O filósofo russo Alexander Dugin explica o sentido ontológico da multipolaridade e a tendência à estabilização da ordem planetária em uma heptarquia.
Discurso de Alexander Dugin no Fórum de Multipolaridade em Moscou, em 26 de fevereiro de 2024.
O mundo multipolar é principalmente uma filosofia. Em seu cerne está uma crítica ao universalismo ocidental.
O Ocidente se identificou de forma racista e imperialista com a humanidade. Houve uma época em que a Grã-Bretanha reivindicou todos os mares e oceanos como seus. A civilização ocidental declarou toda a humanidade como sua propriedade – principalmente sua consciência. Isso levou à formação de um mundo unipolar.
Nesse mundo, existem apenas valores ocidentais. Apenas um sistema político – a democracia liberal. Apenas um modelo econômico – o capitalismo neoliberal. Apenas uma cultura – o pós-modernismo. Apenas uma concepção de gênero e família – LGBT. Apenas uma versão do desenvolvimento – perfeição tecnológica até o pós-humanismo e o deslocamento completo da humanidade pela IA e pelos ciborgues.
De acordo com seus proponentes, o mundo unipolar é o “triunfo da história mundial”, a vitória total da era ocidental moderna – o liberalismo, que se tornou a única e indiscutível ideologia de toda a humanidade.
A multipolaridade é uma filosofia alternativa. Ela se baseia na objeção fundamental: o Ocidente não é toda a humanidade, mas apenas uma parte dela – uma região, uma província. Não é a civilização no singular, mas uma das várias civilizações. Atualmente, há pelo menos sete civilizações desse tipo – daí o conceito mais importante da teoria multipolar – a heptarquia.
Algumas civilizações já estão unidas em enormes Estados continentais, Estados-civilização ou wénmíng guójiā (文明国家). Para outros, isso ainda está por vir. O Ocidente coletivo, os países da OTAN e os vassalos dos EUA são apenas um dos polos.
Há mais três:
- Rússia-Eurásia,
- Grande China (Zhōngguó 中国) ou Tiānxià (天下),
- Grande Índia.
Todos eles são Estados-Civilizações, o que significa algo mais do que países comuns.
E três outros grandes espaços, integrados em graus variados:
- O mundo islâmico, fortemente ligado pela religião, mas politicamente desunido até o momento,
- A África negra trans-saariana,
- A ecúmene latino-americana.
Todas as sete civilizações têm perfis religiosos completamente diferentes, diferentes sistemas de valores tradicionais, diferentes vetores de desenvolvimento e diferentes identidades culturais.
A civilização ocidental, ao contrário do que afirma, é apenas uma delas. Arrogante, ousada, agressiva, enganosa, predatória e perigosa. Entretanto, suas alegações de universalismo são infundadas e seu domínio se baseia em padrões duplos.
A multipolaridade se opõe não ao Ocidente em si, mas especificamente às alegações de exclusividade e universalidade do Ocidente. Essas afirmações não são desconhecidas para nós; elas permeiam todos os sistemas de nossa cultura, ciência e educação. O Ocidente, com sua ideologia tóxica, infiltrou-se em nossas sociedades, seduziu e corrompeu as elites, colocou nossa sociedade sob seu controle informacional e tentou levar nossos jovens para o mais longe possível da fé e da tradição.
No entanto, a era da hegemonia exclusiva do Ocidente chegou ao fim. Sua conclusão foi marcada pela postura da Rússia e, pessoalmente, pelo nosso Presidente Vladimir Vladimirovich Putin, quando nos recusamos a sacrificar nossa soberania e entramos em combate mortal com o Ocidente na Ucrânia. Estamos lutando na Ucrânia não contra os ucranianos, mas contra o mundo unipolar. E nossa vitória inevitável não será apenas nossa, mas uma vitória para toda a humanidade, que verá em primeira mão que o poder do Ocidente não é absoluto, que sua política de neocolonialismo e dessoberanização pode ser rejeitada de forma decisiva e que é possível insistir em sua própria posição.
A Rússia é um dos polos do mundo multipolar. Esse não é um retorno ao antigo modelo bipolar, mas o início de uma arquitetura mundial completamente nova.
O rápido crescimento da economia chinesa e o fortalecimento da soberania da China, especialmente sob a liderança do grande líder Xi Jinping, transformaram a China em outro polo completamente independente. Ao ver isso, o Ocidente, representado pela elite globalista dos Estados Unidos, declarou imediatamente uma guerra comercial contra a China.
