, da família, da ordem social — E, apesar de todas as perseguições, e mesmo diretamente favorecidos por elas, uma e outra proposta prosseguem vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, Roma reconhece o Cristianismo como religião de Estado e do Império Romano; em menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está absolutamente assegurado.”
– Contribuições para a História do Cristianismo Primitivo, páginas 31 e 32, editora Expressão Popular
Frei Betto cita na sua introdução ao livro Contribuições para a História do Cristianismo Primitivo sobre uma conversa que teve com Fidel Castro na década de 80, nesta conversa, Fidel, dá sua interpretação do que significa que a religião é o “ópio do povo”:
“Sobre isso me disse Fidel em nosso livro: “Em minha opinião, a religião, sob a ótica política, não é, em si mesma, ópio ou remédio milagroso. Pode ser ópio ou maravilhoso remédio na medida em que sirva para defender os opressores e os exploradores ou os oprimidos e os explorados. Depende da forma como aborda os problemas políticos, sociais e materiais do ser humano que, independentemente de teologias ou de crenças religiosas, nasce e tem que viver neste mundo.”
– Contribuições para a História do Cristianismo Primitivo, página 20, editora Expressão Popular
Frei Betto também explora a real intenção de Marx ao declarar que a religião é o ópio do povo. Ele foca no ato de Marx falar da dupla funcionalidade da religião, ora como ferramenta política da burguesia, ora como instrumento de libertação das massas, depende muito do contexto e da teologia envolvida:
“Após minar as bases do Império Romano e conquistar o direito à liberdade e à diversidade religiosa, o Cristianismo foi cooptado, no século IV, pelo imperador Constantino, que o promoveu à condição de religião de Estado. Foi a partir daí que o movimento suscitado pela militância de Jesus de Nazaré passou a transpor a libertação da Terra para o céu, para a vida após a morte. Tornou-se, portanto, “ópio do povo”, como Marx afirma na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel (1844): “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e o protesto contra esta verdadeira angústia. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, tal como é o espírito de uma sociedade sem espírito. Ela é o ópio do povo.”
Em seu artigo intitulado Marx e Engels como sociólogos da religião, Michael Löwy observa que a frase “a religião é o ópio do povo” precisa ser compreendida em sua complexidade, e destaca que Marx se refere à religião em “seu duplo caráter” contraditório e dialético: “às vezes legitimação da sociedade existente, às vezes protesto contra tal sociedade.”
– Contribuições para a História do Cristianismo Primitivo, páginas 19 e 20, editora Expressão Popular
Rosa Luxemburgo é um outro exemplo bom no espectro comunista que aborda de forma positiva o cristianismo primitivo, mas vê uma diferenciação gritante entre os primeiros cristãos e o clero de sua época, clero este que estava defendendo a burguesia e a desigualdade social:
“Desde que os socialistas lutam por uma ordem social de igualdade, liberdade e fraternidade, os padres, se honestamente quisessem implementar na vida da humanidade o princípio cristão ‘ama ao próximo como a ti’, deveriam dar as boas-vindas ao movimento socialista. […] Quando o clero apoia o rico, e aqueles que exploram e oprimem o pobre, estão em contradição explícita com os ensinamentos cristãos: servem não a Cristo, mas sim ao Bezerro de Ouro e ao chicote que açoita os pobres e indefesos. […] A flagrante contradição entre as ações do clero e os ensinamentos do cristianismo deve ser matéria de reflexão para todos nós. […] De acordo com a situação material dos escravos, os primeiros cristãos fizeram a proposta da propriedade em comum – o comunismo. […] Os cristãos dos primeiros séculos eram comunistas fervorosos. Mas era um comunismo baseado no consumo de bens acabados e não no trabalho, e demonstrou-se incapaz de reformar a sociedade, de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar as barreiras que separavam os pobres dos ricos”
– O Socialismo e as Igrejas, Rosa Luxemburgo
Rosa Luxemburgo aprofunda bastante no quanto o cristianismo primitivo possuía um foco social muito forte, chegando a citar até os escritos dos Pais da Igreja:
“[O]s Pais da Igreja prosseguira, no entanto, a luta contra esta penetração da desigualdade social no seio da comunidade cristã, fustigando aos ricos com palavras ardentes e exortando-os a voltarem ao comunismo dos primeiros Apóstolos […] São Basílio, no Século IV depois de Cristo, predicava assim contra os ricos: “Infelizes, como os justificarei perante o Juiz Celestial? Vós me perguntais: ‘Qual é a nossa culpa, se só guardamos o que nos pertence?’ E vos pergunto: ‘Como conseguistes o que chamais vossa propriedade? Como se enriquecem os possuidores se não é tomando posse das coisas que pertencem a todos? Se cada um tomasse apenas o que necessitasse e deixasse o resto para os demais, não haveria ricos nem pobres”
