Desde a queda da União Soviética a OTAN se expande a leste na Europa, para sufocar a Rússia, com a Ucrânia sendo peça fundamental no xadrez geopolítico. Raphael Machado explica o contexto da região nos últimos 30 anos.
Com a escalada do conflito na Ucrânia, a possível iminência de operações russas em larga escala e ameaças de conflitos abertos em outras partes do planeta, ainda tem muita gente que não entendeu nada e ainda cai na propaganda atlantista de sempre.
Russos e ucranianos (e belarrussos) são etnias de um mesmo povo macroétnico. São como bávaros e saxões ou vênetos e piemonteses. A Rússia nasce em Kiev. Quanto à Ucrânia, após o colapso da Rússia de Kiev, ela sempre foi região fronteiriça do espaço russo. Não existe um histórico contínuo de independência ucraniana e o atual Estado ucraniano foi construído pelos bolcheviques em sua política de nacionalidades, anexando-se inclusive regiões majoritariamente russas étnicas (Crimeia e Novorrússia) para impedir a homogeneidade.
Na época do colapso soviético a maioria dos ucranianos era a favor de permanecer na URSS, mas com a URSS assumindo uma nova configuração após uma reforma política. Com a tentativa de golpe da linha-dura comunista, os ucranianos votaram pelo separatismo. A OTAN prometeu não se expandir para leste e os antigos territórios soviéticos e comunistas foram invadidos por ONGs e “especialistas” ocidentais.
Essas ONGs atuaram fazendo engenharia social russofóbica na Ucrânia construindo uma mitologia de genocídio e atrocidades que virou currículo educacional e serviu para criar uma fissura entre etnias geneticamente pouco distinguíveis e culturalmente integradas. No extremo, fechou-se os olhos para a difusão do neonazismo ucraniano enquanto qualquer traço de nacionalismo ou conservadorismo era perseguido brutalmente como “nazismo” no resto da Europa.
Esse neonazismo ucraniano substituía a figura do “judeu” pela figura do “russo”, transformado em figura completamente alienígena, “asiática”, responsável por todos os problemas da Ucrânia, secretamente ainda comunista e devendo ser aniquilado. Essa construção se coaduna com outra linha histórica que recorda a importância história da região para os judeus de origem cázara, bem como projetos de reconstrução de um Estado judaico na Ucrânia, tema que entusiasma vários dos oligarcas ucranianos com dupla cidadania.
Enquanto isso, os EUA violavam sua promessa e expandiam a OTAN para leste até as fronteiras russas. O objetivo geopolítico estadunidense, seguindo o pensamento atlantista clássico, era simplesmente impedir que qualquer grande potência continental assumisse o controle da área geográfica que se estende da Europa Central aos Urais, o Heartland, cuja posse daria uma vantagem imensa. A estratégia atlantista é objetivamente a mesma desde o início do século XX, independentemente da ideologia vigente na Rússia. Para a Rússia, a Ucrânia era central pelo acesso aos mares quentes, a recursos minerais e pela reunificação de seu povo.
O Ocidente em conluio com esses oligarcas conseguiram realizar uma “revolução colorida” em Kiev em 2004, a Revolução Laranja, mas ela não conseguiu se sustentar. Em 2013, o assunto primordial era a aproximação entre Ucrânia e União Europeia ou com a União Eurasiática. A UE oferecia LGBT, neoliberalismo e imigração, a Eurásia oferecia desenvolvimentismo e respeito por valores tradicionais. Como o governo Yanukovich preferiu o lado eurasiático, começaram as agitações violentas seguindo o manual da ONG Canvas.
O resultado foi o Maidan com um golpe de Estado instalando no poder uma Junta alinhada ao Ocidente e dedicada à russofobia. Imediatamente, o novo governo em Kiev procedeu à perseguição da população etnicamente russa, quase metade da população. Começou a proibir mídia em língua russa, a retirar o russo das escolas, a mudar nomes de ruas, a derrubar monumentos e a demitir funcionários públicos vinculados ao governo pró-russo. Os protestos populares no Donbass foram respondidos com balas.
Na Crimeia, rapidamente se procedeu a um plebiscito que com quase unanimidade anexou a região de volta à Rússia, em outras regiões tentativas semelhantes foram resistidas, levando-se a prisões em massa em Kharkov e ao Massacre de Odessa.
