Teria sido Gilberto Freyre redescoberto? Ousamos dizer que ainda não, ou talvez, não completamente. Após décadas de ostracismo intelectual na academia, em que seu nome causava nojinho e aversão nas salas universitárias, seu pensamento foi reduzido para meros termos de simplificação ideológica, tal como “democracia racial”.
Ao longo das últimas décadas, Gilberto Freyre foi reduzido para o sentido mais pobre dos termos “conservador” e “reacionário”, anti-freyrismo que aumenta quando tal autor colabora e participa do regime militar. Não obstante, pouco a pouco, nos grupos e campos políticos no Brasil, começa um despertar, ainda absurdamente tímido. O típico direitista brasileiro, cego pelas propagandas liberais e maravilhado pelo conservadorismo de Kirk, é avisado que no Brasil também existe uma escola de pensamento conservadora, e que nela supõe-se que estaria Freyre.
Já o típico esquerdista universitário, após ser ridicularizado por reproduzir versões simplistas do pensamento de Freyre, em raros momentos viu que não é bem aquilo que contavam, até porque muitos autores os quais ele admira são tributários de Gilberto. Aparentando que possivelmente uma certa distância dos anos de presidentes militares pesou para que não se tratasse Freyre de forma tão achincalhada como era de costume.
Num terceiro grupo, temos indivíduos diversos que reconhecem a importância de Gilberto, que negam as caricaturas de seu pensamento, mas que ainda possuem dificuldade em perceber a dimensão de Freyre para o Brasil.
Por fim, alguns poucos estudiosos dão a Freyre a importância devida, expandindo e atualizando seu pensamento, caso do geopolítico Alexandre Hage, praticamente o primeiro a retomar seu pensamento depois de longos anos que a academia praticamente não debatia nem produzia mais nada sobre o assunto.
Pensamos aqui que Freyre ainda está para ser redescoberto, e esse processo em parte se fundirá com a descoberta do Brasil para si mesmo. O que isso significa? Significa que quando formos construir um modelo diverso do falido presidencialismo de coalizão, quando formos reformar toda nossa estrutura estatal e burocrática, quando formos traçar em definitivo nossas linhas mestras de política externa e que quando formos refletir qual sociedade queremos criar, é vital que se dê a devida importância para Freyre, reconhecido como fundamental, até mesmo por seus rivais, validada a frase na qual Darcy Ribeiro o reverencia “Gilberto Freyre escreveu, de fato, a obra mais importante da cultura brasileira”. Em 2019, o Exército, talvez até por conta da notável indefinição de seu papel em nosso Estado, publicou na sua biblioteca um dos livros de Gilberto, “Nação e Exército”, trazendo pouco a pouco Freyre para o debate.
Dada a singularidade de Freyre, não é nada sábio enquadrá-lo como esquerda ou direita, categorias que além de tudo são de pouquíssima utilidade ao Brasil; tal maniqueísmo disfuncional não alcança figuras desta envergadura. Freyre tem em seu berço as reflexões polvorosas da Escola do Recife, Escola nunca unânime em pensamento, mas a vanguarda na busca de compreensão do Brasil, dos brasis, do caráter e identidade nacionais; tal escola, fantasticamente criativa e produtiva, também restou no exílio do debate público. Ao passo que jovens deslumbrados e iludidos trazem para cá a Escola Austríaca, como a maior das novidades, sem nunca terem ouvido falar nos mais relevantes pensamentos nacionais.
Freyre, influenciado por Nietzsche, vê características nobres brasileiras, como a espontaneidade dos afetos, oriundas principalmente da matriz negra e vindas de baixo para cima, se generalizando socialmente no Brasil, influenciando nossa forma de ser. Em um momento no qual todas características brasileiras eram vistas no exterior como defeituosas, em Casa Grande & Senzala o tabuleiro é invertido, elas são agora colocadas como nossas melhores qualidades. O ócio é elogiado em face ao negócio. A espontaneidade dos afetos vista positivamente perante a racionalização ética dos comportamentos (a recente moda do cancelamento pode ser vista como uma racionalização ética).
Freyre coloca-se em oposição ao típico homem produzido pelo capitalismo, como mera peça mecanicista. No livro “Além do apenas moderno” traça as mazelas da pós-modernidade, opondo, por exemplo, um tempo telúrico e ibérico ao tempo mecanicista marcado no relógio, alertando para os problemas da modernidade, negando o cosmopolitismo e pontuando a importância do regional. Entretanto, Freyre vê na pós-modernidade uma fenda, tal mudança social forneceria uma abertura na qual o homem tradicional poderia ressurgir tendo principalmente mais tempo livre para tal, ao mesmo tempo em que Freyre alerta sobre as armadilhas dispostas pelo caminho, tais como o controle comercial dos diversos aspectos da vida e um ócio tedioso, desprovido de sentido que poderia levar ao abuso de drogas e ao suicídio.
Gilberto Freyre é multidimensional e impede que se deixe falar facilmente de toda sua importância. Adentrou e esclareceu no mais profundo da alma brasileira, estudando a partir da vida privada familiar. O Brasil deve ressurgir se apoiando nos ombros de gigantes como Freyre, forjando modelo único, para além do socialismo, liberalismo e nacionalismos modernos, nas palavras do mesmo:
A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar de “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais – não de todo invulgares nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil – de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal (…)’
O retorno às origens é também a libertação nacional; até quando negaremos a nós mesmos?