Ronald Reagan é exaltado como baluarte do “conservadorismo cristão” por boa parte da direita. Mas o seu governo viu o aumento do apoio a tiranias sanguinárias que exterminaram dezenas de milhares de pessoas na América Central, entre elas padres e freiras.
Os presidentes dos Estados Unidos – como os líderes das grandes potências em geral – não são tipicamente conhecidos como santos, mas nesta “galeria de horrores” dos rostos do imperialismo de estrelas e listras, Ronald Reagan certamente ganha um lugar de honra. Encontrar o que falar mal certamente não é difícil, nem é uma novidade.
O que é surpreendente, no entanto, é que entre alguns católicos (ou presumidos tais) ele seja considerado não apenas um grande estadista (uma afirmação, no mínimo, questionável), mas até mesmo um estadista cristão (o que está realmente fora de questão)! Por outro lado, são pessoas que, depois de 124 anos de encíclicas sociais em que os Papas explicam o contrário, ainda persistem em acreditar que o liberalismo (ou, pior ainda, o neoliberalismo!) é compatível com a fé católica.
Como previsto, haveria muito a dizer das falhas de Reagan, bem como de alegados méritos. Em primeiro lugar, o de ter lutado contra o aborto. Na verdade, houve muitas palavras bonitas, mas, com os dados em mãos, entendemos que a taxa percentual de abortos nos Estados Unidos nunca foi tão alta quanto durante seu mandato. Afinal, se você faz açougue social…
Ainda estamos falando, afinal, de um ator emprestado à política que acreditava que cuidar de um país marcado por graves injustiças sociais, fruto do liberalismo, era aplicar mais liberalismo. Mesmo que – para ser honesto – seja no mínimo questionável tirar o dinheiro dos contribuintes para encomendar às grandes indústrias militares um rearmamento geral, completo com escudos espaciais fantasmagóricos de utilidade duvidosa – ainda mais quando já se é a principal potência mundial, com destaque significativo sobre o segundo, em termos de produção econômica, pesquisa tecnológica, consenso diplomático, projeção aeronaval e posicionamento estratégico. Não estou muito familiarizado com o trabalho de Hayek, mas duvido muito que ele teria aprovado um aumento tão injustificado nos gastos públicos.
Ainda não se sabe se esse desdobramento de forças realmente serviu para vencer a Guerra Fria. Muitos estudiosos pensam que o colapso do bloco soviético teve causas endógenas (ver Strobe Talbott), em particular com a declaração de Gorbachev (ver Robert G. Kaiser), ou que a atitude de Reagan na verdade atrasou esse processo (ver Charles W. Kegley ). Outros ainda observam que desde 1984 a abordagem foi muito mais conciliadora (ver Beth A. Fischer). De qualquer forma, até seus próprios conselheiros (por exemplo, Robert McFarlane e Jack Matlock) admitiram mais tarde que a real intenção não era levar o Império do Mal ao colapso, mas sim melhorar as relações entre as superpotências, partindo de uma posição de força. Mas agora não pretendemos que os liberais tenham estudado história, muito menos a das relações internacionais!
De qualquer forma, o fato é que o administrador da Casa Branca lançou uma série de ofensivas ao redor do mundo na década de 1980 para reviver a hegemonia norte-americana. Seus aliados nesta “última cruzada contra o bolchevismo”, por sua vez, foram ainda mais embaraçosos do que ele. Deixemos de lado o Saddam lançado contra Khomeini, completo com gás, minas e mais de um milhão de mortos; deixemos de lado a África do Sul do apartheid, determinada a manter a dominação racial sobre os povos do sul da África… mas da criação da Al-Qaeda, com seu parceiro de lanche Osama Bin Laden, e, portanto, do jihadismo islâmico como o conhecemos hoje, em retrospecto, teríamos dispensado com prazer.
No entanto, o ápice desses feitos heróicos, sobre os quais quero chamar a atenção, foi realizado bem no quintal. Então vamos falar sobre a intervenção de Reagan na América Central, magistralmente resumida por um ensaio do historiador John A. Coatsworth, contido na “Cambridge History of Cold War” (que na verdade não é “O Manifesto”).