Assim começou o levante no Donbass, com veteranos, seguranças, policiais, bombeiros, se mobilizando para defender a população, tudo isso com a ajuda de nacionalistas e eurasianistas vindos da Rússia como voluntários. O levante logo virou uma guerra civil. Kiev lançou conscritos despreparados contra o Donbass, mas logo atrás deles mandou batalhões paramilitares formados a partir de grupos neonazistas em gestação há 30 anos.
Viu-se inúmeros crimes de guerra cometidos por esses neonazistas no Donbass, de estupros e execuções sumárias, passando por crucificações, tortura, etc. A Rússia deu um apoio modesto ao Donbass, mais de forma indireta do que qualquer outra coisa, porque os liberais, ocidentalistas e conformistas (a sexta-coluna) infiltrada no Kremlin seguraram a mão de Putin e o convenceram a não intervir no Donbass (como Lavrov e Shoigu queriam). Cossacos, nacionalistas e comunistas foram aos milhares para o Donbass e mesmo com o Exército Ucraniano “otanizado” conseguiram infligir derrotas sérias à Ucrânia, especialmente no Caldeirão de Debaltsevo. A sexta-coluna imediatamente conjurou os Acordos de Minsk com seus “parceiros ocidentais”. Mas sua real finalidade, como descobrimos em 2022, era dar à Ucrânia tempo para ampliar, treinar e modernizar suas Forças Armadas para uma eventual investida cujo objetivo seria retomar o Donbass, a Crimeia e levar a guerra à Rússia para promover uma nova fragmentação do país.
De 2015 a 2022, portanto, apesar da “paz” a Ucrânia não deixou de bombardear Donetsk e Lugansk e a enviar unidades de sabotadores e terroristas para atacar nessas regiões. Em 2021, por sua vez, descobriu-se uma série de coisas: a Ucrânia receberia mísseis ocidentais aptos a anular a capacidade de resposta nuclear da Rússia, dando xeque no país, e foi descoberto o plano de invasão do Donbass.
Considerando a concentração de tropas ucranianas no leste, as milícias irregulares de Donetsk e Lugansk não teriam como deter a investida. Seria um massacre. É nesse contexto que tem início a operação militar especial russa na Ucrânia.
A operação não foi projetada como tapa-buraco ou como meia-medida. A Rússia não queria esse conflito, mas a partir do momento em que entrou no campo de batalha era para dar um fim definitivo a essa ameaça. O plano inicial envolvia promover uma mudança de lado por parte das Forças Armadas Ucranianas, o que levaria a uma mudança de regime interna tutelada pela Rússia para promover a “desnazificação” e “desmilitarização” da Ucrânia.
Por causa dos objetivos iniciais, apenas 150 mil russos entraram na Ucrânia, quantidade claramente insuficiente para uma operação em larga escala de longo prazo, especialmente considerando que já após a primeira mobilização ucraniana havia, do outro lado, 600 mil homens. Após as perdas nos primeiros meses, a Ucrânia conseguiu jogar homens suficientes no front para estabilizar a linha de contato, bem como simultaneamente treinar mais de 100 mil homens em países da OTAN.
Com a estabilização das frentes, a superioridade numérica garantiu iniciativa para a Ucrânia, especialmente porque o Kremlin demorou a aceitar a necessidade de uma mobilização. As operações militares ucranianas, porém, tinham finalidade fundamentalmente propagandística já que elas precisavam de vitórias visíveis, ou seja, de chão conquistado e defendido, para justificar aos olhos do público europeu a continuação do apoio militar à Ucrânia e os impedimentos de negociação de paz.
Apesar de declarações estapafúrdias sobre avançar até a Crimeia, porém, a nomeação de Surovikin, a anexação formal de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia e a mobilização parcial complicou a situação ucraniana e forçou uma aposta de derrotar a Rússia de uma só tacada em Kherson, cercando-se os 40 mil russos lá presentes após a destruição da represa. A ideia é que uma derrota tão acachapante levaria ao colapso do governo russo. A retirada de Kherson impediu isso. E após essa retirada e com a chegada dos mobilizados, uma vitória militar ucraniana hoje é categoricamente impossível.
Isso é o que se precisa saber, em termos de contexto e andamento resumidos, sobre o conflito ucraniano.