– O Socialismo e as Igrejas, Rosa Luxemburgo
Ateísmo de Estado não é sinônimo de marxismo. Nem o próprio Lenin no início queria um Estado ateu e sim secular. Foi o ato da Igreja se manter tão firme na defesa da opressão do Czarismo que motivou as políticas anticlericais que o regime de Lenin tomou. Em 1905 por exemplo, Lenin diz defender a separação entre religião e estado, uma clássica política secular:
“A religião deve ser declarada um assunto privado. Nestas palavras os socialistas geralmente expressam a sua atitude em relação à religião. Mas o significado destas palavras deve ser definido com precisão para evitar qualquer mal-entendido. Exigimos que a religião seja considerada um assunto privado no que diz respeito ao Estado. Mas de forma alguma podemos considerar a religião um assunto privado no que diz respeito ao nosso Partido. A religião não deve preocupar o Estado e as sociedades religiosas não devem ter qualquer ligação com a autoridade governamental. Todos devem ser absolutamente livres para professar qualquer religião que desejarem, ou nenhuma religião, ou seja, ser ateu, o que todo socialista é, via de regra. A discriminação entre os cidadãos devido às suas convicções religiosas é totalmente intolerável. Mesmo a mera menção da religião de um cidadão em documentos oficiais deveria ser inquestionavelmente eliminada. Não devem ser concedidos subsídios à igreja estabelecida nem subsídios estatais concedidos às sociedades eclesiásticas e religiosas. Estas deveriam tornar-se associações absolutamente livres de cidadãos com ideias semelhantes, associações independentes do Estado. Somente o cumprimento completo dessas exigências pode pôr fim ao passado vergonhoso e amaldiçoado, quando a Igreja vivia na dependência feudal do Estado, e os cidadãos russos viviam na dependência feudal da Igreja estabelecida, quando as leis inquisitoriais medievais (que permanecem até hoje nos nossos códigos criminais e nos nossos livros legislativos) existiam e eram aplicados, perseguindo os homens pela sua crença ou descrença, violando as consciências dos homens e ligando empregos públicos acolhedores e rendimentos derivados do governo com a distribuição desta ou daquela droga pelo igreja estabelecida. A separação completa entre Igreja e Estado é o que o proletariado socialista exige do Estado moderno e da Igreja moderna.
[…] Por mais abjetos e ignorantes que os clérigos ortodoxos russos possam ter sido, até eles foram agora despertados pelo estrondo da queda da velha ordem medieval na Rússia. Até eles se juntam à exigência de liberdade, protestam contra as práticas burocráticas e o oficialismo, contra a espionagem policial imposta aos “servos de Deus”. Nós, socialistas, devemos dar o nosso apoio a este movimento, levando até ao fim as exigências dos membros honestos e sinceros do clero, fazendo-os manter as suas palavras sobre a liberdade, exigindo que rompam resolutamente todos os laços entre a religião e a polícia. Ou você é sincero e, nesse caso, deve defender a separação completa entre Igreja e Estado e entre Escola e Igreja, para que a religião seja declarada total e absolutamente um assunto privado. Ou você não aceita essas demandas consistentes por liberdade, caso em que você evidentemente ainda é mantido cativo pelas tradições da Inquisição, caso em que você evidentemente ainda se apega aos seus aconchegantes empregos públicos e aos rendimentos derivados do governo, caso em que você evidentemente não acredite no poder espiritual de sua arma e continue aceitando subornos do Estado. E nesse caso, os trabalhadores com consciência de classe de toda a Rússia declaram-vos uma guerra impiedosa.”
Apesar disso estar longe de ser uma política piedosa do Estado, isso está longe de ser o ateísmo de Estado que ele inaugurou depois. Da mesma forma que a dureza de coração do clero o motivou a adotar o ateísmo de Estado; um clero alinhado com as demandas bolcheviques poderia ter dado espaço para um socialismo cristão dentro do partido, da mesma forma que aconteceu com o Islã.
O marxismo como cristianismo político
O marxismo sem perceber, foi a manifestação da doutrina cristã do amor ao próximo, da igualdade e da dignidade humana em escala política.
Tanto marxistas e cristãos devem deixar de lado antigos preconceitos políticos e se unirem contra a Besta liberal.
É necessário jogar nova luz aos escritos de Marx e Engels e enxergar seus escritos não de forma anticlerical ou anticristã e sim como uma organização política dos ideais do Evangelho. Tal coisa só será possível seguindo a metodologia de Alexander Dugin.
Resumindo: o verdadeiro marxismo só realizará seu total potencial no ambiente tradicionalista da quarta teoria política.