Agora, as intervenções dos EUA na América Latina nunca foram novas. Só durante a Guerra Fria, vinte e quatro governos, a maioria democraticamente eleitos, foram derrubados – quatro deles por intervenção militar direta, três através da CIA, e os golpes restantes foram subcontratados às forças militares locais, cujos quadros eram muitas vezes e voluntariamente treinados por EUA, para defender o mundo livre primeiro das ditaduras fascistas, e depois comunistas (quando falamos na heterogênese dos fins…). Como resultado, em 1977, apenas a Costa Rica e a Venezuela eram países estáveis com governos eleitos livremente.
A essa altura, o democrata Carter, na esteira de Kennedy, começou a se perguntar se não seria o caso de contrapor o comunismo, promovendo a democracia e a justiça social, ou seja, aliviando aquelas condições de extrema opressão e miséria que empurravam os povos do Continente aos braços do socialismo revolucionário. Escusado será dizer que as elites locais, para não perderem seus privilégios, não estavam muito inclinadas a usar outros métodos de pacificação social, além da tortura e dos esquadrões da morte… mas alguns avanços foram feitos.
O republicano Reagan, no entanto, interveio com dureza desde a campanha eleitoral, acusando Carter de fraqueza e prometendo usar um punho de ferro contra a ameaça comunista. Em particular, em 1979, os revolucionários sandinistas da Nicarágua finalmente derrubaram a ditadura de décadas da família Somoza, e os guerrilheiros se espalharam para os vizinhos El Salvador e Guatemala. Felizmente, o bravo “cruzado da liberdade” estava pronto para mandar os comunistas de volta ao inferno.
Pena que a ameaça comunista na América Latina não existia exceto na propaganda de Reagan. Os movimentos revolucionários da região consistiam em frentes de libertação nacional, onde coexistiam várias correntes ideológicas, de comunistas a nacionalistas a social-cristãos. A URSS estava muito longe e ocupada para intervir e sempre reprovou o apoio cubano a outros movimentos revolucionários no que era tacitamente considerado pelo Kremlin como uma reserva dos EUA.
A própria Nicarágua sandinista não só recebeu ajuda soviética e cubana em menor medida do que a de outros países europeus e americanos, mas sobretudo nunca implementou uma política comunista de imposição de um partido único e coletivização dos meios de produção, muito menos abandonou a Organização dos Estados Americanos. À margem, também é interessante observar como esse pequeno Estado ainda possui as leis mais restritivas do mundo sobre o aborto.
O que era muito real, no entanto, era a natureza extremamente repressiva das ditaduras centro-americanas. Num contexto em que uma oligarquia de latifundiários e compradores, juntamente com as grandes multinacionais norte-americanas, exploravam as massas rurais em condições de subsistência, as juntas militares dominavam, em comparação com as quais até Pinochet poderia, com razão, passar por social-democrata. Aqui, mesmo contra a própria opinião pública norte-americana – que desde os tempos do Vietnã começava a colocar problemas em relação às manifestações mais brutais de seu imperialismo -, Ronnie Reagan deu o melhor de si.
Na fronteira entre Honduras e Nicarágua, a CIA, com a ajuda de instrutores militares argentinos (sim, aqueles que lançaram dissidentes no mar), organizou elementos da antiga Guarda Nacional de Somoza para formar os infames Contras, financiados pelo Congresso e armado através do narcotráfico e da venda de armas ao Irã. Não satisfeito com isso, o governo dos EUA, em total violação do direito internacional, minou os portos da Nicarágua, depois ignorou descuidadamente o veredicto de indenização emitido pelo Tribunal de Haia. Em suma, o respeito pela legalidade era válido apenas quando se tratava de tolerar a decisão Roe vs Wade…
Após uma série de derrotas retumbantes em campo pelas forças regulares, os Contras recorreram ao terrorismo contra alvos civis, causando mais de 30.000 mortes. Eventualmente, incapazes de prevalecer diretamente, os EUA concordaram em um compromisso com o governo sandinista, que perdeu por pouco as eleições de 1990. Estas ocorreram em um contexto de exasperação popular diante da arrogância dos EUA e viram a vitória de uma coalizão de centro-direita, financiada pelos Estados Unidos e liderada por Violeta Chamorro, cujo pai foi assassinado por Somoza.