O mundo islâmico tem desafiado o Ocidente principalmente nas esferas religiosa e cultural. Os valores ocidentais – que pedem abertamente a destruição das tradições, da família, do gênero, da cultura e da religião – são incompatíveis com os fundamentos do Islã. Isso é compreendido hoje por cada um dos quase dois bilhões de muçulmanos. E hoje, o mundo islâmico tem sua própria guerra com o Ocidente globalista – na Palestina, no Oriente Médio, onde um vergonhoso genocídio do povo palestino – o assassinato de crianças, mulheres e idosos palestinos – está em andamento com a total aprovação do Ocidente.
A Índia é outro polo. Hoje, especialmente sob o governo de Narendra Modi, é uma civilização inteira que está retornando às suas raízes védicas, à sua tradição antiga e aos seus fundamentos. Não é mais uma colônia cultural e econômica do Ocidente, mas um gigante mundial em ascensão.
A África e a América Latina estão metodicamente e consistentemente, embora não sem problemas, seguindo o mesmo caminho.
O movimento pan-africano está abrindo caminho para uma integração africana unificada e abrangente, livre do controle neocolonial. Essa é uma nova teoria, uma nova prática, que incorpora os melhores aspectos dos estágios anteriores da luta pela libertação, mas com base em uma filosofia diferente, em que a religião, o espírito e os valores tradicionais desempenham um papel fundamental.
A América Latina também continua seu caminho de luta anticolonial. Aqui, os povos estão buscando novas formas de consolidação e unidade, superando modelos ultrapassados que dividem todos em direita e esquerda. Em muitos países latino-americanos, os defensores dos valores tradicionais, da religião e da família se unem àqueles que defendem a justiça social sob a bandeira de uma luta comum – contra o neocolonialismo do Ocidente coletivo e sua cultura anti-humana pervertida.
O mundo multipolar de hoje não é uma utopia e não é apenas um projeto teórico. Seis das sete civilizações (da heptarquia planetária) se uniram em um novo bloco dentro do BRICS. Há representantes de cada uma delas. Estamos lidando com a institucionalização da multipolaridade. A Grande Humanidade está se unindo, compreendendo a si mesma e começando a harmonizar suas tradições e orientações, seus sistemas de valores tradicionais e seus interesses.
Somente o Ocidente coletivo, tentando a qualquer custo manter sua hegemonia, recusa-se categoricamente a se envolver nesse inevitável processo multipolar. Ele se opõe a ele. Planeja e provoca conflitos. Realiza intervenções. Tenta suprimir todos os focos de independência com sanções e pressão direta. E se isso falhar, entra em confronto militar direto – como na Ucrânia, em Gaza e, possivelmente, amanhã no Pacífico.
Entretanto, o Ocidente não é monolítico. Há dois Ocidentes. O Ocidente globalista das elites liberais e o Ocidente tradicional – o Ocidente dos povos e das sociedades. O próprio Ocidente tradicional sofre com a tirania dos globalistas pervertidos e tenta, sempre que possível, se rebelar. Os povos do Ocidente não são inimigos do mundo multipolar. Eles são principalmente vítimas. Conforme demonstrado pela entrevista de nosso presidente com o político e jornalista conservador Tucker Carlson, há muito mais em comum entre a Rússia e os antiglobalistas nos EUA do que parece.
Portanto, a verdadeira vitória da multipolaridade não será a derrota do Ocidente coletivo, mas sua salvação, seu retorno aos seus próprios valores tradicionais (não pervertidos) ocidentais, à sua cultura (não para cancelar a cultura), às suas raízes clássicas greco-romanas e cristãs. Acredito que os povos libertados do jugo globalista do verdadeiro Ocidente um dia, no futuro, também se juntarão à Grande Humanidade, tornando-se um polo respeitado do mundo multipolar. Deixar de ser um hegemon é do interesse não apenas de todas as civilizações não ocidentais, mas também do próprio Ocidente.
Dou as boas-vindas a todos os participantes de nosso Fórum. Estamos aqui reunidos para construir o futuro, compreender o presente e salvar nosso glorioso passado, garantindo a continuidade da cultura.
Tão diferentes, especiais, únicos, autossuficientes, soberanos – a humanidade somos nós!