Na Guatemala, a guerrilha contra a ditadura militar estava enraizada nos povos indígenas maias que ali viviam há milênios. Também aqui Reagan forneceu amplo apoio econômico, em particular ao novo governo do general Efraín Ríos Montt, convertido à fé evangélica, que em 1982 havia substituído o general García Lucas por meio de um golpe. Como a simples repressão política é muito pouca, em apenas um ano de poder, antes de ser derrubado por um novo golpe, Ríos Montt destruiu 686 aldeias e matou 50.000-75.000 indígenas, vencendo um julgamento por genocídio (atualmente em andamento). No total, nesse período, de uma população guatemalteca de 6.500.000 habitantes (em 1980), houve 200.000 mortes (93% pelo Estado e 83% de etnia maia) e 1 milhão de refugiados.
No entanto, El Salvador tem a palma na luta contra o comunismo ateu e assassino. Em 24 de março de 1980, o arcebispo conservador Óscar Arnulfo Romero, Primaz de El Salvador, topo da hierarquia católica no país, foi assassinado pelos militares enquanto celebrava missa na Catedral, durante a Consagração, por criticar a repressão do regime. Não satisfeitos, na manhã seguinte, durante o funeral, uma bomba explodiu e tiros foram disparados das janelas do Palácio Presidencial, causando 38 mortes entre os fiéis. Escusado será dizer que nem Hitler e Stalin jamais sonharam em fazer algo do tipo, sem sequer esperar o fim da missa e instituir um julgamento simulado! Hoje, Romero é abençoado como mártir, como uma contraprova de que se tratou de uma verdadeira perseguição contra a Igreja Católica.
De fato, mais tarde, dada a desagradável tendência do clero de tomar partido dos mais fracos, ameaçaram o extermínio dos jesuítas presentes no país. Em dezembro, para comemorar a eleição de Reagan, os militares sequestraram, estupraram e mataram quatro freiras americanas que trabalhavam para ajudar os pobres. Carter, indignado, retirou o apoio financeiro, mas este foi imediatamente restabelecido por Reagan no mês seguinte. Graças a este apoio decisivo, o exército salvadorenho resistiu, a ofensiva rebelde foi repelida e a matança de civis continuou imperturbável.
No entanto, o regime logo percebeu que estavam escasseando os homens disponíveis para alistamento, mas a solução logo foi encontrada: o alistamento – inclusive forçado, com recurso a batidas nas escolas – de meninos, de 14 a 15 anos. Em plena guerra civil, 80% das forças governamentais e 30% dos guerrilheiros eram menores. Este fenômeno está na base do nascimento de gangues juvenis muito violentas como a Mara Salvatrucha 13. De qualquer forma, estima-se um total de 75.000 mortes (85% causadas pelo regime), das quais mais da metade sob o mandato de Reagan, e 500.000 refugiados de uma população de 4.500.000 (1980).
Em suma, o lema “Antes morto que vermelho” nunca foi tão verdadeiro, se considerarmos que de uma população total – para esses três países – de cerca de 12.500.000 habitantes (em 1975), as mortes somaram 2,84% e refugiados 16%. Estes foram principalmente para os Estados Unidos, onde pediram para serem acolhidos como refugiados políticos. É claro que, enquanto os exilados cubanos foram recebidos de braços abertos e mimados pelo governo dos EUA, os refugiados centro-americanos foram rejeitados e forçados a se esconder: apenas 9-11% dos nicaraguenses, 2,6% dos salvadorenhos e 1,8% de guatemaltecos obtiveram asilo político – novamente graças às virtudes cristãs de acolhimento e hospitalidade de seu amigo Reagan, é claro.
Em suma, dadas suas virtudes evidentes como Defensor Fidei listadas acima, como duvidar que em breve os católicos liberais peçam a canonização de seu novo Luís IX?
Fonte: Torquemada